quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Em cada barco uma mensagem

Desceu um barco de papel na enxurrada formada pela chuva rápida de verão. Feita de folha de caderno, levou letras, palavras e frases incompletas e sem sentido, pois muito do que estava escrito deixou a umidade roubar a nitidez. Mas havia uma grande certeza: o barquinho carregou para baixo algum tipo de mensagem.
Atrás do vidro embaçado de uma janela, um menino viu, no outro lado do rua, o barco de papel descer na enxurrada. Ele bem que queria montar um brinquedo parecido, mas não sabia como. Queria colocá-lo na correnteza e segui-lo até onde desse, talvez no próximo bueiro que bebia a água com sede e pressa.

Mas se tinha o papel não dispunha da habilidade para fazer um barco. E se tivesse o barco quando teria o consentimento dos pais para sair à rua, na chuva, de forma a colocá-lo na enxurrada? Então na sua imaginação de criança pensou em algum outro menino que tinha papel, fazia o barco e podia ir descalço até a beira da rua para soltar o brinquedo na água. E fez desses pontos a sua mensagem, que preferiu guardar para si mesmo.

A mulher acomodada na cadeira da varanda também viu o barco descer com a correnteza da chuva de verão. E lembrou que ela havia montado muitos deles quando adolescente. Às vezes usava folhas de cadernos usadas. Em outras ocasiões escolhia uma folha em branco, onde rabiscava sentimentos. Do namorico que começou. Ou do que havia chegado ao fim. Fosse de dor, fosse de amor, a sua mensagem sempre descia no ritmo da enxurrada.

O homem parou o carro na esquina e percebeu o barco de papel ser engolido pelo bueiro. Então pensou que ele havia prometido no verão anterior ensinar ao filho a fazer três tipos diferentes de barcos.

Recapitulou que não foi por falta de papel que o compromisso deixou de ser cumprido. Admitiu que relaxou e deixou seu filho preso à escrivaninha onde instalou o computador de uso da família, onde o menino via barcos de verdade navegando no monitor. Então chorou e se perguntou por que aquele barco de papel que sumiu no bueiro havia trazido mensagem tão dura para ele.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Vestir, calçar, usar, chacoalhar, colar nas costas...

Excentricidade. A palavra soava diferente para Doralice. Ela, que vivia a conveniência e seguia a vida de acordo com as regras, num padrão que incluía as novelas da televisão, os programas domingueiros de auditório, os cortes de cabelo ditados pelas revistas especializadas e as roupas de tons e tipos recomendados pelos desenhistas de moda, tinha certa pretensão de praticar aquilo que a palavra definia.
Vez em quando, nos devaneios dos finais de dia, Doralice se perguntava: “O que é ser excêntrica? Como posso ser uma pessoa excêntrica?” As respostas que ela mesma se dava migravam para versões variadas. Algumas tinham algo a ver. Outras eram a própria excentricidade. Mas havia aquelas que passavam longe.

Morar longe da zona urbana, numa casa com quintal de chão e rua sem asfalto. Isso era excêntrico? Claro que sim, desde que a pessoa que fizesse a opção fosse um milionário cansado de viver numa mansão de concreto, ferragens, vidros e metais. E de tão entediado com o conforto e a sofistificação trocara o bairro nobre por um puxadinho meia água na periferia. Isso seria excentricidade, até porque uma das definições da palavra é esta: longe ou fora do centro.

Quanto ao contrário: trocar o aluguel de quatrocentos reais de uma casa na periferia, em rua de asfalto esburacado, por um sobrado de mil e quinhentos reais em bairro nobre. Esse exemplo dá margem para divagações. Doralice testaria duas alternativas: a primeira é a do cidadão milionário do parágrafo anterior ter se refeito do tédio e decidido voltar ao seu ambiente. Isso seria excêntrico ou constatação de arrependimento?

A segunda alternativa mostraria o cidadão simples, com um salário de novecentos reais alugando um sobrado de mil e quinhentos. Excêntrico? Claro que não. Louco, irresponsável, sem noção. Essa hipótese, a própria Doralice admitia, nunca passaria à prática. Pois qual imobiliária aprovaria o cadastro e fecharia o contrato de locação?

Então Doralice foi para opções mais simples: usar um boné? Descarte, isso é coisa de mano. Sair com um agasalho longo, tipo casacão, neste inverno de Londrina que bate trinta e quatro graus? Depende. Uma figura colunável, destaque rotineiro dos melhores jornais da região, seria excêntrica com ou sem o agasalho. Um pobre, diriam dele, não tinha outra coisa que vestir.

Até nas alternativas novelescas Doralice pensou: gravata, terno e tênis, por exemplo. Ah, mas isso é só para quem está entre as aspas. Num cidadão comum os comentários seriam de que o metido a besta nem sabe se vestir.

E Doralice, por aquele dia, concluiu que ser excêntrica depende de interpretações alheias. E que o olhar dos outros no que você veste, calça, usa, pendura, chacoalha ou cola nas costas varia muito do seu status social.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Conto - Convivência...

Ednalva amava Rodolfo. Era assim que a moça, lá pelos seus trinta anos de idade, entendia aquela relação antiga. Namoraram por nove anos e foi que um dia ele apareceu com o par de alianças. Sem ritual e cerimônia as argolas brilhantes e largas ganharam os dedos anelares da mão direita de ambos no mesmo instante. Nem uma troca de beijo depois. Muito menos uma fotografia para eternizar o momento.
Lindalva, irmã mais nova da noiva, às vezes se pegava indagando: “Como é que pode? Os dois parecem geladeira. Um pra lá, outro pra cá...”

Sim, o desinteresse era recíproco. Um desleixo das duas partes, como dizia sem rodeios a vizinha Eliandra, após justificar que não era intenção falar da vida alheia, mas o caso de Ednalva e Rodolfo exigia comentário até para que houvesse algum tipo de intervenção: “Se não for por Deus alguém vai ter que dar um toque...”

O desleixo citado pela vizinha era exclusivamente visual. Há uma década Ednalva era uma morena de cabelos aos ombros. Nem magra e nem gorda, caprichava nas roupas e nos retoques da maquiagem. Não era uma deusa, mas despertava a atenção de meninos da mesma idade.

Rodolfo, fiel centro avante do time do bairro, calçava as chuteiras todos os sábados para defender a agremiação no campeonato citadino. E isso garantia um porte físico quase de atleta, embora a barriga escorregasse para fora do cós das calças por culpa da rodada de cerveja cuja saideira sempre sofria adiamento.

