domingo, 16 de junho de 2013

Conto - Guerra das almofadas



Éramos três crianças e nada do que fazíamos naqueles momentos tinha importåncia para o nosso futuro. Vivíamos o nosso tempo, num mundo que só a nós pertencia e nos contentava, e mesmo quando colocávamo-nos a meditar sobre o amanhã os nossos planos eram paupáveis, possíveis de serem contornados pela imaginação, tão singelos pareciam.

Mamãe tinha um rosto de menina. Seus cabelos longos caiam sobre os ombros e emolduravam o rosto moreno. Era uma mocinha apaixonada pela família - eu, Mara e papai -, e embora muito criança, eu já experimentava um leve sentimento de ciúme. Dos momentos, por exemplo, que ela se aproveitava das nossas distrações para roubar um beijo de papai. Ou de quando se entregava a Mara e eu me sentia abandonada no canto do sofá, até que ela viesse, seus braços abertos, para me compensar com um abraço e muitos beijos que eu fazia de conta me incomodar.

Os dias eram iguais, fosse domingo ou quinta-feira. Mas as nossas expectativas quanto ao próximo minuto, ao o que estava por acontecer, sempre se renovava. Porque os nossos instantes sempre eram de surpresas. Um novo abraço de mamãe nunca se parecia com o de antes, cada beijo tocava no meu rosto e se abrigava no meu coração com uma intensidade incomparável. Ainda assim, tínhamos nas tardes dos sábado um evento diferente, longe da nossa gostosa rotina de esperar, de segunda à sexta, pela chegada de mamåe da escola onde lecionava.

Íamos nós três no final do dia para a chácara da comunidade religiosa a qual meus pais pertenciam. Havia um alojamento reservado para nós e invariavelmente, após o jantar, corríamos para nos acomodarmos. Papai, obrigado a cumprir plantão devido a sua atividade profissional, raramente nos acompanhava naquelas oportunidades. Então o mundo e o momento eram das três mulheres da casa. Meninas, que não falavam das coisas das mulheres, nem da moda, nem dos ídolos da televisão.

Éramos três crianças, que sob o comando de uma de nós, seja com um olhar, fosse com um gesto, nos entregávamos a uma guerra sem vencedor e vencidos. Uma guerra de amor,com as nossas almofadas acertando os corações uma da outra. Assim perdíamos horas e ganhavamos no amor. Riamos uma das outras, abominavamos ataques de surpresas. Na verdade, perder era ser compensada por mamãe com aquilo que ela tinha de mais sublime, o amor. Então, em certo momento, tomadas pelo sono, deixávamo-nos vencer.

Eu ainda olho para o passado e tento buscar nas lembranças, que parecem querer me ferir, as glórias daquelas guerras. Mas percebo que as batalhas são outras. E a minha guerra já não premia todos os lutadores com provas de paixão e amor manifestadas em abraços e beijos.

Mamãe ainda conserva o rosto de menina, mas seus olhos, mesmo quando sorriem, denunciam tristeza, pois papai se foi. Mara, na sua adolescência, parece querer cuidar de mim. Penso que eu é que deveria baixar a guarda das perdas que acumulo na alma, como a da súbita ida de papai, para devolver a Mara e a mamãe as almofadas que fizeram a nossa guerra e nos tornaram felizes mesmo nas nossas derrotas. Sim, porque naquelas batalhas da infåncia nunca perdemos e nunca ganhamos, apenas solidificamos a nossa vida com atitudes que nos ensinaram a amar.

No entanto, alinho-me como a guerreira que não quer sucumbir, mas não estende os braços para abraçar as parceiras de todas as minhas batalhas, Mara e mamâe.

E como eu tenho tentado. Mas só consigo seguir o olhar triste de mamãe e a carência de Mara, sem reagir, sem abrir o meu peito para brincar a nossa guerra das almofadas.


Conto - Favo de Mel


Tão doce! Esparramado na boca leva à cabeça a sensação de plenitude. Cor de ouro, o licor faz flutuar e a inconsciência dos efeitos levanta questões lúcidas: mantê-lo na boca ou engolir?

Devaneios são temporais. Chegam e vão sem avisos. Duram o tempo que for preciso e quem estabelece esta regra é o acaso. Inútil tentar prolongá-los. Desnecessário pensar em abreviá-los, pois eles se vão muito antes da percepção de uma indesejada presença. Partem enquanto há deleite.

Favo de Mel! Foi assim que eu a conheci. Tal qual o prêmio das abelhas aos que ousam provocar os enxames, o beijo dela era alucinante.

Entrei indefeso e atordoado na armadilha que ela armou. Sem luvas, cara e peitos descobertos, pés descalços avancei pela trilha que ela riscou em seu bosque. Venci labirintos e refiz trechos, sujeito às condições que ela impunha após cada trecho percorrido.

