sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Crônica - Boas novas e novas boas


Sexta-feira, vinte e oito de dezembro de dois mil e doze, hora do almoço. O teclado do tablet é desobediente. Ou os dedos são gordos. Até aqui a revisão evitou erros, mas pode ser que a partir de agora os olhos enganem o cérebro. É assim que a gente costuma cometer equívocos: digita acima ou ao lado e sai a letrinha de baixo. A que a gente quer apertar escapa da nossa capacidade de escrever com sobriedade.

Ébrio! Após uma colher e meia de arroz com molho de tomate, saladinha num canto do prato, um naco fino de carne e queijo grelhado, as pálpebras descem. Nunca pela quantidade da comida. Sempre pelo calor do começo de verão. O termômetro da esquina, desvairado, marca setenta e dois graus. É a insolação que faz isso. Não há componente eletrônico que funcione com febre.

E o texto, enrolado, chega finalmente ao terceiro parágrafo. Minha mulher leria o que digo até aqui e diria que está maravilhoso. É que eu tenho muito influência sobre ela. Fora o cigarro ela não tem qualquer restrição quanto a mim. Pelo contrário, uma admiração mecânica , automática, desprezadamente admitida. Às vezes tenho a impressão que é pouco caso. Depois aceito que é fruto da convivência de 32 anos. Haja tolerância de ambas as partes...

Mas, enfim, por que divago num momento que tende ser promissor?  Eu poderia trabalhar um balanço do ano que se vai. E falar de política? De mim mesmo? Da cobiçada vizinha do andar de baixo? Da Dilma, Lula ou do ministro Barbosa? O gordo que perdeu dezessete quilos continua balofo. Entre eu e ele, confio neste que não recebeu seis milhões de reais para fazer ginástica, dançar esquisitice, falar bobagem e influenciar equivocados. Perco muito peso correndo pela sobrevivência. E o salário, ó!

Também não falo do rei cantor e seu show de final de ano na televisão. Nem tenho como comentar, pois não assisti. De ouvido sei que ele cantou a música que faz sucesso por causa da novela, porque o vizinho do quinto andar estourou o volume do seu plasma quarenta e duas polegadas e encheu todo o prédio de babaquice.

Ainda ébrio, lembro da vitrola antiga que minha mãe guardava com zelo num canto do quarto, sobre uma penteadeira que aceitava, além de batons, pó de arroz e perfumes, escovas de lustrar sapatos. E tinha um setenta e oito rotações que rodando trazia a voz de Vicente Celestino: “Tornei-me um ébrio...”

Confissão desnecessária. Quem é que nunca ficou bêbado de álcool, amor, perfume barato no corpo da mulher descendo no elevador, querosene usado no condomínio para limpar vidro, carro antigo com carburador entupido ou espumante de baixa qualidade? Tudo isso é vinho tinto seco adocicado para enganar criança. Goela abaixo faz a sobriedade bater no teto e resvalar na descida por encostos de cadeira, quina de mesa, porta aberta de guarda-roupa e bicicleta de menino travesso deixada no meio da sala.

Ao tocar o chão a sobriedade está tontinha. É assim que surgem os ébrios, sejam eles cantores, jornalistas, cronistas, políticos ou muito mais. Cinco minutos para voltar ao trabalho e enfrentar a jornada vespertina. Hora de fazer a cuminância. Aliás, que palavrão esquisito! Cuminância. O pessoal da educação é viciado em usá-la. Cuminância das atividades realizadas durante o ano! Nem toque de charme o uso da dita proporciona.

Então, depois de tantos devaneios, só me resta pedir a mim mesmo que eu tenha inspiração e criatividade para prosseguir contista e cronista neste finalzinho de ano e em dois mil e treze inteiro. Juro que se eu fosse famoso e rico escreveria só quando desse vontade. Como estou do contrário, até esqueço de desejar, de coração, aos meus fiéis leitores, um Ano Novo muito promissor.


quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Conto - Para um filho distante


Silvia passou o Natal. Na ceia, cercada por familiares, parentes, amigos, conhecidos e muito menos, sentiu-se sozinha. Lá fora, fogos de artifícios nem deram luzes coloridas ou fizeram barulho. No amplo salão de um clube social, aperitivos e coquetéis perderam o sabor até na hora do brinde.

Ela bem que gostaria de ter se ausentado dali para sentir de fato a solidão isolada no apartamento do nono andar de um bairro nobre. Da janela da sala é possível ver distante. À noite, faróis de carros vão e vem. E nunca se sabe qual é o destino dos motoristas que os conduzem.

A necessidade de isolamento é um estado de espírito. Entre forçar o riso nas brincadeiras de troca de presentes e engolir pausadamente o espumante, à meia luz e meia dose, Silvia, se tivesse ousadia para desafiar regras e pisar nas convenções, escolheria o chão de piso frio. É onde ela se entregaria, deitada em poucas roupas, a pensar no passado e no presente. O futuro, quem diria, dependia de acontecimentos.

A dor que a gente sente é definível. Chega-se ao ponto e à causa mesmo diante de um diagnóstico precário. Assim dizemos que a ardência é física, fruto de uma torção, um corte na pele, uma queda a trincar ossos e distender músculos. Ou o sofrimento tem causa psicológica, culpa de um coração atormentado. O amor, por exemplo, pode ser uma doença e leva à angústia, depressão, revolta, ódio, ciúmes e outras crises.