Agora, com a relação de namoro oficializada por um par de argolas, Ednalva era uma noiva de trinta anos com aspecto de uma mulher lá de seus quarenta e poucos, quase cinqüenta. Rodolfo já caminhava devagar, meio trôpego, balançando a papada e expondo enormes bolsas na pele abaixo dos olhos. Os cabelos de Ednalva, antes ajeitados no cumprimento certo e sempre alisados, agora ficavam presos na nuca por uma tira de pano. E faziam a moldura de um rosto rechonchudo.

Com certa razão uma tia de Rodolfo alinhavava que era falta de estima. “Acho que os dois nunca se gostaram. E assim se entregaram ao desleixo. E olha que agora não tem mais como voltar atrás. Pra arranjar outro namorado ela precisa emagrecer uns trinta quilos. E ele, coitado, parece um velho gordo esperando a hora da morte”.

Tinha razão a tia. Ainda assim era reprimida por outros parentes quando tocava no assunto: “Credo, Gelcia! Não estou te conhecendo. Isso é comentário que se faça?”

Agenor, um primo de Rodolfo, um dia prometeu aos familiares que iria tomar uma atitude por ambos: “Vou ter uma conversa séria primeiro com o Rodolfo e depois com a Ednalva. Se eles não estão afim devem terminar o noivado agora mesmo”.

Primeiro foi com o Rodolfo: “Escute aqui, primo. O que rola entre você e sua noiva? Parece que vocês não estão nem ai um com o outro.”

Silêncio. Minutos de espera. Agenor insiste: “E então? Estou aqui para trocar idéia”. Rodolfo enxugou o suor da testa com a costa da mão e, em seguida, usou as unhas do polegar e do indicador para arrancar um pelo do nariz. Só então respondeu: “Ué... parei de jogar bola pra ganhar estes quilinhos e há mais de seis anos nem sexo faço com a minha fofinha. Todo esse sacrifício foi para a gente engordar e ficar assim. Quero chegar aos 150 quilos e ela, nesse ritmo, logo atinge os 110. Assim nem eu nem ela teremos encanação com ciúmes...”

E ficou entendido que Rodolfo não pretendia conversar sobre um assunto que para os outros era uma cruz cujo peso moldava aquelas duas pessoas. Para ele, quem é que sabe se aquilo era bom ou ruim? Agenor desistiu de ter uma conversa com Ednalva e indagado sobre os resultados de sua missão, saia de fino e deixava as pessoas de boca aberta.

Ednalva e Rodolfo não se casaram. Mas foram morar juntos. E não se ouve um sussuro naquela casa quando os dois estão dentro dela. O parentes dizem que ambos convivem bem e engordam cada vez mais.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Apenas um sol depois da ressaca

Saia de casa e busque a sua turma como faz normalmente nas noites de sexta. É quando a madrugada do sábado é criança. Não haverá duas luas no céu. Verdade. Confira se não houver nuvem.

A cerveja vai descer redonda como sempre. As pretensões em relação a uma nova amizade, ou algo mais, não sairão desta condição se decidirmos que pretendemos ser apenas pretensos. Se a bateria do carro arriar na saída de casa até o ninho da galera é porque já estava no tempo. Não se trata de um aviso do tipo “não saia hoje de casa”. Se o arriamento for no retorno, encare como um motivo para ficar mais um pouco.

A internet é assim. De repente descobrem o seu e-mail e invadem a sua caixa de entrada com bobagens. Dentre elas, a de que no dia 27 de agosto apareceriam duas luas no céu por volta de meia noite e meia.

A explicação científica é de que Marte poderá ser vista com um pouco mais de brilho nesta data e neste horário, mas por quem dispõe de um potente telescópio e, principalmente, de conhecimento de astronomia para localizar o Planeta Vermelho lá em cima.

A boataria aproveitou isso para enfeitar e amedontrar. Até no Youtube há vídeos que mostram o caos. E tem gente que acredita.

Que nada. Dia 27 de agosto de 2011 é sábado. Cá pra nós, uma chatice: supermercado, revisão do carro, checagem do calibre dos pneus, o enfadonho Zorra Total à noite na maior altura e, se não tiver tevê a cabo, xaropice e tédio sentado no sofá.

Então saia e curta. Haverá apenas uma lua e ela pode ser muito promissora. Basta ter aquela dosesinha de juízo e tudo bem. O domingo a gente enrola para o tempo passar depressa. E depois que a ressaca passar haverá apenas um sol.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Crônica - Pra não deixar agosto em branco