Foi um tempo sem medida, nem longo e nem curto. Se choveu durante o caminho a água foi bem-vinda. Se a estiagem secou a umidade o calor que veio foi agradecido. Frio nunca senti. Nem sono e cansaço. A preguiça embrulhei e deixei num canto lá atrás.

No fim da trilha ela armou a sua arapuca: o coração aberto, feito uma vasilha que mel não tinha a transbordar. Mas derramava amor, tão doce e licoroso quanto o líquido alucinógeno de ouro catado dos favos que as abelhas, desafiadoras e provocativas, escancaram aos olhos dos desprevenidos.

Enchi a boca com os beijos dela. Transbordei meu coração com o amor dela. Favo de Mel! Assim ela se apresentou a mim. Agora ela me deixa amargo num lugar sem armadilhas. Ela fechou a sua arapuca e me deixa fora. Eu volto daquela consentida prisão e penso que nunca estive atado por inteiro. Só senti o sabor precário da plenitude e fugi, como fazem todos os que apenas aceitam o doce.

Conto - Estações dos anos


Um dia ele pediu um pão e um gole de café. Ela preparou uma bandeja farta: pão, café, leite, manteiga, suco e frutas.Mal começava o verão e nas rebeldias do clima, que na primavera trouxe frio de inverno, cabia também pedir um agasalho. Ela se ofereceu com um abraço.Passou o verão e estendeu seu destempero ao outono. Quente, de mormaço, suor e garganta seca. Ele pediu um alívio e ela respondeu com um beijo.

O inverno surpreendeu com afagos. A primavera aprofundou as carícias. O outono revelou peitos arfantes. O verão foi de paixão e nem o sol quente foi tortura.

Fez-se então outro outono que de novo chamou o inverno, que preparou como pode o tempo que seria a primavera, que previu desde muito cedo o clima que viria no verão.

Ele pediu mais uma bandeja farta. Ela nem o pão trouxe. E foi assim até a mudança da estação, quando ele cobrou um abraço e ela negou as mãos. 

O período quente chegou muito antes do verão, ainda na primavera, justo no dia em que ele quis um beijo para acalmar a sede de amor. Se ao menos com água ela retribuísse...

Afagos, carícias, arfar do peito, sussurros, gemidos e paixão passaram a compor uma lista de desejos que ele manifestava sem tanta convicção de merecer. Ela retrucava com desprezo.

Foram-se mais quatro estações. Tampouco piedade sobrava naquela relação. As cobranças dele deixaram de ser feitas. Ela, tão perto, colocava-se distante.

Ele havia construído sua vida com ela sobre uma plataforma de pedidos sem contrapartidas. Recebeu e pouco deu. Apostou saber construir o clima certo para qualquer estação. 

Ela fez a princípio que não entendeu. E não foi de pronto que se rebelou. Apenas fugiu aos pouco. Ignorou com leveza. Desdenhou com charme. Foi sutil e nunca se viu obrigada a dizer não. Apenas evitou atos que antes pareciam sentimentos e se mostraram meras cenas de amor.

Foi quando ele decidiu se aninhar em outros braços. Descompromissado, pediu pão e ganhou bandeja farta. Insinuou frio e recebeu abraços. Implorou calor e faturou paixões. 

E ela, aliviada, foi buscar novos verões. No caminho viveu primaveras, outonos e invernos mais promissores do que os de antes. Correu outros riscos de confundir paixão com amor. Mas, consciente, soube medir a oferta para a proporção do que lhe era dado. E assim passou a ter mais do que dava. 

Crônica - Barcos são feitos de rascunho


Fiz um barco de papel e escrevi no casco: agora eu vou. Ainda me falta um rio largo e de águas mansas, suficiente para ir. O mar causa arrepios. Minha embarcação é precária, construi com folhas de um caderno cujas notas traçadas com um lápis quase se apagaram. Faz tanto tempo que usei a matéria-prima para rascunhar poemas que nunca chegaram ao fim. Quando acertei na métrica me faltaram as rimas. E foi que achei as duas coisas justo no momento em que findou a inspiração.

Procurei na gaveta do armário um pouco de criatividade. Nada que encontrei tinha uma embalagem avisando que aquilo continha talento. Nem sei de que jeito ela vem, se é pó ou pomada, líquido ou spray, precisa ferver ou se toma frio. Ignoro se causa um impacto e as letras, assim por diante, correm livres e ligeiras pelas linhas. Queria muito encher páginas dizendo coisa com coisa. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis e vinte, vinte e um, quanto mais. Completas, em letras miúdas e pontuação conferida. Exclamação quando couber, interrogação se preciso, vírgulas nos lugares exigidos e reticências. Muitas reticências permitidas em frase compostas especialmente para serem fechadas com elas.