Queimam os músculos de Silvia bem nos ombros. A nuca lateja e faz subir pontadas no cérebro. A dor de Silvia é física e psicológica. A física, que tenciona o pescoço e estonteia a cabeça, é consequência da debilidade da alma que faz pensar, chorar, querer, retornar, ficar, adiantar e fugir. Nunca se sabe o rumo a ser tomado.

Silvia sofre de amor. Há anos ela está longe de seu filho. Dele, quando muito, escuta a voz ao telefone. Nos sonhos alimenta a imagem do menino que nunca envelhece, pois o que ficou dele desde a despedida anos atrás é a figura de um jovem entusiasmado com o plano de ir, crescer, vencer e um dia voltar glorioso.

Faz tanto tempo e nada se consolida. A saudade mata quando é impossível reformular projetos ou fazer de conta que eles nunca foram rascunhados. 


quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Conto - Mudança

Passada a correria dos preparativos natalinos Euzébio é uma espécie de mandruvá despencada das folhas da mandioca. Estatelada sobre a terra quente e com todo o costado exposto ao sol, a taturana ferve e amolece. Quando muito se estica rumo ao terreno onde a ilusória sombra promete alívio. Não do mormaço, pois este incomoda até na água.

É bem o que Euzébio imagina enquanto descansa na cadeira de plástico. Desconfortável, faz o suor descer pelo encosto e empapar camisa. Se Euzébio se levantar para procurar passagem de vento, lá a claridade da luz do dia aquece muito mais até porque o vento é leve e ligeiro, com intervalo cada vez mais demorado entre um assopro e outro. E se Euzébio permanecer à sombra, onde ele está, a impressão é que sobe do piso um redemoinho de ar quente.

A preguiça de Euzébio não é física. Pai, avô e bisavô, ele e dona Marilda, parceira de 49 anos, fizeram tudo o que tinha que ser feito para receber filhos,filhas, noras, genros, netos e bisnetos no Natal. De costumes antigos, ambos são do tempo da mesa farta, com quatro ou cinco carnes diferentes, arroz, macarrão, salada, guaraná, refresco, cerveja, vinho, espumante, melancia, laranja, bolo e tortas doces e salgadas. É preciso muita fome para provar um tanto de cada prato.

Tudo preparado em casa. Funcionam simultaneamente desde a véspera o fogão a gás, o forno a lenha, a churrasqueira, os dois liquidificadores da casa, o refrigerador duplex e o comunzinho, antigo mas de boa marca e resultado excelente. Do início do almoço até o meio da tarde ninguém pode ficar sem mexer a boca. Senão os velhos ficam incomodados.

A casa de Euzébio e dona Marilda ocupa o quintal de um bairro nem longe e nem perto da região central da cidade. É uma localidade antiga, onde as primeiras famílias se estabeleceram e passaram as propriedades de pais para filhos. Ainda há construções em madeira. Enormes, são cercadas por árvores frondosas e terrenos livres dos cimentos invasores. Se passam carros na rua em frente com buzinas, roncos e músicas em volume escandaloso, nos fundos ainda há como trazer um pouco do passado ao presente.

Antes o casal e sua cria festejavam ali mesmo. Depois do almoço cochilavam no quintal e só após refeitos do amolecimento que a refeição causa iam juntos para a pia. Com os casamentos, os filhos e as filhas passaram a ser meros frequentadores desses encontros anuais. Agora, das duas filhas casadas uma está divorciada. Um dos filhos, casado e morando longe, desprezou o apelo dos pais e nem uma ligação telefônica fez para desejar Feliz Natal.

O cansaço de Euzébio é, na verdade, mais um desânimo por sentir que está perdendo os laços familiares. Ele nunca se imaginou controlando a cria. E a indignação é por se sentir controlado. Os filhos, as filhas, os genros, as noras e seus rebentos só aparecem quando é oportuno estar presente. Esse é o cansaço de Euzébio. Se hoje é assim, como será no Natal do ano que vem? A pergunta, feita com insistência para si mesmo, é uma tortura. No chão queimando o mandruvá não consegue subir às folhas.

 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Crônica - Dia longo, noite curta

Entre o sol!stício de dezembro e o fim do mundo fico com o primeiro. Teremos no Hemisfério Sul, neste 21 de dezembro de 2012, o dia mais longo do ano. Dane-se para o sono, pois a noite, consequentemente, será curta. Meu filho, trabalhando no Japão, poderá dormir mais e enfrentará jornada de trabalho menor, pois no Hemisfério Norte é o contrário daqui. Lá está muito frio.

Aqui a primavera cede lugar ao verão registrando mais de 30 graus nos termômetros. Os dias mais quentes serão torturantes e as chuvas de janeiro, se vierem, lavarão o suor dos nossos corpos. Já o fim do mundo é uma interpretação equivocada de alguns seres humanos de agora do Calendário Maia, aquele concebido e colocado em prática lá pelo século VI antes de Cristo.

Na verdade, o fim do Calendário Maia, que tem ciclo de 5.125 anos, significa o encerramento de um período. Então vieram os fazedores de dramas junto com os oportunistas e difundiram que findo este ciclo o mundo se acaba. Tem gente que acredita. Na França a polícia impede a entrada de alguns crentes numa localidade que seria uma espécie de refúgio.

Outro dia assisti um entendido no assunto tentando explicar o fim do mundo, segundo a Bíblia. Foi um desastre e olha que ele é padre. Leigo, entendi que não é bem assim. O que teremos é um novo céu e uma nova terra com a volta Dele. Ignoro o quanto eu sou pecador. Portanto desconheço se fico na parte velha ou remodelada.

