quarta-feira, 30 de junho de 2010

Música - Los que más quiero

Na voz da chilena Isabel Parra, Los que más quiero, de Violeta Parra. A letra traduzida é o que se lê abaixo. Coisa de hum mil, novecentos e antigamente, quando se fazia arte na música. Isabel é filha de Violeta (baixado do Youtube - no vídeo, o nome do autor da montagem com letra em inglês):

O homem que eu mais quero,
No sangue tem o fel.
Me deixa sem sua plumagem
sabendo que vai chover.

A árvore que mais quero,
Tem endurecida a razão
Me priva de sua fina sombra,
Sob os raios do sol.

O rio que eu mais quero,
Não pode ser detido.
Com o ruido de suas águas,
não escuta que eu tenho sede.

O céu que eu mais quero,
Começou a ficar nublado
Meus olhos de nada servem,
A escuridão os mata.

Sem abrigo, sem sombra,
Sem a água e sem a luz.
Só falta que uma faca,
Me prive da saúde.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Crônica - Meu carro de som

Ganhei um radinho de pilha da minha mãe. A marca é Sony, diz o meu pai que é coisa boa. A cor é vermelha, alfineta a minha irmã que é radinho de mulher. As pilhas são pequenas, uma com a ponta virada para cá, outra com a ponta virada para lá. O tamanho é o ideal para o bolso da calça. A antena niquelada sobe e desce. É com ele que eu tento melhorar a recepção das emissoras de preferência.

Vejamos: de manhã, aquela rádionovela com base em fatos reais. À tarde, o programa de músicas brasileiras. À noite, o programa de saudosismo. Estranho, as pessoas sentem saudade e eu, nesta infância que mereço um radio de pilha de presente materno, acho que o momento é muito bom.

Sem contar os fins de semana, quando o dial não sai dos programas esportivas. Sou um torcedor de escalar time na ponta da língua. Dou de lambuja a escalação do banco, o nome completo do massagista e o apelido do roupeiro. Vejo-me até como um narrador esportivo de rádio, daqueles que esperam as cortinas se abrirem para começar o espetáculo, que são eles, tanto quando os jogadores e o jogo em si.

Eu tenho um carrinho de rolimã. Instalei nele um volante velho de caminhão. Pesado, ele conduz o meu veículo virando o eixo dianteiro com cordas. Claro, para fazer uma curva eu preciso dar meia dúzia de voltas. Mas vira, pelo menos até a corda se romper e eu ficar sem direção.

O meu carrinho tem um som. É um radinho de pilha, vermelho, da marca Sony, de duas pilhas, antenas niqueladas e som estridente. Eu vou por estrada de chão batido, escutando radionovela, música e narração esportiva enquanto rodo o volante, que trave, arrebenta a corda, mas me leva sempre para algum lugar.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Dica - A charge de Helder Pavinato

O cotidiano presente em eventos minúsculos, mas que incomodam parte dos envolvidos. Como a mulher na condição de dona de casa diante de um marido que se acha o sustentáculo da casa, só por ser o que traz o salário.

Essa rotina de contradições podem ser vistas nas charges de Helder Pavinato, um cara que conheci há anos e agora volto a encontrar. Alguns trabalhos desse chargista podem ser visto em www.chargeshelderblog.blogspot.com

Se não for possível linkar, copie e cole na barra de endereço. Vale a pena. Eu, particularmente, tive o prazer de trabalhar com grandes chargistas, com destaque para o Ivo Akio, nos nossos velhos tempos da Folha de Londrina. Também conheci uma boa safra de chargistas lá em Santa Catarina, durante os três anos de A Notícia. O Helder está entre aqueles que me agradam.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Crônica - O troço barulhento enche o saco

Eu vi um time de catação perdido no meio do campo. Às vezes era um corre pra lá, um chuta pra cá, um passinho pra frente, e um devolve pro canto. Outras, uma moleza típica de perna bamba. Por sorte, o time de catação saiu do campo meio que ileso: zero a zero.

Foi como nas copas passadas. De repente o time se agiganta. Os passes dão certo e as finalizações acertam a trave adversária. No jogo seguinte é uma judiação. A bola fica quadrada, as chuteiras pesam, a camisa cai desengonçada, o cordão do calção aperta e incomoda, a grama tem cola e pedra.

É com esse time, tão instável quanto a política brasileira, que um dia está bem, outro dia derrama abismo abaixo uma enxurrada de denúncias de falcatruas, que a torcida brasileira trocou nesta sexta-feira, 25 de junho, o almoço pela tela de um aparelho de televisão.