Experimentei temas variados. Abusei do amor, sou confesso. A leitura do que grafei ficou sem ritmo, longe pensar em uma declamação. Fucei as entranhas do abstrato e causei desastres. Saíram declarações pontuais e pareceram vulgares, batidas e enfadonhas. Decidi aperfeiçoar o concreto e o resultado foram afirmações cotidianas sobre aquilo que é trivial. Por isso a prosa que propus deu em textos descritivos de tamanho, cor, formato, abrangência, localização, espessura e peso.

Foi assim que eu virei um construtor de barcos. Conheço modelos diferentes, sei fazer as dobras sem causas rupturas nos cascos. A chuva já demora, mas ela vem a qualquer hora dessas. Sou paciente e espero. Quando a água descer vou junto, nos meus barcos, e levo neles poemas que tentei escrever e que viraram rascunhos, perfeita matéria-prima para construir embarcações. Agora eu vou. Para algum lugar onde haja permissão para rabiscar sem rima e sem métrica o sonho da viagem para onde se quer ir. As águas é que vão me levar e não terei rascunho para voltar. Que venha a chuva, porque agora eu vou. 

Conto - A face oculta


De frente são olhos claros. Marcantes porque miram com firmeza o objeto que se coloca adiante. Ou algo. Ou alguma coisa. Ou alguém. Sob sobrancelhas desenhadas eles se destacam. Redondos e milimetricamente postos, rebaixam com delicadeza a parte de onde o nariz se anuncia, leve, reto, pequeno e atraente.

Nem arrebitado e nem chato, mais fino do que largo, dispensa qualquer tipo de retoque. O nariz é perfeito e feito para aquele formato de rosto, que começa com o ovalado sutil da testa e desce afinando sensato até o queixo, onde se vê o quadrado suave, como se os contornos tivessem sido moldados por mãos acostumadas à arte da perfeição.

Não há exageros nas curvas e nas dobras mais acentuados. O reto é sequência natural de um projeto bem feito. A boca é sensual. Tem lábios suficientemente grossos e tão longos quanto o desejado. Está na medida certa para a pretensão.

É possível observar o rosto de frente sem lê-lo. Diria-se no bater dos olhos que é um rosto naturalmente lindo que dispensa acertos com a trucagem dos cremes, batons, sombras e tantos outros recursos contidos em embalagens miraculosas. Algum realce feito com senso acrescentaria, é verdade.

Haveria, no entanto, dificuldade para folhear a expressão que o rosto exprime. É pelo medo de ler o que os olhos dizem, o que os lábios sugerem e o olfato a que as narinas estão acostumadas. O rosto constrange quem o encara quando passa do ponto de apenas enxergar e se quer ver.

Feito uma barreira levantada espontaneamente, o rosto impede a quem o encara uma interpretação. E fica-se sem saber se ele está sereno ou tenso. Se sorri ou está triste. Se quer ou repugna. Se pede ou dá. O rosto é a face oculta de uma linda mulher que se olha de soslaio, temendo constranger a beleza que ele é.

Crônica - Os sapatos verdes

Parecia esportivo na vitrina. Camurçado, dava impressão de leveza e conforto. Sem cadarços, lembrava agilidade ao calçar. E por que não, liberdade. Amarras, afinal de contas, é sinônimo de prisão.

O solado, de plataforma de borracha, deu idéia de maciez. Era pisar e flutuar. E o preço? Muito abaixo dos demais modelos expostos na vitrina sob os efeitos do fluorescente que ilumina a loja e dos raios de sol que em alguns períodos do dia invadiam o lugar.


Bastaram dez minutos de espera para a atendente aparecer e se colocar à disposição. O homem pediu para experimentar. Ajeitou-se numa banqueta, descalçou os tênis e ajeitou as meias, de forma que os furados ficassem nas solas dos pés e ninguém reparasse no estado precário em que se encontravam.


Foram mais dez minutos de espera até a moça retornar com a caixa contendo um pé. O outro teria que ser retirado da vitrina, pois era o último para do modelo e da numeração adequada. Quando os dois pés foram colocados juntos, nem se reparou à luz ambiente alguma diferença na tonalidade.


Na prova, satisfação total. Os sapatos de camurça caíram como luvas. Se amoldaram nos pés do homem sem folga e sem aperto. Nem pegou nas pontas, onde as unhas encravadas costumavam incomodar. Na articulação obedeceu suprema, sem rangido e muito menos pegar aqui ou ali. Tampouco saiu do calcanhar, pois acompanhou os momentos dos pés como fiel protetor.


O negócio foi fechado. No embrulho o homem até dispensou a caixa, que já tinha um rasgo na tampa e um amassado numa das laterais. Os sapatos foram para a casa do comprador em saco plástico do estabelecimento. Assim não fez tanto volume na mochila e evitou desconforto no ônibus.


A estréia foi marcada para sábado. O plano incluía um par de meias seminovo, lavado somente duas vezes após a compra, a calça jeans que ainda mantinha um azul mais forte, a camiseta branca e nada mais.


Fez sol no sábado, que sorte. Os sapatos ganharam a porta da sala e depois o portão. Na calçada, à primeira batida do sol, denunciaram diferenças. Um pé, aquele mantido na caixa, era verde musgo. O outro que ficou na vitrina pareceu uma mescla entre o amarelado encardido, o marrom e um verde cansado em alguns pontos.


Quarteirões adiante, bem na boca do estacionamento do supermercado, um engraxate cobrou dez reais para passar uma tinta marrom nos calçados. E o novo ficou reformado.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Crõnica - Assim na terra como no céu


Onipresente, exaurível, levemente tostado, picante, doce, amargo, salgado, claro, escuro e onipresente. Assim na terra como no céu. O poder é um mistério. Ou nem tanto.

Abrahan Lincoln, o décimo sexto presidente dos Estados Unidos da América, deixou uma frase célebre: “Quase todos os homens são capazes de suportar adversidades, mas se quiser pôr à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder”.

Explicito! Cá na terra nestes trechos habitados por cotistas e beneficiários dos bolsas famílias, o poder é ter um camaro enquanto a maioria dos motorizados se contenta com um ponto zero. O resto, formado por um monte, vai a pé mesmo.

Poder que também se vende a quem é de posse. Barcos, aviões, fazendas e mansões são moedas de troca. Mas nunca os proprietários disso tudo concedem. A plebe, fruto de um estranho costume de submeter, faz por conta própria a reverência.

O poder, raramente, é resultado de conquista. Na política, nem sempre o voto que dá o trono é merecido. A cultura, decaída e capenga, elege o poder econômico mantido por partidos e coligados, estes financiados por grupos econômicos dominantes.

Discurso! Tantos já falaram sobre isso. E por incrível que pareça deixaram de ser ouvidos. A conseqüência é a necessidade de repetir a falácia, feito risco na mídia ou outro defeito: a música não sai do refrão.

Há exceções. Sobram as pessoas tesudas por dignidade. Meia dúzia ou pouco mais. A gente é que não enxerga e perde a oportunidade de distinguir quem do grupo de quem.

Conheço alguns. Nem todos são meus amigos. Quanto aos amigos tenho muitos. Poucos são excepcionalidade. É igual crer e ter fé. No desespero atribuímos às divindades o poder do milagre que elas não tem.

E sem a reviravolta que esperamos perdemos pé tanto quanto a fé. Não é culpa nossa. Alguém, desde a nossa infância, nos fez pensar que lá em cima mora um poderoso. Assim somos. Eternos crentes em quem tem poder, aqui na terra como no céu.

Por isso cruzamos os braços e esperamos o próximo trem, o reajuste salarial do ano que vem, a oportunidade de vaga de emprego daqui a três meses. Não o temos, mas adoramos quem tem poder.


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Crônica - Nomes carinhosamente injustos


Joãozinho é herói, bobo da corte, humorista, comediante e, coitado! Refiro-me ao nome, João. Está quase sempre colocado no diminutivo, o que é, no mínimo, discriminação. Joãozinho...

Diferente do Zé. Este, apesar de reduzido a duas letras de um total de quatro, além do acento agudo, engrandece o sujeito. Talvez por causa do “Z”, maiúsculo, que toma o lugar do “s”, minúsculo.

Tese simplista. Mas tem fundamento. João, quando gordo e crescido, nunca é substituído por Joãozão. O que sai da boca de quem chama normalmente é Gordão. Ou balofo. Antigamente xingavam o João Gordo de elefante, baleia e bichos impossíveis de carregar nas costas. Zé, acima do peso, torna-se Zezão.

João Mané! Vejam, até trabalham um composto para denegrir o indivíduo tido como topeira. E temos que considerar, de repente, que o nome do cara nada tem a ver nem com o João e muito menos com o Manuel. Ou Manoel. O sujeito se chama Nicolas. Talvez Sebastião. Provavelmente Peter. Supostamente Enrico.

Busco na internet alguma tese sobre essa implicância com o João. Nada encontro de consistente. Alguém escreveu num fórum de internautas que a culpa é de quem se chama João. Porque uns se tornam bonachões. Outros se diminuem, Há os que viram palhaços. Também andam pelas ruelas os que mentem.