Certamente o mundo vai acabar neste 21 de dezembro de 2012 para muitos habitantes do Planeta. E boa parte dos despatriados do Universo perderão o chão por motivos banais: a mulher que descobre nesta sexta-feira que é traída pelo marido dirá para a confidente: “O meu mundo acabou”. O marido que souber nesta sexta que é traído pela mulher desabafará ao amigos: “PQP! Logo eu com galho na cabeça! Mas também não é o fim do mundo”.

Chequei o saldo das contas bancárias e revisei a lista de contas a pagar por cinco vezes nesta quinta, véspera do dia 21. Tudo certo! Não vai sobrar, mas tem o suficiente para comprar mais oito panetones daqueles que são vendidos dentro de caixas de papelão. Os de latas são mais caros. Uma unidade custa três ou quatro vezes mais que o de papelão.

Enfim, o meu mundo financeiro não vai ruir no dia do encerramento do Calendário Maia. As contas vão ficar no azul até a virada do ano e a entrada do salário em janeiro. Por isso estou otimista. O fim de um ciclo dos maias é o começo de um bom tempo para mim. Aliás, vai dar para colocar em prática aquele antigo projeto. E vou me dar bem.


quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Crônica - Meu grande amigo


O espírito do Natal bateu na minha porta na tarde de domingo.  Ele depositou um embrulho com panetones e caixas de bombom sobre o tapete, apertou a campainha e sumiu pelo elevador acima ou abaixo. Tenho certeza que o visitante furtivo não era o Papai Noel. Faz tempo o velhinho de roupa vermelha e barba branca, postiça, me evita.

Entrei numa com ele anos atrás. Estava Noel na frente de uma loja de calçados às cinco da tarde de um sol de dezembro no Norte do Paraná. Muito diferente do Pólo Norte. Sarrei dos fiapos brancos na túnica e no gorro. Perguntei se a neve vinha do refrigerador exposto na porta da loja de eletrodomésticos.

E o velhinho suava. Mais por causa das botas apertadas. Ele usava quarenta e a loja que o contratou emprestou uma trinta e oito. Imagine o dedão encostando no bico e esfolando a unha encravada. No calcanhar o calo virava pelota de tanta pressão. Nem balas o Noel da loja de calçados tinha para distribuir. A gargalhada saia desafinada.  A transpiração formava enormes molhados nos sovacos.

Eu ri da situação e não foi com a gargalhada ensaiada dos bons velhinhos. Foi escárnio. Mas ri de pena do coitado. Sabem aquela sensação de bobeira que dá na gente e faz chorar quando é para rir e provoca riso quando é para chorar? Aconteceu. Desde então Papai Noel rompeu comigo, justo num dezembro de desemprego e medo do futuro. Nem um pirulito de açúcar e cabo improvisado com palito de dente ganhei naquele Natal.

Então que boa alma passou pela minha porta para deixar panetones e bombons? Só tinha que ser ele: Seu Otacílio, um vizinho aposentado do INSS. Chamo-o de vizinho pelo fato do adjetivo ser uma referência. Seu Otacílio é o amigo fraterno e solidário do condomínio. Sobe e desce no elevador com outras pessoas e torna-se em qualquer circunstância a presença de respeito no ambiente.

Fala pouco, mas age com o coração. Nunca se mostra prepotente. É um cara simples que a gente, de tanto estimar, nunca se esconde nos vãos do hall de entrada para evitar. Descubro assim que não perdi meus pais biológicos e nem o velhinho que chega do Extremo Norte para vencer o calor de Londrina e trazer alegrias. Eu os tenho. O meu bom velhinho é um grande amigo. 


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Conto - Brinquedos


As formigas em fila indiana são escolares indo. O percurso é longo e há obstáculos: pedras e grama formam colinas e matagais. São dois passos compridos até chegar ao fim do trajeto. E deste lado a visão é outra. As formigas chegam. São soldados marchando pela floresta até o obrigo cavado na terra.

É possível observá-las dos lados. Daqui são carregadoras de plantas enormes a caminho de um jardim. De lá são personagens de um filme na cena de uma retirada. Há ainda a visão de cima. Ficam as possibilidades esgotadas para o que se vê das diagonais. As versões escasseiam na medida em que as formigas levam, sem parar, picotes de folhas verdes para um lugar.

Onde e para que são perguntas que não se fazem. A brincadeira é imaginar um enredo e os brinquedos são as formigas. Buscar causas e justificativas escapa do passatempo e vira estudo. A hora é de ver que as formigas vão ou vem, andam para a direita ou esquerda, levam pedacinhos de folhas para lá ou para cá. E inventar que são pessoas ordeiras fazendo um caminho.

Hoje são elas, ontem foram as borboletas tão raras agora neste canto do jardim. Outrara vinham de monte e com asas de cores variadas. Traziam estampas que lembravam desenhos rabiscados com giz de cera numa folha de caderno velho. Quanto menor a inspiração mais perto de uma razão o rascunhado ficava.

Amanhã haverá outra idéia e quem sabe os passarinhos serão aviões. As britas que cercam as plantas e formam um enfeite circular podem ser ilhas ou tanques de peixes no centro de uma praça perto da igreja. Bancos são improvisados com gravetos. A margarida é o girassol. E o cão que ladra distante faz de conta que é o besouro, logo ali, andando mole por causa do sol.