Funcionários de lojas e repartições sairam em turmas a procura de um bom lugar para assistir Brasil e Portugal. As camisas amarelas predominaram. Alguns levaram vuvuzelas, aquelas cornetas irritantes. E assopra dali, assopra daqui. Havia fôlego antes da partida começar.

Entre o primeiro e o segundo tempo, houve torcedor que arrebentou a palheta da vuvuzela, de tanta saliva que o negócio recebeu. E a torcida ao lado, de ouvidos protegidos. Pudera, o clima não era para muito barulho. Além da barriga vazia, coração seco de emoção, carente de vibração, pesado, quase frouxo dentro do corpo.

Enfim, o retorno para o trabalho foi com os ombros caídos. As televisões mostraram torcedores de alguns cantos vibrando pelo empate. Mas quando é que não se faz festa nestes cantos? Se chover tem samba, se fizer sol tem pagode, se nublar improvisa-se um maracatu e, em último caso, aproveita-se a festa junina não para cantar e dançar músicas típicas. E o que se escolhe? Rebolation...

É de sentir cólica e rolar desesperadamente.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Crônica - Nem um fio de cabelo branco...

São quatro numa mesa e jogam conversa fora. Nenhum assunto prioritário. Nada na pauta. A verborragia varia de futebol a compra de supermercado. Há certo receio de falar de mulheres, pois nem todos do grupo são abertos a temas mais íntimos.

Houvesse um vidro na parede com analistas do outro lado observando os quatro, diriam em seus relatórios que tem a ver com a idade. O grupo soma mais de 200 anos. É um reclamando do cachorro do vizinho, outro dizendo que o Dunga não sabe o que faz, o terceiro calculando o lucro que teve na compra mensal do supermercado e o quarto falando de trabalho.

Ou seja, nada bate. E a coisa é cíclica e sem continuidade na rodada seguinte. Daí o primeiro fala do trabalho, o segundo põe falha no cachorro comprado pela filha, o terceiro reclama da conta no supermercado e o quarto diz que o Dunga é bom.

É de deixar os analistas intrigados e com os cabelos arrepiados. Parece um jogo, uma coisa proposital. O mais esperto dos observadores diria que os quatro sabem que estão sendo ouvidos e armaram. Então agora é o primeiro falando do Dunga, o segundo do trabalho, o terceiro do cachorro e o quarto do supermercado.

Aturdidos, os observadores decidem por uma nova metodologia: passam a analisar os quatro de acordo com os cabelos. Se o primeiro tem mais cabelos, estes são logicamente mais grisalhos. Se o segundo tem menos cabelos, estes tendem a parecer menos grisalhos, porque praticamente inexistem. Se o terceiro tem uns pelinhos na cabeça, estes são negros, pois surgiram de raizes fortes, que resistiram à queda. Se o quarto tem um punhado de cabelos do lado direito tapando o brilho da careca da tampa da cabeça, esta forçada juba é negra, porque é pintada.

Loucura, não? Nem os melhores formuladores de testes de raciocínio lógico conseguiriam elaborar algo tão lógico como este, dos cabelos. Claro, porque o primeiro curvou-se ao tempo, deixou crescer a juba e permitiu que o tom prateado dos cabelos brancos tomassem a cabeleira. O segundo tem poucos cabelos. Nem dá para perceber se são negros ou brancos. O terceiro, então, é um matinho aqui e outro ali distante. E o quarto abusa: transfere a propriedade de lá para cá, com muita gomalina, para disfarçar que o capacete está brilhando. Ainda por cima bota uma tinta bem preta, que no sol fica parecendo azul, de tão brilhante.

Imagine lá fora, no vidro, os olhos dos analistas observando aquele punhado de cabelo puxado para o outro lado. Piscam de tanto brilho, se intrigam e se enfurecem. E lá dentro, os quatro, sem nada de produtivo: cachorro, compra de supermercado, Dunga e trabalho. Na outra rodada trabalho, cachorro do supermercado, Dunga e compra. Na próxima, cachorro do trabalho, supermercado do Dunga e assim por diante.