Então me toca a campainha da porta o vizinho do oitocentos e três. Tem quase um metro e oitenta, deve pesar lá pelos noventa e todos o chamam de Juninho. Perguntei a ele o motivo do diminutivo.

Eufórico, o dito relatou que vem do carinho da mãe. Tipo, “nasci Juninho, cresci Juninho, estou envelhecendo Juninho”. Lá atrás, a mulher dele piscou. Depois, sozinha comigo no elevador, ela revelou que Juninho é um diminutivo justo para o tamanho das cabeças do sujeito.

Cabeças? Deu um branco de alguns segundos e eu imaginei coisas. Então, antes que eu pedisse explicações ela acrescentou: “Sim, cabeças. Tem uma lá embaixo que só mija e outra, grudada no pescoço, que fede de tanta porcaria dentro.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Conto - Dupla obsessão


Tem certo charme, é verdade. Contagia ao telefone, encanta pessoalmente e depois de tudo isso atormenta, principalmente quando a outra parte mergulha no abismo da solidão e rebusca fragmentos.

Quantos estilhaços! Tiros de raspão, joelhos arranhados e a disritmia provocada por sufocos. Beatriz incomoda. Tento acreditar que seus gestos são espontâneos, sua voz é natural, seus passos são iguais aos de tantas outras mulheres que vão e vem.

É fácil fugir quando se sabe que o caminho de volta é transponível, com ou sem chuva. Já me imaginei no fundo de um poço, sem forças para subir. E quem oferece socorro é ela. Vejo-a lá em cima, agachada na borda, estendendo-me a mão.

Numa das escapadas ao canto da memória reservado às impossibilidades, confiei e voltei quebrado. Beatriz não suportou o meu peso e deixou minha mão escorregar quando eu quase podia tocar o rosto dela.

Só depois de refeito do susto e ajuntado os cacos cobrei de mim mesmo se aquela queda foi acidente. Mãos escorregadias, no extremo de situações de acolhida, seguram pelo menos intenções. E ali não houve, que eu me lembre, nem tentativa de aliviar a queda.

Então quando fugi outra vez fui prudente. O mesmo poço e eu lá no fundo, esperando ajuda. Ela chegou e eu recusei suas mãos. Beatriz foi embora e eu pus os pés no chão descrente na chance de haver compatibilidade entre nós.

E cá estou. Às vezes Beatriz insinua, assim eu penso. Mas acordo e assumo que ela só provoca. É demonstração de força manifestada por uma mensagem sentimental bastante clara: eu te desprezo porque te domino.

Vai ver ela tem razão. Mas a obsessão de me ver cair quebrado, para depois espiar os pedaços que ajunto, não deixa de ser um domínio que eu exerço sobre ela. Beatriz quer me ver aos seus joelhos e isso a escraviza.


segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Crônica - Pensamentos conflitantes


O lado de lá tem sombra de árvore, mas eu gosto do sol queimando as gorduras da minha impaciência em ver chegar a noite, grande e de cor indefinida. Dizem que é negra tanto quanto a luz apagada do poste esquecido que serve, além dos cães, aos bêbados. A lâmpada é incandescente quando acesa. Apagada nem preta é. Mente quem diz que ela é branca e fria. Ela é de tom gelatinoso e inspira. Qual sabor se a cereja é vermelha, o abacaxi é amarelo, a uva é vinho e a laranja é laranja. Qualquer gelatina tem o mesmo gosto. Então, se é noite, logo passa por ali a madrugada. É quando o corpo quer cama e a mente, insana e insônia, pede o sol de volta. Queimando no meu quintal e fazendo sombra no vizinho.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Prosa - O iniciante


Perdão, senhora. É meu primeiro dia de emprego novo. E novo também sou na profissão. Providencio e trago agora mesmo outra salada. Prometo que não vai mais acontecer. É muita correria e eu vou me adaptar. Claro que aprendo. A senhora pode ter certeza disso. Espero que volte amanhã e faço questão de atendê-la. Então já serei experiente nas tarefas básicas, mas não tanto quanto a vida exige. Provavelmente o suficiente para não errar como hoje.

Eu vim de outra profissão na qual gastei trinta e cinco anos de minha vida. Tenho curso superior e fui, em certa fase, profissional invejado. Ganhei dinheiro e o pouco que deixo para a família é fruto de muita labuta. Ah, cometi exageros. Às vezes acumulei três contratos de trabalho. Houve quando atendi ao mesmo tempo quatro patrões. Dormia pouco, comia mal e nem feriados e fins de semana guardei. Se eu disser que perdi peso estou mentindo. O que tive foi um inchaço medonho, fiquei feito uma bola. Cara arredondada, barriga estufada, peitos caídos e pálpebras assustadoras apareciam no espelho.

