quarta-feira, 23 de junho de 2010

Crônica - Nem um fio de cabelo branco...

São quatro numa mesa e jogam conversa fora. Nenhum assunto prioritário. Nada na pauta. A verborragia varia de futebol a compra de supermercado. Há certo receio de falar de mulheres, pois nem todos do grupo são abertos a temas mais íntimos.

Houvesse um vidro na parede com analistas do outro lado observando os quatro, diriam em seus relatórios que tem a ver com a idade. O grupo soma mais de 200 anos. É um reclamando do cachorro do vizinho, outro dizendo que o Dunga não sabe o que faz, o terceiro calculando o lucro que teve na compra mensal do supermercado e o quarto falando de trabalho.

Ou seja, nada bate. E a coisa é cíclica e sem continuidade na rodada seguinte. Daí o primeiro fala do trabalho, o segundo põe falha no cachorro comprado pela filha, o terceiro reclama da conta no supermercado e o quarto diz que o Dunga é bom.

É de deixar os analistas intrigados e com os cabelos arrepiados. Parece um jogo, uma coisa proposital. O mais esperto dos observadores diria que os quatro sabem que estão sendo ouvidos e armaram. Então agora é o primeiro falando do Dunga, o segundo do trabalho, o terceiro do cachorro e o quarto do supermercado.

Aturdidos, os observadores decidem por uma nova metodologia: passam a analisar os quatro de acordo com os cabelos. Se o primeiro tem mais cabelos, estes são logicamente mais grisalhos. Se o segundo tem menos cabelos, estes tendem a parecer menos grisalhos, porque praticamente inexistem. Se o terceiro tem uns pelinhos na cabeça, estes são negros, pois surgiram de raizes fortes, que resistiram à queda. Se o quarto tem um punhado de cabelos do lado direito tapando o brilho da careca da tampa da cabeça, esta forçada juba é negra, porque é pintada.

Loucura, não? Nem os melhores formuladores de testes de raciocínio lógico conseguiriam elaborar algo tão lógico como este, dos cabelos. Claro, porque o primeiro curvou-se ao tempo, deixou crescer a juba e permitiu que o tom prateado dos cabelos brancos tomassem a cabeleira. O segundo tem poucos cabelos. Nem dá para perceber se são negros ou brancos. O terceiro, então, é um matinho aqui e outro ali distante. E o quarto abusa: transfere a propriedade de lá para cá, com muita gomalina, para disfarçar que o capacete está brilhando. Ainda por cima bota uma tinta bem preta, que no sol fica parecendo azul, de tão brilhante.

Imagine lá fora, no vidro, os olhos dos analistas observando aquele punhado de cabelo puxado para o outro lado. Piscam de tanto brilho, se intrigam e se enfurecem. E lá dentro, os quatro, sem nada de produtivo: cachorro, compra de supermercado, Dunga e trabalho. Na outra rodada trabalho, cachorro do supermercado, Dunga e compra. Na próxima, cachorro do trabalho, supermercado do Dunga e assim por diante.

Aquilo foi virando uma zueira no ouvido, enquanto o brilho dos cabelos pintados, ofuscando cada vez mais, deitou os analistas. Um dormiu, outro teve uma crise depressiva, o terceiro urinou na roupa, o quarto foi parar num manicomio. E os quatro lá de dentro se foram como se nada tivesse acontecido e com a sensação de terem saído de uma grande conversa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: