sábado, 21 de fevereiro de 2009

Conto - Uma história defecante

Com quarenta e um anos cravados na carteira de identidade e no registro de nascimento, mas, vejam só, uma carinha de apenas quarenta, Ariete era daquelas que mantinha a boa forma física na base de muito diurético e laxante. A receita fora passada por uma amiga, postulante a anoréxica, que carregava em um dos compartimentos da bolsa uns vinte envelopes de lacto purga.
Eu lembro que Ariete perguntou para a Vanessa, meio irônica: "Você é ressecada? Ou isto serve só para a tanajura não perder a forma?" Mais do que rápida e com a rudeza que a vida lhe havia ensinado, Vanessa retrucou: "Não meu amor. Isso é para eu cagar toda a gordura que me sobra no meu corpinho. Senão eu acabo ficando igualzinha a você. Toda torta e pelancosa."
Eu saí de perto e nunca soube o resto da conversa. Vanessa fazia programas com empresários. Cobrava em dólar. Ariete só saia com alguém por prazer. E olha que o prazer dela era constante, frutificante, persistente e melequento. Bastava o olhar mais firme de um macho para ela ter desejos.
Encontrei Ariete dias depois daquela conversa remelenta com Vanessa. Esperei que ela dissesse alguma coisa a respeito. Esperta, ele percebeu a minha curiosidade e ficou quieta. Da minha parte, não dei carga e apenas pensei, disfarçando o olhar de súplica com um gesto de desdem: "Cago na tua cabeça, mas não te dou chance, polaca..."
Bobagem. Não de um minuto e Ariete emendou: "Eu estou só na base de fruta, muita água e fibra. Então não precisa me convidar para aquela pizza que você me deve faz uns cinco anos. Ou mais... Dispenso." Era a chance de eu entrar no assunto da briga com a Vanessa, mas antes eu precisava fazer firula: "O que há? Sempre morta de fome e pronta para um boca-livre? Agora que eu ia saldar a minha dívida me dispensa?
Boca suja aquela Ariete. Foi no sopetão que ela revidou: "É para eu cagar muito, babaca. Cagar as banhas e as gorduras no vaso sanitário que é você, entende? Quero ficar fininha e te jogar na lata de lixo. Ainda vai se ajoelhar aos meus pés."
Eu não podia deixar por menos: "Não querida. Eu não uso lente de contato. Pois só se perdesse a minha vista artificial me ajoelharia aos seus pés procurando por ela o mais depressa possível. Imagina se você me pisa nela com essa gordura toda?"
Veja, a minha relação com Ariete era assim mesmo. Defecante. A gente não sabia se falar de outro jeito. "Você é um bosta e quer fazer de mim uma privada?" - agredia a malvada. "Pare de me olhar com essa cara de merda senão eu dou descarga" - costumava eu dizer quando ela me encarava com aquele olhar de peixe congelado.
Na verdade, a gente não tinha nada um com o outro. Talvez esse fosse o problema. Nunca havia atentado Ariete e ela, tampouco, alguma vez na vida me olhou com olhar que não fosse de parceiro. Mas, parceiro no que?
A gente até se evitava. Lembro que por algumas vezes eu dava volta por três quarteirões no retorno para casa, lá pelas onze da noite, só para não correr o risco de encontrá-la. A danada percebeu e passou a fazer ponto na quitanda quase em frente de onde eu morava. Quase sempre estava com o Tarciso, uma espécie de bobo do corte daquela rainha sem trono e sem corpo de majestade. Às vezes as pelancas caiam por cima do cós da calça de cintura baixa. Ela ficava esquisita. Tenho minhas dúvidas, mas Ariete chamava Tarciso de Meu Guru. Para mim, guru tem muito a ver com um cara que não quer nada com o sexo oposto e vive encostado em mulheres, para aconselhar sobre a cor da calcinha ou o formato do sutiã.
Teve uma noite que eu driblei a Ariete com muita peripécia. Evitei passar em frente da quitanda invadindo o quintal da dona Alvinda, que dava nos fundos do meu quintal. A coitadinha estava assistindo televisão quando eu passei agachado pela janela da sala. Na verdade, ela cochilava. Senti as babas escorrendo pelos cantos da boca murcha, pois as dentaduras descansavam num copo de vidro em cima do aparelho de TV.
Cheguei em casa e acendi a luz do quarto, com janela de frente pra rua, só para avisar que eu havia chegado e ela não tinha conseguido me atasanar no caminho. E fui na janela da sala, de luz apagada, espionar. A maldita deu uma encarada para a luz acesa e começou a provocar. Vi a Ariete se roçando no Zé da Calha, apalpando o cara na frente de todo o mundo. Não sei, mas senti uma espécie de ciúme e pensei: "Que bosta, ela me torra o saco, pede para eu pagar a conta da luz do quarto dela, empresta dinheiro para comprar preservativo e na hora do bom é com esse merda?"
Nem eu entendi a minha reação. Que eu saiba, eu não estava afim daquilo. Jamais encararia uma sessão de roçagem com a Ariete, sob o risco de ficar impotente, tamanha era a feiura da dita. Depois analisei que era o jeito dela provocar que me incomodava. Vi Ariete e Zé da Calha subindo para a rua marginal, de onde se ia a um motel de quinta categoria. Imaginei o babado e decidi dormir, sem banho e sem jantar.
Na manhã seguinte corri à quitanda, ainda com remela nos olhos e os cabelos parecendo um monte de capim engomado. Mal pisei o tapete da porta e senti o clima. Só se falava naquilo. Na noite anterior, meia hora depois de sair com Ariete, o Zé da Calha retornou emputecido, soltando faísca para todo o lado.
A revolta do rapaz: Ariete havia tomado um purgante depois de um lanche reforçado, como era seu costume após as refeições dos dias em que não havia programado nada com alguém. Era o caso da noite anterior, mas para fazer fidusca comigo ela resolveu sair com o Zé. Advinha o que aconteceu? O efeito do medicamento bateu bem na hora em que ela chegou com o Zé no motel.

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