Aquilo foi virando uma zueira no ouvido, enquanto o brilho dos cabelos pintados, ofuscando cada vez mais, deitou os analistas. Um dormiu, outro teve uma crise depressiva, o terceiro urinou na roupa, o quarto foi parar num manicomio. E os quatro lá de dentro se foram como se nada tivesse acontecido e com a sensação de terem saído de uma grande conversa.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Música - Vento Nordeste

Abel Silva e Sueli Costa juntos. Só podia dar em poesia. Vento Nordeste, que no vídeo baixado do Youtube é interpretado por Terezinha de Jesus, é uma prova disso. A letra diz: "Crianças nos claros da tarde, cachorros na boca da noite Os galos nos dentes do dia, cada desejo é um açoite Eu nunca volto nem vou, apenas sou Aberta aquela janela, este peito estrangulado O que não digo me queima, não satisfaz o falado Não te odeio nem te amo, apenas chamo Viaja o vento nordeste, cavalo do meu segredo Se estás comigo distraio, se vais, eu morro de medo Eu não me lembro nem esqueço, adormeço"

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Crônica - Um tempo novo

Hoje eu senti o inverno cutucando os meus braços com um ferro em brasa. Havia lido que ele chegaria pouco antes das oito e meia da manhã. Acordei às seis e espiei pela janela. Não vi nenhuma presença estranha.

Às sete e meia o sol machucava os olhos. Quase avancei uma faixa de pedestre após uma esquina, quando o brilho me cegou. Recompus e segui matuto. Maneiro no acelerador, apesar de um porco, logo atrás, se sentir numa pista de corrida em pleno centro de Londrina.

Às oito senti o calor e acionei o meu ar condicionado: a manivela do vidro da janela. Refrescou. Às nove me senti contrariado. Eu havia previsto que a chuva viria até este horário. Mas nem o sol se inibiu. Continuou firme e desafiador, desaforando inclusive os profissionais da meteorologia. Que pancada de chuva que nada...

Às dez, decidi apostar na sorte. Continuei o resto da agenda em uma moto. Foi quando o inverno, tão quente quanto a temperatura das outras três estações de Londrina, entrou pelas mangas da minha camisa. E eu me dei ao direito de sentir um alívio: graças, eu sou londrinense!

À tarde desci a pé a João XXIII, mochila nas costas. Suei de molhar a camisa. Me veio, durante o percurso, que eu estava diante de um bom tempo. Sim, muito bom tempo, porque eu me senti feliz em todos os momentos daquele dia e pude repartir a minha felicidade com as pessoas pelas quais tenho muito apreço.

Se for sempre assim, que errem todos os dias as previsões. Eu prefiro.

sábado, 19 de junho de 2010

Crônica - Meu ponto cardeal

Hoje o sol nasceu lá na frente de casa, baixinho, bem no meio da forquilha da roseira plantada no comecinho do quintal. Ao lado, à esquerda, fica a quina do muro. Sobe dele um poste, de onde descem os fios que trazem para dentro de casa a luz e a força, a comunicação, o entretenimento, as notícias boas como também as ruins, se elas existirem.

Mas é à direita, entre o portão pequeno e o grande, que fica a caixa de correspondência. Às vezes chegam propagandas. Muito raramente recebo a carta de um parente. Boa parte deles usa, hoje em dia, a tecnologia para se corresponder. Caneta e papel são ferramentas dos mais saudosos, que tentam colocar os corações nas escritas.

Ali naquele ponto do muro, perto de um palmo à esquerda de onde o sol nasce, tem um pequeno lascado no cimento. Foi onde entrou uma pedra no meu quintal, anos atrás, quando briguei com um vizinho. Brincávamos de bola e tinhamos como regra que toda brincadeira terminava em briga.

Lá atrás do muro e das grades do portão tem uma calçada. Em alguns pontos dela as rachaduras são enormes. Há crateras, onde o cimento esfarelado se foi e a terra fica à vista. Ali começa a vida do lado de fora, bem onde o sol surge e todas as entradas de minha casa se abrem.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Relembrando - Uma crônica de um outro tempo

A vida começa a qualquer instante. Feita de dinâmica intensa e assustadora, ela desponta não necessariamente com a luz do dia. Pode aparecer à noite, na penumbra que antecede a madrugada. Nem sempre é duradoura, às vezes se apaga naquele piscar do olho que chama a gota da lágrima. Em casos mais amenos, deisvai-se quando começa a ressaca.

Um dia alguém inventou que a vida começa aos quarenta. Outros aceitaram a idéia e passaram a propagá-la. Mesmo sem ciência, há quem enxergue verdade nesta tese sem defesa em banca de doutores. O resultado disso, quando não trágico, é cômico: numa esquina qualquer, alguém espera a chegada da vida enquanto as pessoas passam, levando-a com a sua diversidade típica. Erros e acertos, cores claras e letreiros difusos, sorrisos e tristezas vão com ela.

