terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Conto - Dupla obsessão


Tem certo charme, é verdade. Contagia ao telefone, encanta pessoalmente e depois de tudo isso atormenta, principalmente quando a outra parte mergulha no abismo da solidão e rebusca fragmentos.

Quantos estilhaços! Tiros de raspão, joelhos arranhados e a disritmia provocada por sufocos. Beatriz incomoda. Tento acreditar que seus gestos são espontâneos, sua voz é natural, seus passos são iguais aos de tantas outras mulheres que vão e vem.

É fácil fugir quando se sabe que o caminho de volta é transponível, com ou sem chuva. Já me imaginei no fundo de um poço, sem forças para subir. E quem oferece socorro é ela. Vejo-a lá em cima, agachada na borda, estendendo-me a mão.

Numa das escapadas ao canto da memória reservado às impossibilidades, confiei e voltei quebrado. Beatriz não suportou o meu peso e deixou minha mão escorregar quando eu quase podia tocar o rosto dela.

Só depois de refeito do susto e ajuntado os cacos cobrei de mim mesmo se aquela queda foi acidente. Mãos escorregadias, no extremo de situações de acolhida, seguram pelo menos intenções. E ali não houve, que eu me lembre, nem tentativa de aliviar a queda.

Então quando fugi outra vez fui prudente. O mesmo poço e eu lá no fundo, esperando ajuda. Ela chegou e eu recusei suas mãos. Beatriz foi embora e eu pus os pés no chão descrente na chance de haver compatibilidade entre nós.

E cá estou. Às vezes Beatriz insinua, assim eu penso. Mas acordo e assumo que ela só provoca. É demonstração de força manifestada por uma mensagem sentimental bastante clara: eu te desprezo porque te domino.

Vai ver ela tem razão. Mas a obsessão de me ver cair quebrado, para depois espiar os pedaços que ajunto, não deixa de ser um domínio que eu exerço sobre ela. Beatriz quer me ver aos seus joelhos e isso a escraviza.


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