Sonho que se tem lá em cima, no prédio de apartamentos residenciais. Embaixo passa o asfalto, daqui para lá, de lá para cá. Indo e vindo, com carros correndo sem levar folhas picotadas. Ajeitar a gravata e acertar os punhos toma tempo. Já é tarde, hora de sair para trabalhar. A nostalgia fica na quina do sofá, esperando outro dia de sonhos após o almoço. A vida lá embaixo é outra. Como dói ter que acordar.


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Crônica - O necessário radicalismo


A chuvarada não causa alagamento. O culpado disso é a falta de manutenção das galerias de águas pluviais pelo pode público. Ou, na pior das hipóteses, a inexistência de sistema de escoamento das águas da chuva.

A chuvarada não prejudica o movimento do comércio às vésperas do Natal. O culpado disso é a falta de dinheiro no bolso do consumidor. A maioria espera a entrada da segunda parcela do décimo-terceiro salário para gastar parte nas compras de final de ano.

A chuvarada, ou a ausência dela, não é a causa do racionamento de água. O culpado disso é a falta de investimento de alguém num sistema de captação, tratamento e abastecimento que atenda às necessidades da população.

A natureza é repetidamente colocada no banco dos réus por políticos em discursos equivocados. De tão frequentes, as falas idiotas são assumidas pelos meios de comunicação. É tamanha a insistência da burrice que aos poucos o ouvinte, o telespectador, o leitor e aqueles que navegam na internet aceitam, compassivamente, o absurdo.

Sábado assisti o telejornal e vi um garoto com diploma de jornalista dizer que a chuvarada impediu o consumidor de ir às compras. Entre pensar que a emissora que contrata o novato é parceira da entidade comercial e vive dos anúncios publicitários das empresas, estendi conjecturas e fui ao atrelamento de alguns meios de comunicação ao poder público.

A estes que fazem parte desta cadeia política e comercial sempre interessa a desculpa esfarrada. Se o morro desliza a culpa é dos fenômenos climáticos. Se o deslizamento soterra casas é porque choveu demais. Se as mortes foram muitas em função do soterramento os culpados são os moradores que invadiram o local.

Em Santa Catarina há encostas ocupadas por mansões. Isso seria invasão? Ou invasões só ocorrem quando os morros são ocupados por barracos? Nos dois casos o meio ambiente sofreu agressões e responde com deslizamentos, soterramentos, mortes e, enfim, tragédias.

O menino da televisão, com um diploma de recém-formado em jornalismo, discursa bonito contra os culpados desde que eles não representem interesses da empresa que o contrata. A natureza, aliás, não patrocina programas de interatividade duvidosa: ligue tal número e vote em “a”, “b” ou “c”. Assim, pobre coitado, você patrocina a emissora de televisão, as operadoras de telefonia e divulga os bancadores da programação.

Quem banca mesmo? Os patrocinadores? Vamos para o extremo do radicalismo: hoje a redução do IPI dos carros novos diminui a cota dos municípios brasileiros no Fundo de Participação dos Municípios. É menos investimento em saúde, educação, ação social, asfalto, galerias de águas pluviais, abastecimento de água, cultura e qualidade de vida. Então nós, inclusive os que não compraram carros com IPI reduzido, pagamos para manter as montadoras de veículos em pleno funcionamento.

E temos que ter em mente que quem banca o estado, em suas diferentes esferas, é o contribuinte. Todos nós somos contribuintes, mesmo no momento em que estamos desempregados. Pois compramos um pão e pagamos o imposto que incide sobre o produto. Não é o dono da padaria que recolhe o tributo. Somos nós. O dono da padaria repassa o valor ao consumidor.

Eles pensam que nos enganam. E a gente, quieta no canto, faz de conta que tudo vai bem. E se não fosse a chuvarada estaria melhor ainda. Concorda conosco, repórter novato?


sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Crônica - Roupa molhada, cara borrada


Deu chuva de manga pouco antes do almoço. Foi um quase nada. Os pingos sapecaram a calçada, feito tapa ligeiro que nem arde. Muito aquém do prenúncio que rompeu manhã e seguiu até a hora da prévia de pancada. Nem camisa molhou e mulher de escova no cabelo pouco importou com a leve molhadeira. Fazer o que se o liso virou cacho? Melhor isso do que torneira seca, poeira muita e receio de ficar sem banho.

Alguém abençou a chuva em ato prematuro. Mal pronunciou a última palavra e ela se foi. Devia ter esperado que formasse, pelo menos, uma corredeira na beira da calçada. Que nada. Apressou-se e secou a água escondida dentro das nuvens. Enxutas, as nuvens se dissiparam e deram ao sol todo o espaço do céu.

E bateu a claridade nos lugares onde o opaco anunciava tempo propício a precipitações. No telhado das casas, nas copas das árvores, no concreto da edificação, na alvenaria das casas, no aço dos caminhões, na lata dos automóveis, no asfalto das ruas e na madeira da mesa da varanda aos fundos.

Ela batia nas superfícies e iluminava não somente as imperfeições. Clareava também a fumaça subindo e esquentando. Parecia fervura de fazer vapor no rosto, a ponto de descer suor sem parar das raízes dos cabelos às costas. Camisa de cor escura ficou com mancha úmida. Em rostos femininos a maquiagem virou borrão. Um sorveteiro empurrou carrinho vazio subida acima para buscar mais picolé e abastecer freguesia.