A família, naquele tempo, aceitou com normalidade aquele meu jeito de viver. As crianças passaram a adolescentes e pouco acompanhei o desenvolvimento delas. O meu papel, em casa, era ganhar dinheiro para dar a elas boa casa, bom carro, excelente plano de saúde, escola privada de reputação e roupas, calçados, lazer que dessem estatus. Consegui cumprir a minha missão.

Nunca as crianças cobraram a minha ausência das coisas da família. Jamais os adolescentes disseram que eu podia ser um pai igual os dos amigos. Jovens os meus filhos seguiram seus caminhos como se fossem independentes. Lembro ter sido lembrado por eles no pagamento da faculdade, na compra de materiais caros de cursos caríssimos, no repasse da mesada e no acerto dos cartões de crédito. Então me toquei que deixei de ser pai e passei a ser um patrocinador.

Adultos, eles se encontram comigo quando podem. São momentos raros e cada vez menos freqüentes. No último Natal só recebi a visita de um deles. Os outros estavam ocupados. Evito pensar que da riqueza que eu tive pouco me resta hoje. Será que se fosse o contrário eu teria mais visitas?

E a senhora me ouvindo! Não é sempre que perco o controle da fala. Hoje senti necessidade e incomodo justo quem me cobra com respeito e educação a salada que troquei. Mil desculpas, senhora. Nada a ver com a minha idade. Estou com quase sessenta, mas tenho lucidez para mais vinte pelo menos. É confusão de garçon iniciante.


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Crônica - A folia que acaba


A entrada da quarta-feira de cinzas acaba este ano com uma folia, a do carnaval. A maioria dos brasileiros entende-a como um momento. Chegou, festou, terminou. E no ano que vem haverá mais. Trabalhadores que levam nas costas o país, estes brasileiros assumem seus papéis na imensa linha de produção que toca a economia brasileira.

E mesmo que temporariamente inativos, por culpa do desemprego, consomem, pagam tributos, financiam os diferentes níveis do poder público e pagam os salários de vereadores, prefeitos, deputados estaduais, governadores, deputados federais, senadores, ministros, secretários estaduais e primeiros escalões municipais, além do grande contingente de colegas trabalhadores, que são os servidores públicos. Financiam também o judiciário, as entidades sindicais e até mesmo organizações empresariais que vivem sob a tutela do Estado, este que é mantido com o dinheiro do contribuinte.

A quarta-feira de cinzas, enfim, encerra um período de direito à fantasia. Não tanto aquela das roupas que se vestem. É mais do sonho de ser pierrô e conquistar a sua colombina. Ou da colombina que ousa mais e se declara ao pierrô. E como no Brasil o julgamento é pelo avesso, cabe a quem faz o país funcionar uma inconsciente culpa: agora começamos a trabalhar.

Mentira. Os que se fantasiaram de seus desejos, mesmo que este fosse simples, como sair descompromissado atrás de um bloco ou trio elétrico, trabalham o ano todo, antes e depois do carnaval. E se o calendário de feriados é esticado a culpa não é deles. De todo o período trabalhado de um ano, os trabalhadores assumem, por cerca de cinco meses, o papel de contribuintes. Os levantamentos dos institutos sérios não mentem: cinco dos doze meses de trabalho são para pagar impostos.

Para estes acabou a folia do carnaval. Então os holofotes que raramente dão close nos integrantes da força produtiva brasileira são direcionados aos oportunistas. Políticos, aproveitadores, bandidos e outras coisas mais prosseguem com um carnaval diferente, de roubalheira, injustiça e nem um pingo de vergonha. A fantasia é a cara de pau. A passarela são os bastidores, os cantos obscuros do país, os locais que um cidadão comum não freqüenta. O prêmio por esta folia, infelizmente, ainda é a impunidade.

     

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Conto - O atendente


Seu ofício é atender porque um atendente atende. Bem ou mal, de coração ou com descaso, ético ou nem tanto. Fez parte do treinamento, antes de assumir a função, uma recomendação básica: se tiver cem pessoas na fila, a prioridade sempre será daquela que por ventura vier indicada por alguém da diretoria. Depois os recomendados pelos gerentes. Em seguida os que vierem acompanhados pelos chefes de seções.

Quanto aos demais, que são aquelas cem pessoas da fila, a regra é saber interpretar cada uma delas pela roupa que usa, pela expressão do rosto e se for o caso, sendo mulher, pela beleza. As feias que fiquem por último. Os pobres também. E o que tem a ver a expressão do rosto? Fácil. Veja se não ter jeito de ser encrenqueiro. Criadores de caso são atendidos na frente, mas saem do guichê sem ter seus negócios fechados. Por isso é fundamental saber criar falsa expectativa. E um bom atendente é craque nisso.