- Tem uma loira no banheiro e não é aquela que aparece nas escolas. O que está acontecendo aqui em casa?
- O que, mulher? Que história é essa? Loira no banheiro?
- Cínico. Quem é essa mulher?
- Sei lá... você é que está dizendo. Como é que eu vou saber?
- Vou repetir bem devagar pra não ter que gritar e fazer escândalo: tem uma loira no banheiro e não é aquela que aparece nas escolas vestida de branco.
- Está brincando, mulher? O que deu em você? Que loira que nada...
- Mais uma vez, pausado: TEM UMA LOIRA NO NOSSO BANHEIRO. E ela está nua.
- Mas tem chumaço de algodão no nariz? Tem mancha roxa no pescoço? Se tiver é a mesma do folclore...
- Cretino. O que uma mulher nua está fazendo no nosso banheiro?
- E eu vou saber? Por acaso você bateu três vezes no espelho e disse alguma coisa? Porque é assim que a loira do banheiro aparece nas escolas.
- Sem vergonha, cafajeste...
- Então é isso. Você bateu no espelho e disse a palavra que faz a loira do banheiro aparecer. Só pode ser isso.
- Cachorro. Eu volto do trabalho e encontro uma mulher nua no nosso banheiro...
- Só pode ser por causa das três batidas no espelho. Que palavra você disse pra loira aparecer no nosso banheiro?
- Ordinário...
- Pára. Eu é que estou brabo... Sério, mulher. E agora? O que nós vamos fazer pra tirar essa loira do nosso banheiro? Eu não sei lidar com fantasma...
- Não sabe, é? Eu vou acender uma vela de sete dias e enfiar no...
- Calada, mulher. Sem palavrão porque até agora estamos conversando no nível. Eu é que estou furioso e quero saber porque você foi bater três vezes no espelho e dizer a palavra que faz a loira aparecer? Tinha que fazer isso?
- Calado você. Vou quebrar o espelho na sua cabeça já já... Quem é essa moça nua no nosso banheiro?
- Tudo bem. Vou resolver isso lá no banheiro...
- Vai... Vai rápido e some daqui você e ela...
- Calma, estou indo. Ei moça, o que você faz no nosso banheiro?
- Sei lá, moço. Bateram três vezes no espelho e disseram uma palavra. Foi então que eu apareci aqui.
- E quem bateu três vezes no espelho, moça?
- E eu vou saber? Só sei que alguém bateu...
- Mas você não tem chumaço de algodão no nariz. O folclore diz que a loira do banheiro tem um chumaço de algodão no nariz. Cadê?
- Chumaço de algodão no nariz? O que é isso?
- Algodão enroladinho para tapar as narinas...
- Ah, estava incomodando e eu tirei. Joguei no vaso e dei descarga...
- Está mentindo, não ouvi barulho de descarga. E porque está nua? A loira do banheiro costuma aparecer vestida de branco...
- Calor né, moço...
- A minha mulher está doida comigo e você aqui no nosso banheiro. Ainda por cima nua...
- Desculpa, moço. É contra a minha vontade. Se batem três vezes no espelho e dizem uma palavra eu apareço.
- Mulher, vem cá conferir que eu não tenho culpa. Conversa com a moça do banheiro...
- Pois é. O que a senhorita está fazendo nua no banheiro da minha casa?
- Vou ter que repetir tudo de novo? Acabei de contar pra ele.
- Sem vergonha. Quem é você, moça?
- Sou a loira do banheiro, não está vendo?
- Já ouvi muitas histórias da loira do banheiro, mas nunca com ela nua. Então se explique, quem é você? Está de caso com o meu marido?
E foram mais quinze minutos de discussão entre a mulher, o marido e a moça do banheiro. Os autores de novelas da Globo terminariam a história assim: a mulher havia trazido a loira ao banheiro e para sair da situação constrangedora acusava o marido de trazer a amante para a própria casa. Algumas das concorrências bateriam forte no homem, sem direito a contestação: ele é mesmo o cafajeste. Cá num patamar menos elevado, quase lá embaixo, outras emissoras noticiariam o registro de mais uma aparição da loira do banheiro.
Há várias versões deste folclore em praticamente todo o país. Em São Paulo, por exemplo, contam que uma garota muito bonita, de cabelos loiros e cerca de 15 anos sempre planejava maneiras de matar aula. Uma delas era ficar no banheiro da escola esperando o tempo passar.
Certo dia um acidente terrível aconteceu. A loira escorregou no piso molhado do banheiro e bateu sua cabeça no chão. Ficou em coma e pouco tempo depois faleceu. Sua alma não quis descansar em paz e passou a assombrar os banheiros das escolas.
O mais incrível: tem alunos que juram ter visto a loira do banheiro.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Crônica - Reflexos...

O vidro que protege o mostruário da loja de confecções femininas é um espelho. Ele retrata vaidades, num gesto de acerto dos cabelos alisados, num passo mais lento para mirar-se e admirar-se da silhueta refletida.

Ali naquele espaço a vida só é bela quando a beleza é a forma que aparece sobre o brilho do material que reflete. Esbelta, bela, moderna no jeito de se vestir e de se comportar. Não haveria sentido haver um vidro feito um espelho no mostruário da loja de confecções femininas não fossem elas.

Novas, mais ou menos ou idosas, resolvidas, indecisas ou ajeitadas, magras, acertadas ou exageradas, loiras, morenas ou ruivas, altas, baixas ou equilibradas.

A moda aparece atrás do vidro, no mostruário que expõe o que se usa. Mas todas passam pelo espelho do vidro como se fossem as mais atraentes entre as manequins de plástico enfileiradas no outro lado.

A unanimidade, enfim, é a beleza. Nada haveria se não existisse a vontade de cada uma delas ser bela, mesmo longe das medidas do mostruário. Ah, se não fosse a vaidade para que serviriam os espelhos.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Capa de jornal só na hora da dor

Ela é apenas uma ilustração. Não se diz em pelo menos uma linha quem ela é. Ignora-se de onde veio e como chegou. Despreza-se, ainda que involuntariamente, alguma causa de sua presença ali, pois o que vale é o efeito.
Talvez ela se chame Maria. Sim, parece Maria. Não porque se decida de um jeito aleatório dar a ela um nome comum. É o contrário. Ela é Maria porque as Marias são sinônimos de determinação. Também representam as contradições históricas em torno de personagens que são Marias, isso até a Bíblia tem.

Maria! Onde é que nos encontramos? Maria está na capa de um jornal. Ilustra com sua presença na foto a reportagem de um tema que faz parte do seu cotidiano. Ai está o efeito.

Maria, sentada numa calçada, descansa as costas na parede gelada de um edifício. Está protegida com dois cobertores e só o rosto aparece. Maria é parte de uma composição fotográfica ensaiada e a foto publicada na capa do jornal é uma entre as dezenas que foram clicadas e armazenadas no cartão de memória da máquina profissional.

Três figuras masculinas caminham pela calçada. Estão de costas e o corte horizontal é feito nas costas do mais próximo deles. Ele carrega duas sacolas plásticas de mercado e veste um casaco xadrez, provavelmente de lã. O corte também eliminou as cabeças dos dois homens à frente. Mas a composição permite identificar que todos estão agasalhados.

Só o rosto de Maria aparece. A legenda da foto tem um título: “Frio e chuva vão continuar”. Maria, postada na calçada fria, está de cabeça baixa. O texto informa o seguinte: “Morador de rua no centro de Curitiba sofre com o frio intenso e o tempo chuvoso, que devem continuar pelo menos até amanhã em todo o estado. Na capital, as temperaturas devem variar entre 5ºC e 14ºC, acompanhadas por muita umidade. Segundo o meteorologista Paulo Barbieri, do Simepar, as temperaturas podem começar a subir a partir de quinta-feira.”

Maria se mantém cabisbaixa e nem podia ser de outro jeito. A foto é estática, registrou um momento. Maria está com as pálpebras cerradas. Será que dorme? Será que se esconde de si mesma? Maria está à direita na foto, mas o foco do equipamento profissional foi para ela.