O calor também levou a marca do termômetro para mais de trinta. Nem pássaro voou com aquele tempo. Fez o ancião buscar apoio no tronco do arbusto e foi por fadiga, viu-se nos olhos dele. Obrigou menino a deixar a brincadeira de rua, na calçada em frente de casa, para sentir frio na sala condicionada. Secou garrafa de água e fez sobrar café na xícara do bar adiante. Encheu de preguiça pessoas que almoçaram possibilidade de chuva e retornaram ao trabalho molhados de tanto sol quente.


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Crônica - Charme ensaiado


Tenho dúvidas. Penso Lenita clássica, de sapatilhas e delicadeza nos movimentos. E me pergunto como ela se movimentaria no baião, xote ou xaxado. Provavelmente não perderia classe, mas ficaria inútil se houvesse coreografia para o forró. Por sorte não há.

O que pode acontecer são improvisos de grupos: um joga o braço para trás, os outros repetem; alguém coça o olho, a turma toda se põe a passar as costas das mãos, suadas,  nas retinas. A vida é assim mesmo, cheia de imitações e repetições.

Lenita não serve para o forró. Ela é uma bailarina de mediana para cima. Nunca chegará à versão brasileira do Bolshoi, mas não faz feio. Bem que eu gostaria que ela fugisse um tantinho das regras acadêmicas. E dançasse o seu balé sob acordes menos parecidos com os dos cisnes dos lagos. Um balé moderno, dinâmico, espontâneo é a cara dela, que não assume por ser fiel aos ensinamentos que acumula desde os seis anos de idade.

Lenita, provavelmente, ainda usava fraldas quando seus pais selaram a sua vocação. Entre aulas, exercícios preparatórios, ensaios e disciplina que outras mocinhas da idade desprezaram, Lenita pegou até o jeitinho das grandes bailarinas: magra, alta, rosto delicadamente afunilado e os cabelos presos.

Na festa de seus quinze anos ela tentou. Viu os adolescentes convidados variando ritmos, nunca com perfeição, mas com vontade de parecer samba, hip hop, rock, cirandinha, terere-te-te e outras aberrações. Lenita parecia um robô.

Hoje, aos vinte e sete, Lenita está praticamente descartada para os grandes espetáculos. De dançarina virou ajudante da assistente da terceira auxiliar da professora. Ela ensina os primeiros passinhos aos iniciantes. Ao ver as rugas se acentuando ao redor dos olhos, imagino que as marcas precoces são o preço de uma vida toda de disciplina até na hora de comer.

Nunca vi Lenita morder um cachorro quente lambuzando as mãos com catchup e maionese. Às vezes a encontrei com tiras finas de maçã entre os dedos, e ainda assim com expressão de remorso por ter cometido o pecado da gula. Já tentei imaginar Lenita beijando. É muito difícil produzir na mente uma cena dela se entregando.

Então lembrei a Lenita que treze de dezembro é o Dia Nacional do Forró. Data em homenagem ao Rei do Baião, Luiz Gonzaga, filho de Seu Januário e pai de Gonzaguinha. Ela respondeu com desprezo, aliás resposta que se dá perguntando: “É mesmo?”

Assunto encerrado. Por delicadeza encompridei a conversa. Disse a ela que tem professor que dá aula de street dance. Argumentei que o próprio nome diz: o street é dança de rua e cada dançarino faz o seu estilo, da mesma forma que o grupo que o acompanha usa da criatividade e do improviso para mostrar talento. Enfim, conclui que professor de street dance é piada.

Lenita fez que não escutou. Pegou um biscoito água e sal do pacote aberto, repartiu no meio e dividiu o meio que ficou com ela em dois. No tempo que ela gastou para a mastigação daquele pedacinho eu comi dois pães franceses, o meu e o dela.Tomara que eu nunca veja Lenita dançando forró. Deve ser coisa feia.


quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Conto - Ambiente hostil


Paredes brancas artificialmente iluminadas trazem lembranças nem tanto agradáveis. É um ambiente limpo se olhado com visão cotidiana e despreocupada. Nenhum vírus ou bactéria traz ameaça de infecção. Pelo menos não se enxerga alguma espécie escondida na parede, exceto a pequena mariposa perturbando a lâmpada fluorescente. De onde ela teria invadido o quarto, eis uma indagação que o próprio autor da pergunta faz pouco caso da resposta.

O olho não vê e o coração não sente. É uma verdade relativa. No amor tantos jamais testemunharam, mas ouviram falar. E sofrem. No quarto de paredes brancas a limpeza é tamanha que irrita. Nem um cisco no chão de piso frio. Nem uma ruga no lençol esteticamente exposto sobre a cama. Nem uma teia de aranha na quina do forro de gesso.

Tirando a mariposa já abestalhada de tanto se bater na luz, existiu vida por aqui? E a cama, se levado em conta a decoração que o pano faz sobre ela, serve para se deitar ou é apenas uma peça para enfeitar o lugar? O que sai do tom é o sofá de três lugares. Forrado de corvim marrom causa impacto.Torna-se, porém, acolhedor quando se percebe que ele está ali para ser sentado.

E sem frescura. Com as pernas abertas ou cruzadas, com as nádegas de atravessado, com os pés em cima e até de lado, quase deitando relaxado nas três vagas que ele permite. E para que tanto espaço se a convenção é regra? Alguém e seu acompanhante, ninguém mais.

Dois seres quietos, lado a lado, no sofá. Diante da cama vazia. Nada fazem e nem olham. Não há um tremor de pele, uma reação dos lábios, uma piscada. Se miram para algum canto provavelmente nada enxergam, pois o que há na frente é o branco clareado com luz.