O que se pode aguardar lá na outra ponta? A moça de quarenta provavelmente queira retornar aos dezoito. Rugas no rosto provocaram rusgas no coração e a expectativa de uma vida nova se desfez justamente na despedida dos trinta e nove ou na entrada dos quarenta e um. Uma série de coisas levaram a isso: a casa financiada com saldo astronômico em aberto; o carro novo que ainda é velho e problemático; a alma que não foi lavada...

Aqui, no canto, eu fujo. Quero voltar à infância. Prefiro a inocência e a ingenuidade das ruas sem asfalto. Preciso decorar a tabuada de novo, imaginando que vou fechar as minhas contas com mais acerto no futuro. Não quero mais as minhas despesas maiores que as receitas. Quero a bola de meia e uma lata usada de óleo de soja para enrolar a linha de empinar pipa. Com mais de cinqüenta, não quero mais voltar aos quarenta para ver a vida surgir. Quero os cinco anos de idade para andar de motoneta de plástico por uma estrada que eu mesmo construa.

Obs.: crônica já publicada em outro blog do mesmo autor.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Crônica - Outra vingança malígna

Pelo segundo dia seguido o jantar foi devorado na sala. O pai esparramou meia tonelada de nádegas bem no meio do almofadão e fez aquele negócio macio virar um "v", de tanto peso concentrado em um único ponto. E pediu para não ser incomodado, pois queria conferir o noticiário da seleção brasileira de futebol depois do jogo sem graça da tarde contra a Coréia do Norte.

A filha mais velha, lá com os seus nove anos, comia no sofá todos os dias por birra mesmo. Era ela a responsável de catar depois da comilança os grãos de arroz e feijão esparramados sobre o tapete. Então porque não contribuir com a sujeira, derramando na mesinha de centro o caldo gorduroso da salada de tomate? A menina era frequente nessa farra, só para ter o prazer de ouvir o pai rosnar com a sua travessura e a mãe, com um trapo na mão, ralhando para secar a meleca.

O menino, coitado. Ele estava no canto esquerdo do sofá, prato apoiado no braço do móvel, quando o pai chegou e se estatelou no meio do almofadão. Foi um pulo só. No momento em que o negócio fez o "v" o menino foi alavancado para cima. O prato virou e foi feijão e arroz até na orelha direita da irmã, que estava do lado. A mãe xingou o marido, que devolveu a rispidez para a filha, que deu um tapa no braço do irmãozinho, que entornou o copo de suco.

Naquele instante chegava ao fim a enquete feita com os torcedores que comemoraram a vitória do Brasil atrás de copos de cerveja. Uma matéria de televisão que parecia feita há quatro anos atrás: o mesmo enfoque, as mesmas perguntas, os mesmos ridículos e a cara de "novidade sempre" do apresentador do telejornal.

Então, depois do intervalo, entrou o noticiário político. Foi justo no momento em que a mãe passou o trapo no braço molhado do sofá para enxugar o suco derramado. Entraram as imagens de uma moça bonita, tipo miss Brasil, que disse alguma coisa do programa bolsa família, estampando na cara que aquilo era um negócio ideal para se chegar ao trono.

O marido, vendo a cena, lembrou e perguntou: "Não é essa que semanas atrás parecia o Cauby Peixoto? Dizem que ela subiu num palanque com aquela cabeleira para lançar um programa habitacional e o povo pediu para cantar Conceição..."

Ninguém riu da piada, até porque já era tarde. Entrou um careca, magro, olhos fundos e expressão de súplica, do tipo: "Fernandinho quis ferrar os trabalhadores brasileiros, mas eu não sou ele e ele não é eu".

O menino, que ainda enxugava a última gota de lágrima do choro provocado pela bronca, apontou com os dedos para a tela da tevê e no gesto derrubou de novo o copo de suco. Sorte que ninguém percebeu e ele, espertinho, conseguiu disfarçar: "Olha ali o Bento Carneiro, o Vampiro Brasileiro, sem peruca!"

Ninguém riu. O homem saiu do sofá e o almofadão voltou ao normal. No baque do retorno da espuma ao seu lugar, o menino sofreu novo solavanco e engasgou com a cebola cortada em tiras.

