quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Crônica - Na altura do chão

(feito e publicado em Jaraguá do Sul, Santa Catarina - os nomes de ruas e as personagens são daquela cidade)

Os pés de Michelle balançam de cima para baixo. Sob a escrivaninha marfim, no rumo do monitor 14 polegadas que a empresa emprestou a ela para despachar relatórios, preencher planilhas e elaborar contratos. Ajeitados no bico fino do sapato social, sobem e descem insistentemente, anunciam o estado de espírito da moça de rosto fino e delicado.

Os pés de Michelle não balançam de um lado a outro. Não dizem sim ou não. Não estão folgadamente expostos pelas sandálias rasteirinhas que deixam ver as unhas feitas. Ao lado do pé da mesa que comporta o conjunto de duas gavetas, apenas chacoalham apressadamente, escondem a expectativa da menina de concluir um manuscrito, envelopar uma carta, fechar o malote, encerrar o expediente e ir para casa. Acomodados num automóvel confortável que corta a Epitácio Pessoa, ladeia a Getúlio Vargas, evita a Marechal Deodoro e foge do trânsito das seis até chegar em casa após um dia de trabalho, os pés de Michelle pedem o que o rosto dela manifesta com um olhar fatigado: descanso.

Os pés de João Antônio pedalam sem parar. Incomodados pelas tiras ressecadas das havaianas de pisos azuis e palmilhas brancas encardidas, rodam ordenadamente para fazer a bicicleta subir a Procópio Gomes de Oliveira: o lado esquerdo empurra, o lado direito descansa; o lado direito empurra, o lado esquerdo descansa e alivia a dor chata da unha encravada do dedão. Escorados nos pedais gastos da condução de João Antônio, ajudam o ciclista a queimar calorias e arrancam expressões de esforços do rosto suado do catador de papel.

Os pés de João Antônio não querem chegar a algum lugar que leve ao descanso após o expediente das seis da tarde. Não conduzem ele ao frescor de um banho e em seguida a um outro par de sandálias, mais novos e menos sujos. Postados na beira da calçada, sustentam o corpo arcado, de pele grossa e enrugada, encostado na lixeira plástica que oferece reciclados: uma latinha de alumínio, uma caixa vazia de sapatos, um par de meias furadas que, no mínimo, dão numa bola redonda o bastante para os pés dos meninos de João Antônio chutar na direção do gol marcado pelo pé de mamona no fundo do quintal.

Os pés do motorista do ônibus forçam na subida, exageram nas curvas e fazem dezenas de pés de Michelles e Joãos procurarem apoio no assoalho do coletivo. Os pés camuflados nos coturnos são incógnitas: podem esconder temperamentos incontidos de homens que chutam protegidos pelos coturnos. Os pés da indiazinha sentada na beira do shopping apontam com os dedos o outro lado da Emílio Carlos Jourdan, onde as janelas mostram um homem de pés calçados mordendo um pedaço de esfirra.
Os pés do motorista do automóvel não pisam fundo no acelerador do velho Chevette que o transporta até a casa da Ilha da Figueira, onde os pés da mulher dele a fizeram ir de um lado ao outro, do fogão para o tanque de lavar, do tanque de lavar para a pia da cozinha, da pia da cozinha para o varal, até a janta ficar pronta e consistente para dar ao motorista pés tão fortes amanhã, mas controlados o suficiente para evitarem o susto de alguém na faixa de pedestres da Reinoldo Rau.
Os pés enfiados nos coturnos não querem chutar, embora o homem que eles agüentam saiba que o menino de pés pequenos, puxado pelo pai de pés enormes, sinta medo de o soldado confundi-lo com um monstro que pode ser chutado por pés de coturnos que camuflam um homem de personalidade estranha para os menino dos pés que querem crescer para, talvez, calçar um par de coturnos.
Os pés da indiazinha não querem este lado da rua, onde ninguém se interessa pelas peças de artesanato enfileiradas para venda na calçada onde os pés vão e vem, apressados, levando pessoas de pés inchados tamanho é o peso do corpo de quem chega, de quem vai, de quem volta e gira a cidade um dia após o outro, usando os pés para andar e carregar sentimentos e aparências distintas: o olhar meigo de Michelle, a testa enrugada de João Antônio, a preocupação do motorista do ônibus com o estado de saúde do rapaz que perdeu chão e caiu na curva acentuada e feita com pressa depois da ponte Abdon Batista, a prepotência do homem de pés encapados com coturnos, o olhar assustado do menino de pés número 30, a indiferença do pai de pés 41.
É a vida que passa empurrada por pés, na altura do chão. De onde as pessoas saem ou chegam e fazem a vida girar, tocada por pés que não deixam ninguém ficar parado num só lugar.

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