Se há janelas as persianas estão fechadas. Faz barulho do outro lado, mas dentro nada se escuta porque não se quer ouvir o que ocorre lá fora. O ar é condicionado, até nisso o ambiente é produzido para acomodar sabe-se por quanto tempo esse alguém e seu acompanhante enquanto eles esperam.

Horas passadas e os minutos vão girando no visor de acrílico do relógio de parede bege claro. Será que não encontraram um branco? Ou, provavelmente, escolheram o tom pouco escuro para avisar que o tempo se esgota. E nem se dá conta do tique taque que as engrenagens fazem para a madrugada virar manhã, a manhã chamar o calor vespertino e a tarde invocar a noite. É certo: ninguém, naquela circunstância, está disposto a ouvir algo.

Só depois de muito silêncio a enfermeira traz a cadeira de rodas. Alguém é levado para o centro cirúrgico e o acompanhante espera no quarto de paredes brancas artificialmente iluminadas. A mariposa sumiu, não se sabe por onde ela se foi. A cama sequer foi usada, alguém preferiu esperar sua hora no sofá. O acompanhante, inquieto, nem sentado consegue esperar. Hospital é assim mesmo.



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Crônica - Londrina, direitos e palhaços


Tudo a ver esta mistura, desde que a análise seja feita a partir das circunstâncias. Fica o povo excluído de qualquer referência maldosa e acusatória. Creia-se, dos pouco mais de quinhentos e quinze mil habitantes desta terra vermelha temos noventa por cento de cidadãos. O resto é político, assessor de político eleito ou nomeado, cabo eleitoral de político vitorioso ou derrotado, meliante, delinquente, chefe de bando e dono da matilha. Ou, manadas!

É segunda-feira, dez de dezembro do ano de dois mil e doze. Às doze horas a temperatura está em trinta graus numa pequena sala de trabalho. Um enorme aparelho de ar condicionado faz de conta que funciona. Tenta, mas é incapaz de vencer o calor e os erros de instalação. Enormes frestas tiram o efeito da máquina, que consome energia e deixa de atender os que esperam dela, no mínimo, o rebaixamento da marca do termômetro naquele ambiente interno.

Londrina completa setenta e oito anos de idade. É a minha cidade. Nasci nela e no tempo que estive fora percebi o quanto é difícil ficar longe dela. É uma relação amorosa de jacu. Amor que levo na mochila quando viajo. E na mochila é um amor que merece repartição especial: vai junto com o sanduíche de pão com mortadela e a garrafa quente de guaraná. Somos, eu e Londrina, o sapato e a meia, para não ter que dizer palavrão.

Londrina nasceu em mil, novecentos e trinta e quatro. Lembro que na mesma data, em mil, novecentos e quarenta e oito, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Provo com duas palavras que Londrina e a declaração são o bolso e o lenço: Somos cidadãos. Não precisa mais do que isso.

E tira-se, depois, que o dez de dezembro também é o Dia do Palhaço. Parabéns aos que trabalham na dura missão de arrancar risos de uma platéia que nem sempre está disposta a gargalhar, mesmo que de raiva. Não estamos falando dos comediantes palhaços: faustões, didis, cacetas e planetas, cequecês e tantos outros que nem sabem pintar a cara.  Aliás, já nascem com ela pintada. Estamos falando dos palhaços que choram mas fazem rir usando como ferramenta de trabalho as coisas engraçadas. Palhaços de antigamente ironizavam raças, cor, credo e gênero. Hoje esses desacertos inconscientes são praticados por comediante palhaços.

De palhaço mesmo Londrina teve Picolino. Comediante palhaço Londrina tem bastante. Todos estão incluídos naquele grupo dos dez por cento excluídos dos noventa por cento dos cidadãos londrinenses. Tem comediante palhaço no poder público municipal, estadual e federal, na Câmara de Vereadores, na Assembléia Legislativa, na Câmara dos Deputados, no Senado e em outros tribunais.  Muitos comediantes palhaços.

Cidade de braços abertos a pessoas de todos os cantos do mundo, Londrina também não discrimina esse tipo de gente. Está na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo sexto: Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei. E Londrina cumpre. Tanto que até elege comediantes palhaços para as diferentes esferas do poder.

Isso é democracia. Os prejuízos a gente soma depois.


sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Crônica - Tem pai Noel, outros nem tanto


Esse cara tá tirando uma! Esgueira-se pelas calçadas das ruas comerciais feito um coelho e some. Comentam, sem dados concretos, que ele foge de alguém ou de alguma coisa. Não se sabe o que.

Ontem ele obrigou um grupo de conhecidos a fazer três travessias doidas na avenida, fora da faixa de pedestres. Esbarraram em carros parados no sinal vermelho, entornaram sorvetes de crianças, derramaram pipocas de aposentados e um, na correria, deu de cara com um poste. Formou um vergão na testa do tamanho que nem curativo de farmácia cobre.

E cadê o cara? A última vez que o viram foi na dobra da esquina dois quarteirões adiante, depois de um subidão. Isso sob um calor de trinta e cinco graus embaixo da marquise da loja de confecções. No sol devia estar uns quarenta e tantos.

Estranho o comportamento do cara. Ele sempre foi chegado. Tanto que uns diziam ele ser intrometido por aparecer de supetão em lugares onde não era convidado e entrar em conversas cujo conteúdo não convinha a um penetra.

E nem era para se enturmar que o cara se metia a besta infiltrado em grupos que o preferiam longe. Era para aproveitar a saideira e beber pela décima-sétima vez o último copo de cerveja. O cara nunca enfiava a mão no bolso na hora de fechar a conta. De fininho se colocava lá longe, encarando a tela do aparelho de tevê como se estivesse prestando atenção no noticiário.