A calçada onde Maria se senta é de paver, cor clara, parece cinza. A parede onde Maria se encosta é azul. Um pouco a frente, um painel publicitário desfocado confirma: Maria é a personagem. Ela sente muito frio.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Conto - As estações dos anos

Um dia ele pediu um pão e um gole de café. Ela ofertou uma bandeja farta. Além do pão e do café, o leite, a manteiga, o suco e a fruta.
Mal começava o verão e nas incertezas do clima, que na primavera trouxe frio de inverno, cabia também pedir um agasalho. Ela o presenteou com um abraço.
Passou o verão e estendeu o seu destempero ao outono. Quente, de mormaço, suor e garganta seca. Ele pediu um alívio e ela respondeu com um beijo.
O inverno surpreendeu com afagos. A primavera revelou mais carícias. O outono mostrou peitos arfantes. O verão foi de paixão.
Fez-se outro outono e de novo o inverno, que chamou a primavera, que trouxe o verão. Então ele pediu a bandeja com o café da manhã. Ela nem o pão trouxe e foi assim até a mudança da estação. Então ele cobrou um abraço para se aquecer do frio. Ela nem um agasalho providenciou.
E o período quente chegou muito antes do verão, ainda na primavera, quando ele pediu um refresco. E ela nem com água retribuiu. Os afagos, as carícias, o arfar do peito e a paixão passaram a compor uma lista rotineira de pedidos dele. Ela respondia com desdém.
Foram-se mais quatro estações e nem parceria mais sobrava naquela relação. As cobranças dele escassearam. O comprometimento dela sucumbiu.
E ele, que havia construído sua vida em plataformas de pedidos, percebeu que ali o esgotamento já havia chegado. Assim decidiu se aninhar em outros braços. Para pedir pão e ter a bandeja, insinuar frio e receber um abraço, cobrar um alívio e ganhar paixão.
E ela? Sentiu-se aliviada ao se ver longe de alguém que quis muito e pouco pode lhe dar. Foi quando decidiu buscar novos verões, outonos, invernos e primaveras, mesmo correndo o risco de viver o amor apenas por algumas estações.

domingo, 21 de agosto de 2011

Crônica - Pra onde você me leva

(resgatado de blog desativado)

Confesso. Tenho vivido a fábula. Ontem procurei um caminho e encontrei um desses que leva a qualquer lugar. Antes imaginei seguir errante, nunca adiante, sempre fazendo as esquinas e indo sem norte. Medo de chegar, alguém diria.

Engano. Vejo-me obrigado a ir, mas conspiro contra mim mesmo. É o direito que tenho de sempre voltar, procurando os bolinhos de pão que você deixou num rastro que os pássaros comeram.E como te alcançar, se nada sei sobre a fartura do seu pão e a fome das avezinhas?

É bem isso. Talvez eu não queira te encontrar. Disseram em tom de discurso algo sobre a razão e o coração. Evitei entender. Disfarcei ser um peregrino, dono do asfalto que sobe e declina, quando eu era o personagem perdido no meio da mata procurando as migalhas de pão que você deixou para eu me achar.

E para que? Pergunto com a indisfarçável insegurança de quem, na verdade, quer pedir socorro. Se me perguntam no caminho qual é o meu destino respondo somente que vou indo. Sempre contra o sol, avançando e regredindo. Não saio do lugar. Até que você entenda que espero suas mãos estendidas, me buscando.

Porque eu não sei nem ir nem voltar. Apenas me deixo levar. Talvez eu queira dormir sem ter que caminhar. E acordar debruçado na sua janela, esperando sua porta se abrir. Então eu vou dizer que não quero o seu pão. Quero um pedacinho do seu coração, onde eu possa me abrigar e abafar a solidão. Então deixarei de ser errante.



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Crônica - Café com aspereza dá azia

- O que é?
Ríspido e sem olhar para a cara do freguês o comerciante costumava atender as pessoas que entravam em seu estabelecimento. Quem chegava tinha a impressão que incomodava, pois a recepção era, muito pelo contrário, um convite para se retirar do local.
- Dá um café aí, ô...
O pedido, tão grosseiro quanto a pergunta feita pelo comerciante, naquele dia atraiu olhares de pessoas que antes cabisbaixas beliscavam o pão e bebericavam o líquido preto e morno, graças à garrafa térmica de plástico azul claro, com manchas marrons na boca.
A cena lembrava um pouco o ambiente de um educandário de disciplina exageradamente rígida, onde as crianças mal se olhavam durante as refeições. Ou o enorme refeitório de um complexo prisional, onde os diálogos, quando muito, escapavam sob sussuros.
- E aí, ô. Está sabendo que eu sempre peço um só pinguinho de leite pra quebrar o escuro. Isto aqui está uma palidez. Dá outro...
Era de se esperar que o comerciante, estufado dentro de sua avantajada barriga e achatado nos seus um metro e sessenta de altura, retrucasse como de hábito: agressivamente.
Nada disso. Naquele dia o meia idade quase se escondeu atrás dos óculos enormes de aro de metal. Fato que assustou a maioria dos presentes.
Na verdade, trabalhavam naquele estabelecimento o cidadão ríspido e os filhos que mais atrapalhavam no balcão do que ajudavam. Patrão, proprietário e chefe de família, o barrigudinho queria ser simpático, mas descarregava nos que faziam o movimento da mercearia os encontrões com os filhos no pequeno espaço que restava até a parede, pois era ele que além de servir café morno e pão amanhecido com manteiga, além de pastel derramando gordura e coxinha retirada do fogo antes da fritura, era obrigado a atender no caixa.
E o freguês que naquele dia alterou comportamento e pediu café com grosseria fazia um teste. Imaginou que respondendo no mesmo tom mostraria ao comerciante que o seu jeito de atender não agradava.
Deu certo. Com o tempo o dono da mercearia ainda atendia com rispidez, mas antes de receber uma resposta grosseira soltava um sorriso que era mais por achar engraçado aquele estranho tipo de diálogo no balcão.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Crônica - Na altura do chão

(feito e publicado em Jaraguá do Sul, Santa Catarina - os nomes de ruas e as personagens são daquela cidade)

Os pés de Michelle balançam de cima para baixo. Sob a escrivaninha marfim, no rumo do monitor 14 polegadas que a empresa emprestou a ela para despachar relatórios, preencher planilhas e elaborar contratos. Ajeitados no bico fino do sapato social, sobem e descem insistentemente, anunciam o estado de espírito da moça de rosto fino e delicado.

Os pés de Michelle não balançam de um lado a outro. Não dizem sim ou não. Não estão folgadamente expostos pelas sandálias rasteirinhas que deixam ver as unhas feitas. Ao lado do pé da mesa que comporta o conjunto de duas gavetas, apenas chacoalham apressadamente, escondem a expectativa da menina de concluir um manuscrito, envelopar uma carta, fechar o malote, encerrar o expediente e ir para casa. Acomodados num automóvel confortável que corta a Epitácio Pessoa, ladeia a Getúlio Vargas, evita a Marechal Deodoro e foge do trânsito das seis até chegar em casa após um dia de trabalho, os pés de Michelle pedem o que o rosto dela manifesta com um olhar fatigado: descanso.

