quinta-feira, 11 de agosto de 2011

...preferia não falar nada que distraísse o sono difícil

Posicione-se. Vamos nos colocar no lugar daquele senhor. Convém avisar que ele nada tem de anormal. Está no gozo dos seus cinqüenta e tantos anos, quase na beira dos sessenta, mas caminha com pressa, esgueira-se dos obstáculos com agilidade e até escapa ileso de pegadinhas que as calçadas mal conservadas reservam para os pedestres.
O que este senhor faz aqui na crônica é uma espécie de figuração. Empresto as características dele para transformá-lo em personagem importante da história de uma cidade, o cidadão.
Vou chamá-lo de Cara, com o direito aos contraditórios das conversas rotineiras. Enfim, a fala coloquial, esta que permite este tipo de coisa: “E então Cara? Como vai o senhor?”
Perceberam como é que fica? Parece desrespeitoso, mas expressa uma proximidade, um carinho, um apego, uma relação de amizade. Eu usaria este coloquial sem receio diante de um Cara que vive como eu: com simplicidade, decência e expressão de quem tem noites tranqüilas.
E vejam que uma coisa puxa outra. Agora até as madrugadas fazem parte deste enredo. Eu explico: refiro-me à noites tranqüilas a um fato único, portanto ímpar e absoluto. São coadjuvantes deste fato único pessoas que não tem do que se arrepender e, consequentemente, nada temem.
Tem medo quem erra. Erra quem é injusto. É injusto aquele que subtrai do próximo o bem estar e a dignidade. Dignidade é um tudo e inclui a possibilidade de cada um viver com a certeza de que não está derrubando ninguém que passa a sua frente.
O Cara do meu texto reflete, enfim, uma coletividade. Este Cara sou eu, é você, são os seus e os meus familiares, vizinhos, parentes de perto e de longe, colegas de trabalho, amigos, inimigos e gente. Este Cara, que somos nós, tem de zero a dezenas de anos.
Reúne em torno de si formação cultural diversificada. Às vezes tem a pele clara, outras vezes ela escurece. Pode ter dentes bonitos agora, mas em segundos carece de um bom acompanhamento. Repito: este Cara é a gente, que faz uma cidade crescer com trabalho, sonhos, aspirações e objetivos.
Gente que luta pela casa própria. Gente que briga por uma vaga no mercado de trabalho. Gente que se sacrifica para dar um bom ensino aos filhos. Gente que vai adiante, suando, lacrimejando, sorrindo, ganhando, perdendo.
Então. Se este Cara vai a Londrina de ônibus, ele atravessa as ruas com faixas de pedestre meio desconfiado. Será? Londrina trabalhou uma rápida campanha de conscientização para colocar em funcionamento o Pé na Faixa. Sabe-se que a coisa funciona assim: onde há faixa e funciona o Pé na Faixa tem uma placa avisando. Onde não há placa e existe faixa, tanto o pedestre quanto o motorista devem redobrar a atenção. E nos semáforos funciona o sinal verde para as duas partes.
A campanha londrinense foi tão tímida que ainda hoje há motoristas que ignoram a faixa e há pedestre que xingam os motoristas quando estes cruzam o semáforo no verde e passam necessariamente pela faixa.
Em Taguatinga, no Distrito Federal, foi gasto um ano em campanha de conscientização. Lá o pedestre, antes de colocar o pé na faixa, deve ainda sobre a calçada levantar a mão. Ele só deve pisar a faixa quando os veículos pararem. E se não levantar a mão quem xinga o pedestre é o motorista.
Enfim, as condições foram colocadas com clareza. Taguatinga usou um cão de rua que foi treinado para levantar a pata diante da faixa de pedestre. O cão virou artista de campanha pela televisão. O cão estampou panfletos educativos. O cão mostrou aos motoristas de Taguatinga que quando ele levantasse a pata diante da faixa de pedestre estava pedindo passagem. O cão mostrou ao pedestre que sem levantar a mão o carro não pára.
E o nosso Cara, diante das faixas de pedestre de Cambé? Quando este Cara está pedestre ele fica esperando os veículos passarem e só atravessa quando o ruído do motor está longe. Quando este Cara está motorista ou motociclista ele pisa e vai adiante, pois a faixa é apenas uma pintura no asfalto.
Outro dia este Cara parou diante da faixa para permitir a passagem de um outro Cara, que esperava pacientemente que os carros passassem. E então o Cara de trás, confortável dentro de um possante quatro rodas, achou ruim.
Ah, o título deste cronicão é um trechinho da música Agora Falando Sério, de Chico Buarque.

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