Dia de jogo da Copa do Mundo, em véspera de eleição, só tem que dar nisso mesmo. É enrolação de todo quanto é lado.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Conto - A sedução do poder e o poder da sedução

Diziam pelas costas que Gilma morreria solteira quando tivesse lá os seus noventa e poucos anos de idade. Isso desde que Gilma era menina de escola, aluna do catecismo e postulante a uma vaga do curso de inglês. O comentário maldoso saia de diferentes bocas: dos coleguinhas da escola, das beatas do curso de catecismo, dos coordenadores da escolas de línguas. Dilma, aliás, Gilma era muito feia.

Ainda criança Gilma já se apresentava com um físico que parecia um pião. Cabeção enorme, ombros largos e o resto que descia afunilando estupidamente, até terminar nos pés pequenos, mas tão achatados quanto um pé de pato. Certa vez um maldoso pediu uma fieira quando Gilma passou em frente: "Vou rodar este pião até ele ficar bêbado", comentou o engraçadinho.

Adolescente, Gilma se entregou aos estudos. Era uma compensação. Enquanto as amiguinhas namoravam, Gilma dava o duro com a cara enfiada nos livros. Naquele tempo computador era coisa de filme de ficção científica. Então Gilma lia e escrevia, lia e escrevia, escrevia e lia, escrevia e relia. Uma das frases encontradas em seu caderno de anotações: "Um dia serei rainha". Outra: "Vencerei, nem que seja com atos extremos." Mais uma: "Minha vingança será maligna."

Então Gilma atingiu a juventude. Na época, o Rei Roberto Carlos já dizia que, segundo recomendações maternas, o melhor era viver intensamente a vida, sem rancores, sem quermesses da paróquia, sem namoricos colegiais, sem "pra não dizer que não falei das flores", mas com muitas emoções. Em outras palavras, seria o velho calção de banho do Vinicius de Moraes, descompromissado, benéfico e promissor.

Mas Gilma, arredia, não participou do footing de namoradeiras da praça próxima de casa. Trancou-se nos diretórios acadêmicos, elaborou discursos contra o regime, atravessou madrugadas pintando cartazes com pincel atômico e desfilou em passeatas. Não contente, entregou-se corajosamente às formas mais ousadas de combater o que era politicamente errado. A feiura não acabou, mas Gilma tornou-se respeitada. Na verdade, a jovem havia decidido que a feiura, desde então, seria parte de sua personalidade. E que personalidade.

Tão forte que um dia ela chegou ao que tinha escrito anos atrás: "Um dia serei rainha." Ainda sem a coroa, ela percebeu que seu poder estava vinculado a sua carranca. E Gilma usava essa carranca com inteligência.

Um dia, porém, o rei disse a Gilma que para ela ser coroada, precisava arrancar a carranca. Uma coisa não combina com a outra, teria dito o rei, comparando o caso do Ronaldinho Fenômeno, ídolo do Galvão Bueno e do Faustão, que só é charmoso por causa do beiço avançado que se destaca enquanto ele espera na grande área por um passe milagroso que vai lhe garantir marcar o gol.

E Gilma fez uma, fez duas, fez três plásticas. A primeira foi um remendo, a segunda um desastre e a terceira, oh... escutei um menino de 17 anos comentando com um colega: "Quem é esta gatinha na tevê falando sobre política? Mano, que coisa linda".

Preocupação da história. Que ela, agora transformada em rainha, não cumpra outro dito do passado: "Minha vingança será maligna". Senão, como dizia o Collor de Mello, "duela a quem duela" eu que venci com atos extremos vou punir todos os que forem feios. E eu, nessa, estou ralado.

sábado, 12 de junho de 2010

Crônica - Pra onde foram os Antonios?



Pelo que eu saiba, nenhum rojão estourou até onde os meus ouvidos me permitem escutar. Não percebi nos caminhos que percorri neste 12 de junho qualquer amontoado de lenha ensaiado para acender uma fogueira à noite. Nem gravetos, muito menos fósforos coloridos, traques ou estalos de salão.

A véspera do Dia de Santo Antônio passou em branco. A única lembrança física de uma comemoração eu enxerguei da janela do apartamento, lá pelas quatro da tarde. Na lojinha em frente, o comerciante pendurou bandeirolas de cores variadas. Até pensei, de início, se tratar de uma torcida múltipla para as equipes que disputam a Copa do Mundo de Futebol. Só depois eu me lembrei de Santo Antônio. Veja, até eu havia esquecido.