O velhinho de 68 anos era o penúltimo da fila. Tinha que esperar as noventa e oito pessoas à frente, além de onze recomendados pela diretoria, nove parentes dos proprietários da empresa, trinta e um indicados por gerentes e cerca de uns tantos acompanhados por chefes de seções.

Roupinha simples, carinha de gente boa tamanha era a calma que demonstrava, ninguém dava a ele um saldo bancário invejavelmente gordo. Rico não se veste daquele jeito, imaginou o atendente. Rico não enfrenta fila, dá um jeito de subornar, continuava a pensar o atendente.

Acontece que o velhinho era rico não só no banco e nas propriedades que tinha. O velhinho era rico de cidadania. E nem fazia questão de esperar. Aproveitava as ocasiões para conversar. Não fosse o mal súbito ele teria sido atendido cerca de sete horas depois que entrou na fila. Mas foi muito antes, mais ou menos uma hora e meia, socorrido pelo Siate.

A culpa foi do atendente. Ninguém da empresa assumiu que tinham ensinado o atendente a ser sacana, principalmente depois que tomaram ciência: o velhinho de roupa simples e cara de pobre era, no mínimo, um promissor dono de conta corrente e imóveis.


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Crônica - Na moita


É assim mesmo. Nunca ele conjugou o verbo defecar porque não assume as fezes que deixa por onde passa. Ainda criança nos braços da mãe o chorão era um encanto. Comadres invejosas diziam que aquilo era um anjo. Cara rechonchuda e vermelha, dobras salientes nas pernas, meio vesgo, braços mais compridos que os dos normais, imagina-se que aquelas mulheres gargalhavam por dentro. A feiúra ardia nos olhos de quem via.

O pai, menos sentimental, desconfiava que algo estava errado. Certa ouviu-se dele, naqueles momentos em que o sujeito desesperado fala sozinho, indagações do tipo, será que minha mulher me traiu com um lobisomem? Espalhado o registro, a boataria tomou conta das redondezas. Na mercearia, único estabelecimento num raio de alguns quilômetros percorríveis em quarenta minutos de bicicleta, já tratavam de investigar quem seria o monstro. E as suspeitas caiam sobre os mais feios. Nunca alguém desconfiou dos de comportamento estranho.

Mas não foi com a aparência abominável que o menino tornou-se referência do local. A má fama veio com o rastro de fezes que ele deixava. Como dizia o Juca, ajudante da mercearia, o moleque caga pra falar, caga pra rir, caga pra estudar, caga pra chorar e caga pra respirar. É um cagão de natureza.

Fora as cagadas o menino ia bem. Nos estudos, sacaneava colegas e professores e se dava como inteligente. Nas brincadeiras, tinha preferência pelas maldosas. Já adolescente e com ralas moitas de pentelhos avermelhados coçando ao redor, nunca ia ao máximo. Mexia, estimulava e na hora de colocar o ponto final se mandava. Para os colegas dizia que fazia aquilo para fazer a mulher sofrer. Mas a turma tinha outra versão: o bimbo nunca subia acima da diagonal. Ficava sempre cabisbaixo. Portanto, não havia como escrever com uma caneta torta e sem tinta.

Ainda jovem o rapaz se meteu na política. Como líder sem liderados, além de defecar se aperfeiçoou nas maldades. Virou um cara de bastidor. Articulava, armava, puxava tapetes, enganava, mentia e para comemorar vitórias soltava pum. Tanto pela boca quanto por baixo. De ambos os orifícios aquilo fedia igual uma dúzia de ratos mortos apodrecendo no galpão. Para os que moram em condomínios verticais, algo parecido com ratos mortos secando no fosso do elevador.

Aliás, um especialista. Especialista em enganação. Tanto que foi eleito. Ficou quatro anos sem fazer nada e foi reeleito. Continua sem fazer nada. E pelo visto vai longe, pois já tem planos para as futuras cagadas. O eslogam da próxima campanha está pronto: O único que fica na moita e caga!


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Crônica - Plantar bananeira


Sim, o cérebro fica espatifado se ele estiver gelatinoso por culpa do sol forte destas terras vermelhas do Norte do Paraná. Mas se ajeita em seguida ao pulo para voltar ao normal, sem que se exija chacoalhar a cabeleira.

Lei da natureza. Algo parecido com o ditado popular patenteado por Juarez da Paçoca, doceiro de tamanha habilidade para mexer com o preparo com colher de pau. Nunca espirrou quentura na cara nem quando a encomenda era de polenta doce, baseada no fubá, imitando um curau tão amarelo quando o feito de milho.