Os pés de João Antônio pedalam sem parar. Incomodados pelas tiras ressecadas das havaianas de pisos azuis e palmilhas brancas encardidas, rodam ordenadamente para fazer a bicicleta subir a Procópio Gomes de Oliveira: o lado esquerdo empurra, o lado direito descansa; o lado direito empurra, o lado esquerdo descansa e alivia a dor chata da unha encravada do dedão. Escorados nos pedais gastos da condução de João Antônio, ajudam o ciclista a queimar calorias e arrancam expressões de esforços do rosto suado do catador de papel.

Os pés de João Antônio não querem chegar a algum lugar que leve ao descanso após o expediente das seis da tarde. Não conduzem ele ao frescor de um banho e em seguida a um outro par de sandálias, mais novos e menos sujos. Postados na beira da calçada, sustentam o corpo arcado, de pele grossa e enrugada, encostado na lixeira plástica que oferece reciclados: uma latinha de alumínio, uma caixa vazia de sapatos, um par de meias furadas que, no mínimo, dão numa bola redonda o bastante para os pés dos meninos de João Antônio chutar na direção do gol marcado pelo pé de mamona no fundo do quintal.

Os pés do motorista do ônibus forçam na subida, exageram nas curvas e fazem dezenas de pés de Michelles e Joãos procurarem apoio no assoalho do coletivo. Os pés camuflados nos coturnos são incógnitas: podem esconder temperamentos incontidos de homens que chutam protegidos pelos coturnos. Os pés da indiazinha sentada na beira do shopping apontam com os dedos o outro lado da Emílio Carlos Jourdan, onde as janelas mostram um homem de pés calçados mordendo um pedaço de esfirra.
Os pés do motorista do automóvel não pisam fundo no acelerador do velho Chevette que o transporta até a casa da Ilha da Figueira, onde os pés da mulher dele a fizeram ir de um lado ao outro, do fogão para o tanque de lavar, do tanque de lavar para a pia da cozinha, da pia da cozinha para o varal, até a janta ficar pronta e consistente para dar ao motorista pés tão fortes amanhã, mas controlados o suficiente para evitarem o susto de alguém na faixa de pedestres da Reinoldo Rau.
Os pés enfiados nos coturnos não querem chutar, embora o homem que eles agüentam saiba que o menino de pés pequenos, puxado pelo pai de pés enormes, sinta medo de o soldado confundi-lo com um monstro que pode ser chutado por pés de coturnos que camuflam um homem de personalidade estranha para os menino dos pés que querem crescer para, talvez, calçar um par de coturnos.
Os pés da indiazinha não querem este lado da rua, onde ninguém se interessa pelas peças de artesanato enfileiradas para venda na calçada onde os pés vão e vem, apressados, levando pessoas de pés inchados tamanho é o peso do corpo de quem chega, de quem vai, de quem volta e gira a cidade um dia após o outro, usando os pés para andar e carregar sentimentos e aparências distintas: o olhar meigo de Michelle, a testa enrugada de João Antônio, a preocupação do motorista do ônibus com o estado de saúde do rapaz que perdeu chão e caiu na curva acentuada e feita com pressa depois da ponte Abdon Batista, a prepotência do homem de pés encapados com coturnos, o olhar assustado do menino de pés número 30, a indiferença do pai de pés 41.
É a vida que passa empurrada por pés, na altura do chão. De onde as pessoas saem ou chegam e fazem a vida girar, tocada por pés que não deixam ninguém ficar parado num só lugar.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Conto - Guerra das almofadas

(reprise de texto publicado em blog desativado)

Éramos três crianças e nada do que fazíamos naqueles momentos tinha importåncia para o nosso futuro. Vivíamos o nosso tempo, num mundo que só a nós pertencia e nos contentava, e mesmo quando colocávamo-nos a meditar sobre o amanhã os nossos planos eram paupáveis, possíveis de serem contornados pela imaginação, tão singelos pareciam.

Mamãe tinha um rosto de menina. Seus cabelos longos caiam sobre os ombros e emolduravam o rosto moreno. Era uma mocinha apaixonada pela família - eu, Mara e papai -, e embora muito criança, eu já experimentava um leve sentimento de ciúme. Dos momentos, por exemplo, que ela se aproveitava das nossas distrações para roubar um beijo de papai. Ou de quando se entregava a Mara e eu me sentia abandonada no canto do sofá, até que ela viesse, seus braços abertos, para me compensar com um abraço e muitos beijos que eu fazia de conta me incomodar.

Os dias eram iguais, fosse domingo ou quinta-feira. Mas as nossas expectativas quanto ao próximo minuto, ao o que estava por acontecer, sempre se renovava. Porque os nossos instantes sempre eram de surpresas. Um novo abraço de mamãe nunca se parecia com o de antes, cada beijo tocava no meu rosto e se abrigava no meu coração com uma intensidade incomparável. Ainda assim, tínhamos nas tardes dos sábado um evento diferente, longe da nossa gostosa rotina de esperar, de segunda à sexta, pela chegada de mamåe da escola onde lecionava.

Íamos nós três no final do dia para a chácara da comunidade religiosa a qual meus pais pertenciam. Havia um alojamento reservado para nós e invariavelmente, após o jantar, corríamos para nos acomodarmos. Papai, obrigado a cumprir plantão devido a sua atividade profissional, raramente nos acompanhava naquelas oportunidades. Então o mundo e o momento eram das três mulheres da casa. Meninas, que não falavam das coisas das mulheres, nem da moda, nem dos ídolos da televisão.

Éramos três crianças, que sob o comando de uma de nós, seja com um olhar, fosse com um gesto, nos entregávamos a uma guerra sem vencedor e vencidos. Uma guerra de amor,com as nossas almofadas acertando os corações uma da outra. Assim perdíamos horas e ganhavamos no amor. Riamos uma das outras, abominavamos ataques de surpresas. Na verdade, perder era ser compensada por mamãe com aquilo que ela tinha de mais sublime, o amor. Então, em certo momento, tomadas pelo sono, deixávamo-nos vencer.

Eu ainda olho para o passado e tento buscar nas lembranças, que parecem querer me ferir, as glórias daquelas guerras. Mas percebo que as batalhas são outras. E a minha guerra já não premia todos os lutadores com provas de paixão e amor manifestadas em abraços e beijos.