Não sou Antônio, nem João e nem Pedro. Mas sou daqueles londrinenses que cresceram em bairro com ruas sem asfalto. Lá na rua Juruá, na Vila Nova, aqui em Londrina, pelo menos duas festas juninas eram tradicionais: a do Seu João e a do Seu Francisco, que apesar de também não ser Antônio, nem João e nem Pedro, patrocinava uma fogueira com direito a pipoca, amendoim, batata-doce, quentão, canjica e muitos fogos de artifício.

As duas festas eram eventos religiosos, de fé e de comprometimento. Nos quintais dos patrocinadores das fogueiras, erguiam-se os estandartes dos santos homenageados. Outra coisa interessante, não havia a babaquice das pessoas se vestirem de caipiras, com chapéus de palha de abas desfiadas, paleto xadrez e gravatinha improvisada.

As fogueiras da rua Juruá eram originais: se morar em rua sem asfalto era coisa de caipira, então todos eramos caipiras; se usar chinelo de dedo era coisa de caipira, eramos todos caipiras; se botinão era coisa de caipira, todos usavamos botinões até para ir a missa da Paróquia Nossa Senhora Aparecida.

As mocinhas usavam as suas melhores roupas e andavam em turmas, numa espécie de footing, enquanto os rapazes esperavam pela passagem delas para manifestar elogios. A molecada brincava ao redor das fogueiras com calções e camisetas encardidas e pés no chão. Os adultos ocupavam os bancos de madeiras e trocavam conversas até o apagar da última brasa. Os Antônios, os Joãos e os Pedros comemoravam com os familiares, os parentes e os vizinhos e demonstravam sentir prazer de transformar uma data de nascimento em uma festa coletiva.

Então se foram os Antônios, desde os que levam acento circunflexo no "o" como também os sem-acento. Assim como desapareceram os Joãos, pois alguns da nova safra ganharam sofisticação no nome e viraram Jonhy ou Jonh. Com eles sumiram os Pedros, as fogueiras, os estalos de salão e os rojões. Ficaram só as festas juninas, urbanamente produzidas e, sendo assim, debochadas, chegando em alguns casos ao insulto de uma tradição.

É uma pena.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Conto - Ares de junho

Era um vento rasteiro e leve com força pouca para apenas empurrar contra a parede da varanda as folhas de arruda caídas por culpa de um acidente doméstico. Fincada no barro socado em um vaso de cerâmica, a planta se fez frágil quando a vassoura encostada na mureta do lugar tombou e bateu num galho com impacto.

Ali, entre um cochilo e outro na cadeira colocada em diagonal, para aproveitar o feixe de sol das três da tarde, dona Glória ainda se pergunta se foi por descuido dela ou o gato do vizinho, de olho no canário preso na gaiola pendurada acima, resvalou no objeto e provocou a queda.

Arrudas, segundo ela, espantam coisas ruins e por isso protegem a casa. A inveja, por exemplo, bate e rebate. Vai contra quem a tem. Às vezes ela se pega com o corriqueiro sintoma de dor de cabeça e se cura com a ponteira de um galho, que fica até murchar apoiado na orelha. Quando as folhas amolecem e perdem o brilho da vida, a enxaqueca vai embora.

"Coitadnhas", imagina dona Glória. "A arruda sugou toda a dor de cabeça". O pensamento vai longe e volta, na velocidade e na frequência do sono de depois do almoço. De vez em quando ela mesma se espanta ao perceber um ronco. Ao despertar, ainda com os olhos fechados ajeita-se na cadeira. É a maneira que usa para se convencer que o grunhido ocorreu porque o corpo estava comprimido.

Então balança os pés, que estão cruzados ora com o calcanhar esquerdo para cima e logo em seguida o contrário. Um bocejo demorado abala rapidamente a articulação e quase provoca caimbrã.

Dona Glória pena que tem ainda o quintal para ser varrido. O jardim precisa de um pouco de água. As roupas penduradas no varal precisam ser recolhidas antes que fiquem duras e difíceis de passar. A gaiola precisa de limpeza.

Assim ela abre os olhos e mira-os para além do muro, onde a copa de uma árvore enfeita o céu azul. Não faz frio. Mas também não é calor. O vento esfria os pés e um espirro faz o pássaro da gaiola, tão sonolento quanto a dona, abrir e fechar os olhos.

