quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Prosa - O iniciante


Perdão, senhora. É meu primeiro dia de emprego novo. E novo também sou na profissão. Providencio e trago agora mesmo outra salada. Prometo que não vai mais acontecer. É muita correria e eu vou me adaptar. Claro que aprendo. A senhora pode ter certeza disso. Espero que volte amanhã e faço questão de atendê-la. Então já serei experiente nas tarefas básicas, mas não tanto quanto a vida exige. Provavelmente o suficiente para não errar como hoje.

Eu vim de outra profissão na qual gastei trinta e cinco anos de minha vida. Tenho curso superior e fui, em certa fase, profissional invejado. Ganhei dinheiro e o pouco que deixo para a família é fruto de muita labuta. Ah, cometi exageros. Às vezes acumulei três contratos de trabalho. Houve quando atendi ao mesmo tempo quatro patrões. Dormia pouco, comia mal e nem feriados e fins de semana guardei. Se eu disser que perdi peso estou mentindo. O que tive foi um inchaço medonho, fiquei feito uma bola. Cara arredondada, barriga estufada, peitos caídos e pálpebras assustadoras apareciam no espelho.

A família, naquele tempo, aceitou com normalidade aquele meu jeito de viver. As crianças passaram a adolescentes e pouco acompanhei o desenvolvimento delas. O meu papel, em casa, era ganhar dinheiro para dar a elas boa casa, bom carro, excelente plano de saúde, escola privada de reputação e roupas, calçados, lazer que dessem estatus. Consegui cumprir a minha missão.

Nunca as crianças cobraram a minha ausência das coisas da família. Jamais os adolescentes disseram que eu podia ser um pai igual os dos amigos. Jovens os meus filhos seguiram seus caminhos como se fossem independentes. Lembro ter sido lembrado por eles no pagamento da faculdade, na compra de materiais caros de cursos caríssimos, no repasse da mesada e no acerto dos cartões de crédito. Então me toquei que deixei de ser pai e passei a ser um patrocinador.

Adultos, eles se encontram comigo quando podem. São momentos raros e cada vez menos freqüentes. No último Natal só recebi a visita de um deles. Os outros estavam ocupados. Evito pensar que da riqueza que eu tive pouco me resta hoje. Será que se fosse o contrário eu teria mais visitas?

E a senhora me ouvindo! Não é sempre que perco o controle da fala. Hoje senti necessidade e incomodo justo quem me cobra com respeito e educação a salada que troquei. Mil desculpas, senhora. Nada a ver com a minha idade. Estou com quase sessenta, mas tenho lucidez para mais vinte pelo menos. É confusão de garçon iniciante.


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