Sabor inigualável. Aliás, a conversa girava no entorno da frase famosa do paçoqueiro: o mundo ficou redondo de tanto girar. Verdade, na teoria é cópia de mau gosto daquela da invenção da roda: o quadrado perdeu as quinas com a pressão rotineira. Mas, na prática, tem gente que ri ao ouvir o ditado só para evitar indelicadeza. Outros apelam para palavreado condenável. E há quem acredite.

Pergunte a um político o que ele acha da gurizada fandangueira? Se for de Brasília o sujeito, metido em terno preto, camisa branca e gravata vermelha, vai responder que os infantes e os adolescentes do Distrito Federal são filhos dos trabalhadores que construíram a Capital Federal.

Ninguém fará referência hoje ao grupo musical que incendiou o teto de uma boate de quinta categoria em Santa Maria, lá no Rio Grande do Sul. É muito pedir que um político se lembre do que aconteceu sei lá quando.

Eis um grande exemplo de cérebro gelatinoso. Tem prefeito que foi empossado em primeiro de janeiro e quando disseram a ele para assumir o cara sumiu. Aqui no Norte do Paraná tem exemplos disso. Outros deles deram muito trabalho na posse. É que quando disseram a eles que iriam empossá-los, o sujeitos pensaram que os vereadores estavam prontos a jogá-los num poço. Concordo, não há nenhuma graça nisso. Eu apenas transcrevo o que é fato.

O teste para ver a consistência é realmente plantar bananeira. Juram os analistas que um deles tem a cabeça tão dura que decidiram usá-lo de ponta cabeça como um perfurador de solo. E o apelido dele, pelas costas, é picapau sem pena. Ajuntou uma coisa na outra, porque além do cérebro ser feito um bloco de cimento, o cara é tão chato que tortura sem dó.

Ontem vi um grupo de universitários que assistem shows de sertanejo batendo com a cabeça num muro. Era uma competição. Quem rachasse primeiro ficava fora da festa de formatura. Então alguém do outro lado gritou ser preferível ser excluído. E defendeu seu ponto de vista igual se faz uma monografia copiando e colando da internet: vai que contratam um grupelho musical que tem um vocalista tão ruim a ponto de compensar a falta de talento soltando fogos de artifício dentro de um ambiente fechado?

Plantar bananeira é bom por causa disso. Quem quiser entre na fila, pois muita gente tem peito e se submete. Só tirem a mulher melancia e a mulher pêra da frente. Elas ficam lá no fim. É muito peso para ser colocado de ponta cabeça. E acreditem: não haverá nenhum vereador e prefeito para ser colocado na frente. Qual deles, por aqui, teria coragem de colocar a sua excrescência mental à prova?   


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Crônica - Lembrança vaga e vaga lembrança


É tudo a mesma coisa ou nada a ver. Lembrança vaga, neste momento, é da colega que se tornou amiga e se foi desconheço a causa. Por isso comparo a ausência dela a um estacionamento de condomínio, o que, no mínimo, é excessivamente material. E para que ter sentimento?
Aliás. Concluo que ao deixar o espaço desocupado fujo das interrogações e faço de conta que o vazio não me afeta. E quem, por acaso, nunca escapuliu passando por cima da cerca de arame farpado?
Nessa sequência obrigo-me a definir a vaga lembrança como um estado de espírito assumido. Como em Memória da pele, a música de João Bosco e Wally Salomão, esqueço dos lábios, dos olhos, da cor dos cabelos e da maciez do rosto.
Sei que eram carnudos e convidativos atrás do brilho provocativamente trabalhado. Que boca! Só não consigo reproduzir um sabor igual e não me refiro ao gosto que mexe com o palato. Falo das sensações que arrepiavam.
Azuis ou verdes? Os olhos confundiam, e como. Se os vi vermelhos por choro de alegria me escapa a memória. E neste ponto eu vejo a vaga lembrança que é a da lembrança vaga que eu me provoco. Mas tenho como um arquivo de vídeo o vermelho do choro de tristeza. Só evito buscar se o causa fui eu. Isso é lembrança vaga.
Quanto aos cabelos, castanhos. Lisos que ganhavam ondas aos sinais de chuva. Ondas que ficavam lisas na cadeira do salão. O trecho branco da lembrança é justo aquele que me cobra: como eles deixavam o rosto da amiga, que antes era colega, mais bonito? Encaracolados ou surpreendentemente esticados?
Quando éramos colegas elogiei as duas formas. É difícil pensar que eu menti num casou ou outro. Depois, já amigos, houve quando fui honesto, assim como ocorreram derrapagens e deixei de ser franco. Tenho vaga lembrança das duas situações. É a lembrança vaga que me dou ao direito.
E não lembro do cheiro dela. Apenas assumo que era um perfume contagiante. E quantas vezes sai do chão atrás daquela fragrância? Isso eu não lembro, mas admito que foram corridas rotineiras enquanto existiram percursos.