E já é inverno, por isso a preguiça. O feixe de luz do sol agora sobe a parede. O vento, ainda leve, agora causa mais frio. Ares de junho, isto é que é vida, pensa a mulher antes de mais um cochilo. E pensar que o gato nem passou pela varanda para espiar o canário.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Crônica - Farinha com água dava uma boa cola para montar pipa



As varetas a gente negociava com os maiores. Eles tinham estoque de bambu e sabiam afiná-las no ponto certo, para que não ficassem pesadas, de tanto grossas, ou não envergassem ao vento mais forte por terem ficados na casca. Também sabiam envergar na medida a vareta que ficava na horizontal. Na negociação entrava figurinha, bolinha de vidro, caneta, lápis, um par de tiras de elástico para fazer estilingue e o que mais houvesse no bolso. Às vezes alguns moedinhas resultavam em boa permuta.

Os menores até que tentavam caprichar no afinamento das varetas. Mas os maiores colocavam defeitos. Diziam que a pipa ficava pensa porque a vareta pesava mais de um lado. Botavam erro até nas amarras do arco que se fazia na vareta horizontal. Um dia me disseram que a minha pipa subia meio de lado porque numa ponta da vareta eu fiz três nós e na outra eu fiz cinco. E olha que o cara nem tinha como verificar quantos nós eu havia feito em cada lado.

Já existia a goma arábica, que podia ser comprada na rua comercial mais próxima. A pasta gosmenta e de um transparente encardido vinha em vidros. Na tampa, a haste com o pincel. Era moleza montar pipa com aquela cola. Mas a rua comercial era um terreno minado para nós, que morávamos em trecho sem asfalto. Nossos pais nos intimidavam com histórias medonhas de crianças atropeladas por ônibus, moleques derrubados por cavalos dos carroceiros e assim por diante. Era um pavor. Só os maiores iam para lá.

Por isso montávamos as nossas pipas com papéis reaproveitados. Lembram os cartuchos de antigamente? Aqueles mais finos, marronzinho claro? Dois daqueles davam uma pipa remendada no meio. O terceiro era para os rabos em argolas ou em tiras compridas. A linha a gente ganhava dos pais, junto com a latinha de óleo de soja que funcionava como carretilha.

E a cola? Ah, este era o segredo. Diziam no bairro que o arroz cozinhado pelas famílias japonesas, sem óleo e sem sal, colava tão bem como a goma arábica. Mas nem todos tinham a cara de pau de pedir uma colher de arroz cozido sem sal e óleo para um colega japonês.

Então o jeito era entrar furtivamente na cozinha e subtrair, sem fazem bagunça para não deixar vestígio, um punhado de farinha de trigo. Empastada com água na quantidade certa, dava uma cola que, depois de seca, não havia vento que descolasse.

E as nossas pipas, de papel reciclado, subiam tanto quanto as outras. Ganhavam os céus ao lado de pipas de várias cores e faziam a gente retornar para casa, no final da tarde, com o rosto queimado de sol.

domingo, 6 de junho de 2010

Importante - Terça-feira, no Calçadão

Todos no Ato Público de terça-feira, 8 de junho de 2010, no Calçadão de Londrina. Às 18 horas.

"Vamos mostrar a nossa indignação com a corrupção e os desvios de dinheiro público na Assembléia Legislativa do Paraná!" - convoca folheto da OAB-Londrina e da Acil.

Aliás, não só lá, como também aqui e em Brasília. Hora de parar a hibernação e tomar atitudes sérias e concretas, valendo inclusive para as eleições de presidente da República, senadores, governadores, deputados federais e deputados estaduais.

Chega de clientelismo!

Mais detalhes no www.novoparana.com.br

sábado, 5 de junho de 2010

Reportagem - Vandalismo na Biblioteca Virtual




O prédio da Biblioteca Virtual do Jardim Franciscato, na Zona Sul de Londrina, foi mais uma vez alvo de vandalismo.

Na semana passada, janelas dos fundos foram apedrejadas, por volta das 23 horas. Uma delas teve praticamente todos os vidros quebrados.

Na tarde de sábado, 5 de junho de 2010, enquanto voluntárias da Associação de Mulheres Batalhadoras do Jardim Franciscato preparavam uma feijoada promocional, os cacos de vidros, ajuntados, eram mantidos perto da janela para dificultar o acesso de invasores no prédio. Cadeiras também foram amontoadas para reduzir o risco de invasão.

A Biblioteca Virtual já foi arrombada há anos e os vidros das janelas frequentemente amanhecem quebrados. O prédio é uma conquista da líder comunitária Rosalina Batista, que durante um congresso internacional venceu concurso de projetos comunitários da Fundação Kellogs, que financiou a obra.