Mamãe ainda conserva o rosto de menina, mas seus olhos, mesmo quando sorriem, denunciam tristeza, pois papai se foi. Mara, na sua adolescência, parece querer cuidar de mim. Penso que eu é que deveria baixar a guarda das perdas que acumulo na alma, como a da súbita ida de papai, para devolver a Mara e a mamãe as almofadas que fizeram a nossa guerra e nos tornaram felizes mesmo nas nossas derrotas. Sim, porque naquelas batalhas da infåncia nunca perdemos e nunca ganhamos, apenas solidificamos a nossa vida com atitudes que nos ensinaram a amar.

No entanto, alinho-me como a guerreira que não quer sucumbir, mas não estende os braços para abraçar as parceiras de todas as minhas batalhas, Mara e mamâe.

E como eu tenho tentado. Mas só consigo seguir o olhar triste de mamãe e a carência de Mara, sem reagir, sem abrir o meu peito para brincar a nossa guerra das almofadas.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Crônica – Apenas uma cena de rua

Alguma dor torturava aquela senhorinha de cabelos encaracolados e grisalhos presos à nuca. Via-se no tom avermelhado da pele ao redor dos olhos. Pele mulata, com as rugas a denunciar muitos anos de vida. E os glóbulos, também na cor das chamas, transmitia um choro.
Na mão esquerda a pequena mão de uma menina, talvez a neta. Na mão direita um pano branco de alvura muito contrastante ao avermelhado dos olhos. E se deram conta, as pessoas ao lado, que o lenço era levado ao rosto para afagar a mancha ou secar as lágrimas.
Tinha muita pressa aquela senhorinha. Magérrima, esgueirava-se ora das pessoas, ora dos obstáculos que os passeios públicos colocam à frente. Ia para algum lugar e em determinado momento alguém da multidão, com certeza, se perguntou: para onde e por que com tanta ansiedade de chegar?
Sim, algumas pessoas se perguntam sobre situações alheias. Às vezes o certo seria dirigir palavras, mas o cotidiano tem asperezas que não permitem conversas. Então o silêncio é somado a um olhar de compaixão, fruto de uma solidariedade contida, não manifestada, presa na alma e trancafiada na garganta.
E vem a pergunta: que dor maltrata a senhorinha? Seria um incômodo físico, talvez uma inflamação nos olhos? Ou seria um desconforto do coração, algo tão agudo que levasse ao pranto?
Ninguém, porém, ousou quebrar aquele momento com interferências que pudessem parecer intromissão. A senhorinha seguiu apressada, puxanda pela mão esquerda a menina e levando a outra mão aos olhos.
Deixou um rastro de indagações que as outras pessoas, mesmo aquelas que demonstram indiferença, costumam se fazer quando diante de cenas que causam alguma espécie de comoção.

domingo, 14 de agosto de 2011

Crônica - O catador de papel

Antes ele usava um terno preto. A camisa branca era fechada até o colarinho. Os cabelos, loiros e longos, caiam para trás lambuzados de gel. O seu meio de transporte era uma bicicleta, nem tão velha e nem tão nova. No bagageiro, sacos de papel catado na rua. No guidão, mais sacos de papel.

Passava pela rua Professor Samuel Moura, na Zona Oeste de Londrina, lá pelas sete da noite. Pontualíssimo. Com ou sem chuva. O terno preto perdendo o brilho, os cabelos crescendo, a pasta que os mantinha alisados rareando.

Depois ele trocou o guidão da bicicleta por um volante de carro. Não se sabe se aquele volante foi fruto de uma compra ou de uma permuta. Instalou uma buzina em forma de corneta e parecia feliz com a impressão de conduzir um carro movido a pedaladas. Sacos de papel no bagageiro e presos no volante.

Um dia conversei com aquele homem. Sou cronista e tenho a conversa com as pessoas como um prazer e uma ferramenta de produção. O catador de papel foi simpático. Demonstrou muita vontade de conversar.

Eu queria saber daquele terno preto. Teria sido resto de um tempo bom? Fiz rodeios para não entrar de impacto, amaciar e não assustar, pois eu havia ouvido uma história: ele teria trabalhado para uma pessoa muito influente da política antes de virar catador de papel. Era a versão que eu tinha.

O homem, educadamente, respondeu que tinha um terno preto que usou até acabar. Não disse mais nada e eu respeitei seu silêncio. Desisti de buscar um passado que ele preferia omitir.

E o transcrevo assim, como um homem que um dia teve um terno, uma camisa branca e talvez meia d[uzia de gravatas. E que ele usou dessa roupa até que o tempo o permitisse. Um dia a roupa se esfarelou. E com o fim daquela roupa já tão gasta ele encerrou uma história que podia ser boa, como também trouxesse recordações ruins.

sábado, 13 de agosto de 2011

Crônica - Pingando óleo

Trabalhador não almoça. Come alguma coisa. E por culpa de um defeito no fogão, bem onde se aperta o botãozinho que dá chama para acender a boca, a lingüiça não pode ser fritada para entrar na marmita. Foi por isso que aquele ali trouxe hoje apenas feijão e arroz.

O complemento veio de um bar logo adiante. Pastel de carne, quentinho, com a massa borbulhada de um lado e estatelada de outro. Quase branca, sinal de que faltou fritura. Grossa e sem crocante, pesada, eternamente mastigável feito um chiclete ou uma bala de goma.

A carne era um bolo só. Não ficava soltinha dentro da encapadura de farinha de trigo. Uma pelota sem muito tempero e gosto duvidável. Nem cebolinha de cheiro se via em algum lugar.

Num canto do canteiro de obras, onde sobravam alguns tijolos, improvisou-se uma sala de refeições a céu aberto e sem mesa, longe de árvores que pudessem atrair pássaros deselegantes e prontos para as suas necessidades quem quer que esteja abaixo.

Comia-se de colher. Onde achar espaço para garfo e faca numa mesa tão desconfortável, as coxas das pernas? A primeira colherada, de arroz e feijão esquentado num fogareiro precário feito de restos de construção e acionado por gravetos recolhidos sem critério, esquentou o céu da boca, ardeu no dente cariado, arrastou na garganta e desceu, quebrando o impacto da fome.

Depois o pastel. Colocado de pé, a gordura desceu e respingou quando aquilo foi retirado do embrulho. Gotejou na calça ercardida e na primeira mordida estourou e fez o vento preso entre as massas fazer um pum. Emagreceu, fazendo a capa ficar mais mole.

