terça-feira, 15 de junho de 2010

Crônica - Outra vingança malígna

Pelo segundo dia seguido o jantar foi devorado na sala. O pai esparramou meia tonelada de nádegas bem no meio do almofadão e fez aquele negócio macio virar um "v", de tanto peso concentrado em um único ponto. E pediu para não ser incomodado, pois queria conferir o noticiário da seleção brasileira de futebol depois do jogo sem graça da tarde contra a Coréia do Norte.

A filha mais velha, lá com os seus nove anos, comia no sofá todos os dias por birra mesmo. Era ela a responsável de catar depois da comilança os grãos de arroz e feijão esparramados sobre o tapete. Então porque não contribuir com a sujeira, derramando na mesinha de centro o caldo gorduroso da salada de tomate? A menina era frequente nessa farra, só para ter o prazer de ouvir o pai rosnar com a sua travessura e a mãe, com um trapo na mão, ralhando para secar a meleca.

O menino, coitado. Ele estava no canto esquerdo do sofá, prato apoiado no braço do móvel, quando o pai chegou e se estatelou no meio do almofadão. Foi um pulo só. No momento em que o negócio fez o "v" o menino foi alavancado para cima. O prato virou e foi feijão e arroz até na orelha direita da irmã, que estava do lado. A mãe xingou o marido, que devolveu a rispidez para a filha, que deu um tapa no braço do irmãozinho, que entornou o copo de suco.

Naquele instante chegava ao fim a enquete feita com os torcedores que comemoraram a vitória do Brasil atrás de copos de cerveja. Uma matéria de televisão que parecia feita há quatro anos atrás: o mesmo enfoque, as mesmas perguntas, os mesmos ridículos e a cara de "novidade sempre" do apresentador do telejornal.

Então, depois do intervalo, entrou o noticiário político. Foi justo no momento em que a mãe passou o trapo no braço molhado do sofá para enxugar o suco derramado. Entraram as imagens de uma moça bonita, tipo miss Brasil, que disse alguma coisa do programa bolsa família, estampando na cara que aquilo era um negócio ideal para se chegar ao trono.

O marido, vendo a cena, lembrou e perguntou: "Não é essa que semanas atrás parecia o Cauby Peixoto? Dizem que ela subiu num palanque com aquela cabeleira para lançar um programa habitacional e o povo pediu para cantar Conceição..."

Ninguém riu da piada, até porque já era tarde. Entrou um careca, magro, olhos fundos e expressão de súplica, do tipo: "Fernandinho quis ferrar os trabalhadores brasileiros, mas eu não sou ele e ele não é eu".

O menino, que ainda enxugava a última gota de lágrima do choro provocado pela bronca, apontou com os dedos para a tela da tevê e no gesto derrubou de novo o copo de suco. Sorte que ninguém percebeu e ele, espertinho, conseguiu disfarçar: "Olha ali o Bento Carneiro, o Vampiro Brasileiro, sem peruca!"

Ninguém riu. O homem saiu do sofá e o almofadão voltou ao normal. No baque do retorno da espuma ao seu lugar, o menino sofreu novo solavanco e engasgou com a cebola cortada em tiras.

Dia de jogo da Copa do Mundo, em véspera de eleição, só tem que dar nisso mesmo. É enrolação de todo quanto é lado.

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