Fiz um barco de papel e escrevi no casco: agora eu vou. Ainda me falta um rio largo e de águas mansas, suficiente para ir. O mar causa arrepios. Minha embarcação é precária, construi com folhas de um caderno cujas notas traçadas com um lápis quase se apagaram. Faz tanto tempo que usei a matéria-prima para rascunhar poemas que nunca chegaram ao fim. Quando acertei na métrica me faltaram as rimas. E foi que achei as duas coisas justo no momento em que findou a inspiração.
Procurei na gaveta do armário um pouco de criatividade. Nada
que encontrei tinha uma embalagem avisando que aquilo continha talento. Nem sei
de que jeito ela vem, se é pó ou pomada, líquido ou spray, precisa ferver ou se
toma frio. Ignoro se causa um impacto e as letras, assim por diante, correm
livres e ligeiras pelas linhas. Queria muito encher páginas dizendo coisa com
coisa. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis e vinte, vinte e um, quanto mais.
Completas, em letras miúdas e pontuação conferida. Exclamação quando couber,
interrogação se preciso, vírgulas nos lugares exigidos e reticências. Muitas
reticências permitidas em frase compostas especialmente para serem fechadas com
elas.
Experimentei temas variados. Abusei do amor, sou confesso. A
leitura do que grafei ficou sem ritmo, longe pensar em uma declamação. Fucei as
entranhas do abstrato e causei desastres. Saíram declarações pontuais e pareceram
vulgares, batidas e enfadonhas. Decidi aperfeiçoar o concreto e o resultado
foram afirmações cotidianas sobre aquilo que é trivial. Por isso a prosa que
propus deu em textos descritivos de tamanho, cor, formato, abrangência,
localização, espessura e peso.
Foi assim que eu virei um construtor de barcos. Conheço
modelos diferentes, sei fazer as dobras sem causas rupturas nos cascos. A chuva
já demora, mas ela vem a qualquer hora dessas. Sou paciente e espero. Quando a
água descer vou junto, nos meus barcos, e levo neles poemas que tentei escrever
e que viraram rascunhos, perfeita matéria-prima para construir embarcações.
Agora eu vou. Para algum lugar onde haja permissão para rabiscar sem rima e sem
métrica o sonho da viagem para onde se quer ir. As águas é que vão me levar e
não terei rascunho para voltar. Que venha a chuva, porque agora eu vou.
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