Caiu no estômago e provocou azia. Foi uma tarde de queimação e desconforto. À noitinha, no caminho de volta para casa, o trabalhador comprou uma caixa de fósforo para dar chama à boca do fogão a gás.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Lá tem panelaço, aqui temos A Fazenda e o BBB


Aqui temos uma presidente. Lá na Argentina quem manda é Cristina Fernández de Kirchner. A análise política seria em torno de competências e capacidades das duas. Mas se permitiria numa conversa de fim de jornada de trabalho, no balcão de um bar: a Kirchner é bonitona; a Dilma...
América! Nosso pedaço! Temos o Chile, onde o presidente é Sebastián Piñera. A semana lá foi de panelaço. À frente as entidades estudantis que foram às ruas fazer barulho. Mas em cada janela dos apartamentos e das casas uma dona de casa, um pai de família ou um outro cidadão chileno ajudaram a aumentar o som. Sim, cidadania.
Alumínio no pau, pau no alumínio. Panelaços também ocorrem na Argentina. Costumam mobilizar multidões e ganham força com adesões de pessoas conscientes que decidem participar mesmo que não sejam vítimas diretas do mal que gerou o barulho. Nestes países as pessoas não saem de fino justificando que “o problema não é meu”. Todo e qualquer problema que afeta algum segmento da sociedade é encarado como calo que pode doer no pé de outros que hoje estão livres deste incomodo. As lutas são coletivas. Não se faz panelaço só quando sobe o preço do pãozinho. No Chile o panelaço foi o custo do ensino.
Argentina, Brasil e Chile, assim como a Venezuela, experimentaram no passado sabores amargos no modelo político. Quem mais sofreu, por exemplo, com a ditadura militar? Quem mais extraiu lições desses períodos de calabouços e cala a boca? O argentino? O brasileiro? O chileno?
A história é cruel quando a construímos com descaso, isto não pode ser ignorado. A nossa começa naquele 22 de abril de 1500, quando uma frota portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral chegou à terras habitadas pelos índios e delas se apossou. Terra de ninguém, deve ter gritado Cabral. E assim se fez.
Há análises sociológicas que tentam explicar a causa do nosso desinteresse em questões que nos afogam diretamente. Entrevistei há anos o professor Zancanaro, da filosofia da UEL, sobre estudo relacionado ao assunto. Não só ele, mas alguns outros autores buscam explicações lá no descobrimento, onde pontuam que as naus portuguesas traziam entre seus tripulantes pessoas com desacertos, inclusive com pendências jurídicas. Em alguns casos, integrar a frota era uma condição para sair da cadeia.
Isso seria uma influência, quase raiz cultural. Por isso hoje ouvimos com tanto desdém as notícias sobre políticos acusados de corrupção? Aliás, políticos que nós elegemos. Fizemos o cara vereador e ele não se contentou. Quis ser prefeito e nós respaldamos. Ele quis mais e mais e mais. Deputado estadual, deputado federal, secretário de alguma coisa, senador, presidente e, se possível, cadeira de não sei o que na ONU. Desculpem, a referência não é do Lula. É de todos os Lulas, Dilmas, FHCs, Sarneys e tendências coloridas que ora desbotam, ora ganham brilho por que nós, o povo, os elegemos.
Bem, lá tem panelaço. Mas aqui temos A Fazenda e o BBB. Temos Mano Menezes. Temos a Globo tentando ressuscitar o Zagallo. Temos Faustão aos domingos. Temos ICQ dono da verdade. Temos tantas bobagens... Para que fazer barulhaço só porque a educação é cara, o arroz sobe todo dia no mercado, a carne tem preço intragável e até o leite dói no bolso? Oras, o leite está caro porque fez frio. Ou porque fez estiagem. Talvez tenha chovido demais.
E assim caminha até a proxima Copa do Mundo. Tudo por culpa do Cabral. E nós ficamos parados. “...Esperando, esperando, esperando, esperando o sol / Esperando o trem, esperando aumento para o mês que vem / Esperando um filho pra esperar também / Esperando a festa, esperando a sorte, esperando a morte, esperando o Norte / Esperando o dia de esperar ninguém, esperando enfim, nada mais além... (Pedro Pedreiro, de Chico Buarque)”