Todo bar de noitada tem televisão, mas nem sempre a dita está ligada, principalmente quando as portas já estão fechadas. É um aviso do dono aos fregueses: Vamos embora, gente. Mesmo assim o cara ficava diante dela, de costas para o grupo, com o olhar fixo no nada.

E agora fugia dos conhecidos! Ficou rico e chato? Mudou de religião? Fosse político que se candidatou nas eleições passadas e poderia se imaginar: o cara andou fazendo promessas e não tem como cumprir. Calote financeiro ela não dá em ninguém, pois ninguém empresta a ele.

Tem a história da pensão. Quatro anos atrás ele foi preso três vezes, duas por não depositar na Justiça o que devia à ex-mulher e uma por ter desacatado o oficial de justiça que foi lhe entregar a notificação. Mas hoje em dia a ex-mulher nem denuncia. Ela desistiu e não foi por pena do cara. Foi por achar que ele é um caso perdido.

E lá vai ele! Olha só a roupa que usa! O cara está de Papai Noel! Corre senão ele some. Capaz de se enfiar no meio da multidão e escapar por uma galeria. É um Papai Noel magro, de roupa desajeitada e a barba cobrindo do pescoço para baixo. É que o barbante que prendia os pelos artificiais se desprendeu da orelha direita. E a barba caiu do queixo para o pescoço.

Alguém o cerque pela outra saída. Três ficam a postos na porta dos sanitários. Dois garantem a entrada da choperia. O cara está aprontando e é preciso tirar a limpo. Alguma coisa aconteceu, essa mudança não é à toa.

A correria e a tática para pegar o sujeito duraram por quatro galerias comerciais. Lá longe ele foi rendido por culpa de um sorveteiro. O ambulante não percebeu o cara e cortou a frente dele com o carrinho de picolés. Foi um tombo!

E os conhecidos pegaram o fujão. Acuado, ele justificou que sentia vergonha de ser Papai Noel de uma loja de confecções infantis. Tem sentido. O cara nunca se deu ao filho que teve com a ex. O menino hoje deve estar com uns dezessete e se vir o pai de Noel vai mais ironizar do que odiar. 

Assim é a vida, cara!


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Conto - Manga rosa


Desceu de uma árvore de copa enorme fazendo sombra quase no quintal inteiro. É manga rosa, propícia a carregar até vergar galho na véspera do Natal.

Fruta que se come com a mão suja. Desvira a camiseta para não manchar. Põe ela do avesso. Dispensa a faca, ninguém vai usar. É no dente que se tira a casca. Se for de outro jeito não tem graça.

São miúdas, duas não bastam. Melhor separar três ou quatro, se for o caso pega até cinco. Tem sobrando, é só subir no pé. Lá na ponta é que estão as mais graúdas.

Nem liga para os fiapos. Na hora de chupar a manga eles incomodam. Dá gastura, mas tem uns que soltam sozinhos. Outros é só disfarçar e catar com as pontas dos dedos. Só repara nisso quem é bobo. Chupar manga rosa não pode ter luxo.

Abundância é pouca se tem desperdício. Só joga caroço seco, sem sobra de calda e com pelos brancos. Num canto qualquer do terreno, isso não é sujeira e quem sabe a terra devolve com planta germinando.

Deixa passarinho bicar frutas das ponteiras, é próprio deles, coisa da natureza, e a manga rosa dá para todos. Pega lá um saco de mercado, apanha um tanto e reparte com a vizinha. Chama ela pela cerca, pois do lado de lá caem frutos rachados e sem gosto.

Manga rosa é para lambuzar canto da boca. Mas menino, nada de limpar com manga de camisa a lambuzeira da manga rosa. Senão faz sujeira na roupa e vão te dar faca e garfo para comer fruto catado na árvore do quintal.


terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Em Branco - O direito da revolta


Bateram no meu carro na noite de segunda, 3 de dezembro. Um rapaz de 18 anos, com carteira de habilitação provisória, foi à faculdade com o carro da mãe. Na volta, avançou na preferencial e pegou o meu Peugeot de cheia. O menino justificou que havia feito duas provas difíceis e estava nervoso. Chamados pelo filho, os pais vieram desesperados: “Não chame a Polícia de Trânsito. A gente acerta isso aqui mesmo. Senão o meu filho perde a carteira de motorista”.

Eu não havia feito duas provas difíceis na faculdade. Sai para levar meu filho à rodoviária. Mas tive um dia profissional de incertezas: “Como será o meu amanhã? Terei emprego? Vou ser avaliado pela minha capacidade profissional ou há outros fatores que pesam na escolha de quem fica e de quem vai embora da empresa?”

Questões tão ou mais difíceis do que as provas do curso de física do rapaz. Mas não sai avançando preferenciais e colocando alheios em risco. Não causei prejuízos à sociedade. Não fui em nenhum momento injusto com ninguém. Jamais me queixei aos pais do menino que eu havia tido mais um dia difícil e por isso me descuidei e não vi o filho deles invadindo a preferencial de uma rua movimentada.

O meu carro é financiado em 60 meses. Comprei-o zero quilômetro, dando de entrada um outro carro e pagando quatro ou cinco vezes mais pelo restante em longas prestações. Já quitei 18 parcelas. Restam 42. Mesmo que o seguro dos culpados conserte o meu carro, que está com oito mil quilômetros rodado, terei a partir de agora um veículo que me custa muito caro por ser batido. Na hora da troca, a concessionária vai rebaixar o preço em cerca de 60%: “O seu carro está pouco rodado, mas está batido. Fizeram um bom serviço de reparo, mas comprometeu toda a frente do carro e também a parte frontal das laterais”. É isso que vão dizer.

