terça-feira, 7 de abril de 2009

Conto - O cantador

A única corda da viola já não dava afinação. Desfiada numa das pontas, prendia-se com um nó desajeitado no cavalete. Via-se no cravelhame, lá no outro extremo, o risco da ruptura iminente denunciado pelo desgaste do fio levemente esticado, de forma que o aperto não resultasse no baque seco do rompimento.
Arlindo ainda batia a derradeira com as pontas dos dedos soltas. As unhas desgastadas e encardidas, não por causa do ofício de extrair sons de uma corda envelhecida, ficavam à mostra e compunham um cenário interessante. Nos últimos sete anos Arlindo vira-se obrigado a trabalhar na coleta de materiais reciclados, após labutar por mais de 30 anos na roça, sempre como parceiro.
As unhas sujas de antes traziam o cheiro da terra roxa, onde a mandioca era arrancada no braço e as raízes recebiam a carícia das mãos calejadas para abastar a terra que as cobriam. Os restos encardidos de agora às vezes cheiravam azedo, oriundo da comida que apodrecia nos sacos plásticos de lixo depositados diante dos condôminios.
Nos velhos tempos, sobrava para Arlindo a camisa clara e engomada nos fins de semana, de mangas longas e golas levantadas. Com ela e a calça de casemira azul marinha, Arlindo assistia as missas nas manhãs dos domingos. As mangas arregaçadas até o meio do antebraço mostravam parte da pele queimada pelo sol. Colocadas por dentro da calça, a camisa formava um vácuo na altura do abdomen e escancarava um homem magro, levemente corcunda, sob um chapéu de feltro ajeitado sobre os cabelos que começavam a rarear.
Depois da missa, havia o tempo certo para olhar a horta e a criação, mais por costume, menos por necessidade. Na varanda sem piso, sobre a terra umedecida e batida, um banco de madeira tosca, com as pernas estacadas no chão, esperava o seu dono já com o trago da branquinha ajeitgado, pronto para descer queimando a garganta e limpar a voz prejudicada pelos pigarros do fumo enrolado em palha seca e fina guardada da última colheita de milho.
A viola ainda tinha todas as cordas. Arlindo viera do interior de São Paulo e o modelo que trouxe com ele era de dez cordas, formando as cinco duplas. A fervura do frango no fogão a lenha era o sinal das mulheres para providenciar o tempero. Para Arlindo, o chacoalhar da tampa de alumínio da panela de ferro indicava o dedilhar de ensaio, com habilidade suficiente para extrair um som que entrava nos ouvidos cativante, prendendo a atenção. Dali vinha a voz, aguda, afinada, quase gritada, cantando igual Tião Carrero e Pardinho ou Tonico e Tinoco. Mesmo nas letras tristes o rosto mostrava felicidade, não da branquinha ou do frango assanhando no cheiro da fervura. O sorriso dos olhos emoldurado pelas rugas grossas e marcantes era por cantar, batendo com carinho nas cordas da viola.
Resta agora um trapo da camisa branca e nada sobrou da calça de casemira. O sapato Vulcabrás foi há muito trocado por um par de chinelos de dedo. Arlindo tem um carrinho de mão e anda quilômetros por dia atrás do seu sustento. Nem sempre sobra disposição para limpar o corpo da viola com um trapo encardido, encostá-la no peito feito um amante e dedilhar a única corda, talvez a última, que tira um som melancólico mesmo que a letra da música fale de alegria.

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