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

...preferia não falar nada que distraísse o sono difícil

Posicione-se. Vamos nos colocar no lugar daquele senhor. Convém avisar que ele nada tem de anormal. Está no gozo dos seus cinqüenta e tantos anos, quase na beira dos sessenta, mas caminha com pressa, esgueira-se dos obstáculos com agilidade e até escapa ileso de pegadinhas que as calçadas mal conservadas reservam para os pedestres.
O que este senhor faz aqui na crônica é uma espécie de figuração. Empresto as características dele para transformá-lo em personagem importante da história de uma cidade, o cidadão.
Vou chamá-lo de Cara, com o direito aos contraditórios das conversas rotineiras. Enfim, a fala coloquial, esta que permite este tipo de coisa: “E então Cara? Como vai o senhor?”
Perceberam como é que fica? Parece desrespeitoso, mas expressa uma proximidade, um carinho, um apego, uma relação de amizade. Eu usaria este coloquial sem receio diante de um Cara que vive como eu: com simplicidade, decência e expressão de quem tem noites tranqüilas.
E vejam que uma coisa puxa outra. Agora até as madrugadas fazem parte deste enredo. Eu explico: refiro-me à noites tranqüilas a um fato único, portanto ímpar e absoluto. São coadjuvantes deste fato único pessoas que não tem do que se arrepender e, consequentemente, nada temem.
Tem medo quem erra. Erra quem é injusto. É injusto aquele que subtrai do próximo o bem estar e a dignidade. Dignidade é um tudo e inclui a possibilidade de cada um viver com a certeza de que não está derrubando ninguém que passa a sua frente.
O Cara do meu texto reflete, enfim, uma coletividade. Este Cara sou eu, é você, são os seus e os meus familiares, vizinhos, parentes de perto e de longe, colegas de trabalho, amigos, inimigos e gente. Este Cara, que somos nós, tem de zero a dezenas de anos.
Reúne em torno de si formação cultural diversificada. Às vezes tem a pele clara, outras vezes ela escurece. Pode ter dentes bonitos agora, mas em segundos carece de um bom acompanhamento. Repito: este Cara é a gente, que faz uma cidade crescer com trabalho, sonhos, aspirações e objetivos.
Gente que luta pela casa própria. Gente que briga por uma vaga no mercado de trabalho. Gente que se sacrifica para dar um bom ensino aos filhos. Gente que vai adiante, suando, lacrimejando, sorrindo, ganhando, perdendo.
Então. Se este Cara vai a Londrina de ônibus, ele atravessa as ruas com faixas de pedestre meio desconfiado. Será? Londrina trabalhou uma rápida campanha de conscientização para colocar em funcionamento o Pé na Faixa. Sabe-se que a coisa funciona assim: onde há faixa e funciona o Pé na Faixa tem uma placa avisando. Onde não há placa e existe faixa, tanto o pedestre quanto o motorista devem redobrar a atenção. E nos semáforos funciona o sinal verde para as duas partes.
A campanha londrinense foi tão tímida que ainda hoje há motoristas que ignoram a faixa e há pedestre que xingam os motoristas quando estes cruzam o semáforo no verde e passam necessariamente pela faixa.
Em Taguatinga, no Distrito Federal, foi gasto um ano em campanha de conscientização. Lá o pedestre, antes de colocar o pé na faixa, deve ainda sobre a calçada levantar a mão. Ele só deve pisar a faixa quando os veículos pararem. E se não levantar a mão quem xinga o pedestre é o motorista.
Enfim, as condições foram colocadas com clareza. Taguatinga usou um cão de rua que foi treinado para levantar a pata diante da faixa de pedestre. O cão virou artista de campanha pela televisão. O cão estampou panfletos educativos. O cão mostrou aos motoristas de Taguatinga que quando ele levantasse a pata diante da faixa de pedestre estava pedindo passagem. O cão mostrou ao pedestre que sem levantar a mão o carro não pára.
E o nosso Cara, diante das faixas de pedestre de Cambé? Quando este Cara está pedestre ele fica esperando os veículos passarem e só atravessa quando o ruído do motor está longe. Quando este Cara está motorista ou motociclista ele pisa e vai adiante, pois a faixa é apenas uma pintura no asfalto.
Outro dia este Cara parou diante da faixa para permitir a passagem de um outro Cara, que esperava pacientemente que os carros passassem. E então o Cara de trás, confortável dentro de um possante quatro rodas, achou ruim.
Ah, o título deste cronicão é um trechinho da música Agora Falando Sério, de Chico Buarque.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Crônica - A Lua tem dono

(resgatado de blog desativado)

Eu disse que a Lua era minha quando ela estava cheia, sem saber que em vários pontos do Universo muitas outras pessoas a cobiçavam. Tomei posse dela vendo-a inatingível e distante, como se adquirisse um quadro para ser posto num lugar alto de uma parede inacessível, para evitar que alguém o tocasse.

Ignorei o fato dela desaparecer ao clarear do dia. Considerei que ela voltaria e seria minha, sempre avermelhada e gigante. Esqueci propositalmente as noites e as madrugadas de tempestades, quando a Lua ficaria escondida pelas nuvens. Ou alimentei a fantasia de que ela continuaria sendo minha, mesmo acima das chuvas e ainda mais longe de mim.

Foi assim, nesse ímpeto, quando a Lua se mostrava cheia, que eu resolvi te presentear com ela. Entreguei-a toda para você e disse: "A Lua é nossa". Percebi a sua alegria mas tive dúvidas: a Lua, vermelha e grande, causaria em você o mesmo fascínio que em mim? Contentei-me, por fim, em admitir para mim mesmo que a Lua, cheia, sempre inspira os românticos.

Então apostei o nosso amor na Lua grande, cheia e vermelha. Acompanhei-a dias após dia, tendo-a como elemento para mensurar a intensidade dos nossos beijos, o calor dos nossos afagos, o arfar dos nossos peitos. Fiz da nossa Lua vermelha e grande a nossa luz e abençoei a insônia.

Até que um dia ela não voltou. A Lua, cheia, vermelha e grande, se escondeu atrás do oculto do seu ciclo, de ir e vir de acordo com o seu movimento, sem se importar com a velocidade do estouro das labaredas do amor. Sorte que o coração resistiu e esperou pelo retorno dela, que chegou de novo cheia, vermelha e grande, ao ponto de mais uma vez eu te dizer: "A Lua é nossa".

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Crônica - Idolatria

(texto extraído de blog desativado)

Era um Deus para aquele grupo de pessoas. Creditavam a ele uma inteligência fora do comum. Nas pequenas e grandes discussões, qualquer que fosse o tema, cabia a ele a última palavra. Uma sumidade envolta em uma manta transparente, a aura invisível rodeando a cabeça de cabelos ralos, e as asas, inatingíveis, formando um delta, compunham a figura do endeusado.

É verdade, o homem tinha lá os seus dotes. Hábil na matemática, mostrava-se imbatível nas coisas da economia, assunto que debatia sem ser interrompido tamanho era o conhecimento que tinha. Os fiéis escudeiros que o mantinham encouraçado chegavam a comemorar com orgasmos mentais as elucubrações daquele todo poderoso. Rodeavam-no como se faz com os espécimes que são raros. Evitavam contrapor idéias. No máximo, sugeriam algo aqui ou ali.

O que aquela gente não sabia era que aquele homem não deixava de ser um comum, como qualquer outro ser humano da face da terra. Ele não tinha o perfil de um gênio, desses tantos que aparecem no mundo de uma hora para outra, com idéias, ações e realizações. O endeusado não passava de um ídolo, pois faltava-lhe um elemento que é essencial na formulação de um grande ser: senso de humanidade.

Sem humanidade, o homem não tinha senso de justiça, porque uma coisa está ligada a outra. Faltando-lhe justiça, ele não enxergava a vida que corria além das janelas do seu automóvel, refrescado no verão com um ar condicionado. Sua bondade era falsa, pois pouco ou nada acrescentava para o beneficiado. Sua voz soava falsa e inconsistente. Seu sorriso intimidava devido ao tom de ironia.

Ainda assim havia no grupo aqueles que acreditavam: "O homem não defeca, pois ele é um Deus!" Fisiologismo era, portanto, uma palavra quase que proíbida para aquela gente, quando o tema era o endeusado. "Ele não arrota como nós, pois seu organismo é puro!"

E quase ninguém viu aquele homem arcado, um dedo em riste apontado para o seu rosto, num gesto de ameaça e intimidação que nenhum Deus, e muito menos um gênio, mereceriam. O homem acuado, sem a manta, sem aura e sem asas, era apenas o projeto de um ídolo torturado por quem o fez e o lançou ao mundo com a marca de um herói. De barro.