domingo, 16 de junho de 2013

Crônica - Barcos são feitos de rascunho


Fiz um barco de papel e escrevi no casco: agora eu vou. Ainda me falta um rio largo e de águas mansas, suficiente para ir. O mar causa arrepios. Minha embarcação é precária, construi com folhas de um caderno cujas notas traçadas com um lápis quase se apagaram. Faz tanto tempo que usei a matéria-prima para rascunhar poemas que nunca chegaram ao fim. Quando acertei na métrica me faltaram as rimas. E foi que achei as duas coisas justo no momento em que findou a inspiração.

Procurei na gaveta do armário um pouco de criatividade. Nada que encontrei tinha uma embalagem avisando que aquilo continha talento. Nem sei de que jeito ela vem, se é pó ou pomada, líquido ou spray, precisa ferver ou se toma frio. Ignoro se causa um impacto e as letras, assim por diante, correm livres e ligeiras pelas linhas. Queria muito encher páginas dizendo coisa com coisa. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis e vinte, vinte e um, quanto mais. Completas, em letras miúdas e pontuação conferida. Exclamação quando couber, interrogação se preciso, vírgulas nos lugares exigidos e reticências. Muitas reticências permitidas em frase compostas especialmente para serem fechadas com elas.

Experimentei temas variados. Abusei do amor, sou confesso. A leitura do que grafei ficou sem ritmo, longe pensar em uma declamação. Fucei as entranhas do abstrato e causei desastres. Saíram declarações pontuais e pareceram vulgares, batidas e enfadonhas. Decidi aperfeiçoar o concreto e o resultado foram afirmações cotidianas sobre aquilo que é trivial. Por isso a prosa que propus deu em textos descritivos de tamanho, cor, formato, abrangência, localização, espessura e peso.

Foi assim que eu virei um construtor de barcos. Conheço modelos diferentes, sei fazer as dobras sem causas rupturas nos cascos. A chuva já demora, mas ela vem a qualquer hora dessas. Sou paciente e espero. Quando a água descer vou junto, nos meus barcos, e levo neles poemas que tentei escrever e que viraram rascunhos, perfeita matéria-prima para construir embarcações. Agora eu vou. Para algum lugar onde haja permissão para rabiscar sem rima e sem métrica o sonho da viagem para onde se quer ir. As águas é que vão me levar e não terei rascunho para voltar. Que venha a chuva, porque agora eu vou. 

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