Apego? Disse um padre que a gente peca por ter apego às coisas materiais. Não é bem assim, Senhor. Tenho cuidado com as minhas coisas porque elas me custam dias de trabalho. Seja um carro ou seja um relógio. Se risco o vidro do meu Seculus, que é uma segunda linha de marcas tradicionais, fico atormentado. Não é pelo relógio riscado. É porque eu sei quanto o relógio me custou. E não estou falando do custo financeiro. Falo do custo da decisão de comprar um relógio. Às vezes imagino que se eu não comprasse o tal relógio poderia, com o dinheiro gasto nele, ajudar a minha irmã que passa por dificuldades.

E quanto ao menino! Quem deixou alguém que coloca o nervosismo de duas provas difíceis no volante de um carro ter carteira de habilitação? Os pais? Os instrutores de auto-escola? O profissional que aplicou nele o teste psicológico? O Código de Trânsito? Nervosinhos deviam, após causar prejuízos a outros, lavar pratos nas cadeias. Assim ficariam calminhos.


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Crônica - Há diferença, sim senhor


Veio a Arminda logo cedo relatar o sonho de domingo para segunda: ela passou a madrugada inteira com o Fuleco!

Calma. Arminda não dormiu com o Fuleira. Ela interagiu com o tatu-bola. Felipão, Parreira, Romário, Gordo Ronaldo, Zeca Camargo, Galvão Bueno e toda a diretoria da CBF e da Fifa nem perto da cama de Arminda chegaram. Fique, portanto, bem claro que fuleiras não abraçaram de madrugada esta mulher que é quase santa.

Arminda sonhou com o Fuleco. E segunda conta não foi um acontecimento meigo. Foi um desabafo! Tatu-bola estava cabisbaixo porque andam confundindo o seu apelido com o do Felipão. E de nada tem adiantado tatu-bola insistir que não é Fuleira. É Fuleco!

Fuleira, diz ai um dicionário, é o mesmo que barato, ruim, de qualidade duvidosa. Tira-se desse sinônimo que Fuleira são os outros. Até Neymar, se fizer até 2014 mais propaganda do que gols, entra nesse time de segunda.

Fuleco, conforme explica a Fifa – ou tenta explicar -, é a fusão de futebol e ecologia. O cara que trabalhou a fusão deve ser estrangeiro. Só pode ser. Também, com a reforma do português assinada pelo Lula...

Tatu-bola explicou no sonho a Arminda que ele é do gênero Tolypeutes e adora uma formiguinha. Virou, mexeu e está fuçanda a dona Saúva, com aquela cinturinha fina e bunda enorme.

Arminda lembra de ter perguntado à tatu-bola se ele é da espécie Tricinctres ou Matacus. No sonho tatu-bola teria respondido que tanto faz. “Sou Mataco e ao mesmo tempo Tatu-bola-da-caatinga. No primeiro caso o meu estado de conservação é quase-vulnerável. No segundo sou vulnerável”.

A mulher ficou aérea. Não pinçou nada da resposta. E para não complicar mais ainda entrou em questões básicas: “E como você faz para virar uma bola?”

De acordo com tatu-bola, o seu formato e sua cor em nada conferem com o desenho da Fifa: “Imaginem se o meu casco fosse azul igual ao do desenho? Eu seria um pavão! E esta camiseta branca da Fifa é de pior qualidade. Na primeira lavada deforma. A costura do lado vai para as costas e a gola deve cair até o umbigo. Se é que eu tenho umbigo, sei lá”.

Quanto ao calção verde, tatu-bola explicou que nunca precisou de tal vestimenta lá no seu meio: “Quando eu quero esconder as minhas partes eu viro bola. Também estou infeliz com o meu porte físico. O meu perfil é mais parecido com o dos jogadores Adriano e Ronaldão. Colocaram o corpo do Messi no meu desenho. Absurdo!”

Outra queixa de tatu-bola, segundo revelou à Arminda, é o do topete. “Fosse um topete igual ao do Neymar e eu ia usar muita gomalina para marcar os gols. Goleiro nenhum ia segurar a bola melecada de gel que eu ia mandar para a quina da trave.”

Lá pelas cinco e pouco da manhã, antes de Arminda despertar para fazer o café, tatu-bola fez um pedido, em tom choroso: “Por favor, peçam para não me chamarem de Fuleco. Eu sou o tatu-bola e é assim que gosto de ser chamado. Fuleco confunde com Fuleira. Fuleira é o técnico, o auxiliar, os dirigentes, parte dos jogadores e parte da torcida, especialmente os 1,7 milhão de brasileiros que votaram nesse nome de merda”.

Mas sabe, depois ele até se acalmou um pouco quando soube que os outros dois nomes propostos eram Zuzeco e Amijubi. E questionou: “Grande Mãe Natureza, de onde tiraram esses nomes?”  Lá de longe ecoou a voz do Lula: “Depois que assinei a reforma do português qualquer fuleira vira fuleco...”

Que injustiça e que infelicidade a nossa, que corremos o risco de ter uma bola chamada Cafusa. Nem cor tem da gloriasa raça Brasil quando o assunto é etnia. Como dizia Silvio Britto, lá no antigamente: “Tá todo mundo louco...”