Nas fotos, a janela com os vidros quebrados durante o vandalismo da semana passada (segunda foto)e a panorâmica dos bairros próximos através dos estilhaços.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Crônica - Cheiro de manga rosa



Uma velha bicicleta era a condução daquele homem. Mais do que isso. Com a Monark vermelha e branca, ele ganhava a vida. Carregava amarrada na bagageira uma caixa de madeira, onde colocava pacotes de amendoim salgado, paçoca, doce de leite e pipoca que eram distribuídos nos pequenos bares dos bairros próximos de onde morava.

Trabalhava antes com uma Caloi preta própria para carga. O bagageiro ficava na frente, visível aos olhos do condutor que suava em subidas intermináveis, levando no pedal e nas forças das pernas um veículo pesado e lento.

Ah, se ele tivesse uma Lanbretta. Até eu aproveitaria os momentos de folga daquele homem para fazer de conta que eu podia sair motorizado, sentido o cheiro de combustível queimado e ouvindo o estouro suave da combustão, parecendo uma panela de pipoca.

O homem deixaria a sua Lanbretta na sombra de um dos três pés de manga rosa do quintal, perto de onde descia uma corda. Na ponta, uma balaústra amarrada. Eu ficava de pé sobre a madeira e balançava.

Com os olhos fechados eu sonhava. O sonho meu era o mesmo do homem da bicicleta: uma condução para ele trabalhar e para eu brincar nas folgas dele, fazendo de conta.

Um dia ele se foi. Morreu sem ter o sonho de um carro trasnformado em verdade. E me deixou sem eu ter para quem sonhar na sombra da mangueira, no balanço de corda, sentindo o vento bater no rosto com um cheiro doce de manga rosa.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Crônica - Meu ponto de ônibus

Ali raramente alguém desce. Eu já percebi isso. É possível fazer uma comparação grosseira e concluir que de cada quinze pessoas que sobem, apenas uma sai. Por que quinze? Poderia ter dito vinte, ou vinte e cinco, para trabalhar com valores mais chamativos. Ou tentaria ser mais exato, dizendo dezesseis, vinte e um ou vinte e seis.

Mas a minha comparação não é científica. Eu quis, de propósito, comparar com algo que permitisse destacar mais a simbologia do que a quantidade de quem sobe e desce do ônibus urbano naquele ponto de parada que fica no meu caminho.

Um dia parei por ali, lá pelas cinco e meia da tarde, para um rápido descansar após uma cansativa caminhada. Não cogitei pegar um ônibus que me levasse a um destino. Eu apenas uni o útil ao interessante. Despertado pela curiosidade, aproveitei um banco de cimento para sentar e aliviar a pressão dos sapatos nos pés, ao mesmo tempo em que pudesse imaginar para onde iam as pessoas que tomavam ônibus naquele ponto.

Imaginei que eram todos trabalhadores fazendo o caminho de retorno para casa após mais um dia de trabalho. A mulher com os cabelos negros feito um rabo provavelmente seria uma diarista. O jovem de mochila nas costas seria um auxiliar de serviços gerais.

E a garota que ansiosamnente confere os ponteiros do relógio de pulso? Seria ela uma balconista durante o dia e que, à noite, enfrentaria aulas na escola perto de casa? Aquele senhor, com uma bolsa surrada de tanto uso, com certeza seria o porteiro de algum condomínio residencial.

Enfim, o que planejei para aquelas pessoas, que passavam minutos esperando por um ônibus é que elas, naquela rotina diária de ir e vir de um lugar ao outro, tinham lá as suas felicidades justamente por terem um cotidiano preenchido por rotinas.

Casa, emprego, emprego, casa. As pessoas do ponto de ônibus do meu caminho tinham ocupações. Isso eu percebia. Isso eu invejava. Isso me colocava no lugar delas, para cumprir diariamente o jogo do chega e sai, sobe e desce, vai e vem de um dia feito de acontecimentos que, embora parecessem muito com o que foi feito ontem ou anteontem, sempre seriam diferentes por mais pequenas que fossem as atitudes fora do costumeiro.

Então me imaginei naquele ponto, aguardando o ônibus que me levaria para algum lugar onde o meu cotidiano me trouxesse sempre novidades. Mas nunca esperei a condução e rotineiramente segui a pé, como de hábito, depois de aliviar a pressão dos sapatos nos pés por caminhar minutos na direção do meu destino.