segunda-feira, 7 de junho de 2010

Crônica - Farinha com água dava uma boa cola para montar pipa



As varetas a gente negociava com os maiores. Eles tinham estoque de bambu e sabiam afiná-las no ponto certo, para que não ficassem pesadas, de tanto grossas, ou não envergassem ao vento mais forte por terem ficados na casca. Também sabiam envergar na medida a vareta que ficava na horizontal. Na negociação entrava figurinha, bolinha de vidro, caneta, lápis, um par de tiras de elástico para fazer estilingue e o que mais houvesse no bolso. Às vezes alguns moedinhas resultavam em boa permuta.

Os menores até que tentavam caprichar no afinamento das varetas. Mas os maiores colocavam defeitos. Diziam que a pipa ficava pensa porque a vareta pesava mais de um lado. Botavam erro até nas amarras do arco que se fazia na vareta horizontal. Um dia me disseram que a minha pipa subia meio de lado porque numa ponta da vareta eu fiz três nós e na outra eu fiz cinco. E olha que o cara nem tinha como verificar quantos nós eu havia feito em cada lado.

Já existia a goma arábica, que podia ser comprada na rua comercial mais próxima. A pasta gosmenta e de um transparente encardido vinha em vidros. Na tampa, a haste com o pincel. Era moleza montar pipa com aquela cola. Mas a rua comercial era um terreno minado para nós, que morávamos em trecho sem asfalto. Nossos pais nos intimidavam com histórias medonhas de crianças atropeladas por ônibus, moleques derrubados por cavalos dos carroceiros e assim por diante. Era um pavor. Só os maiores iam para lá.

Por isso montávamos as nossas pipas com papéis reaproveitados. Lembram os cartuchos de antigamente? Aqueles mais finos, marronzinho claro? Dois daqueles davam uma pipa remendada no meio. O terceiro era para os rabos em argolas ou em tiras compridas. A linha a gente ganhava dos pais, junto com a latinha de óleo de soja que funcionava como carretilha.

E a cola? Ah, este era o segredo. Diziam no bairro que o arroz cozinhado pelas famílias japonesas, sem óleo e sem sal, colava tão bem como a goma arábica. Mas nem todos tinham a cara de pau de pedir uma colher de arroz cozido sem sal e óleo para um colega japonês.

Então o jeito era entrar furtivamente na cozinha e subtrair, sem fazem bagunça para não deixar vestígio, um punhado de farinha de trigo. Empastada com água na quantidade certa, dava uma cola que, depois de seca, não havia vento que descolasse.

E as nossas pipas, de papel reciclado, subiam tanto quanto as outras. Ganhavam os céus ao lado de pipas de várias cores e faziam a gente retornar para casa, no final da tarde, com o rosto queimado de sol.

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