sexta-feira, 29 de junho de 2012

Conto - Outras luas

A lua é de Letícia. Foi dada a ela por Henrique já no início da noite quando se pôs cheia. Imensa e prateada, mostrou manchas que outrora a moça julgava ser São Jorge sobre o cavalo e de lança em punho. Assim diziam os antigos. Letícia, ainda menina, ouvia e aceitava.

Agora a pretura rabiscada na face exposta da bola de luz eram saliências do amor, segundo consenso do casal de namorados. Sinais da eternidade prometida em juras, aos sussurros e entre beijos duradouros.

A paixão é assim. Aquela troca de afagos se fazia recente, coisa de dois dias e algumas horas. Mas suficiente para Letícia se apossar de algo que tantas outras queriam. E nem todas tinham o privilégio de em tão pouco tempo merecer de seus amados tamanho presente.

Mesmo distante a lua podia ser tocada pela moça. Bastava erguer os braços e estender as mãos, onde a claridade deitava sobre as palmas e deixava uma sensação de maciez. Aquelas mãos é que retribuíam com carícias na pele de Henrique. Primeiro no rosto, depois no pescoço e em breve no peito, descendo e subindo, subindo e descendo.

A lua era também testemunha. Muito do que se queria fazer era negado realizar sob os olhares dela, brilhante e curiosa. Então se punha o casal embaixo da copa da árvore, ele tão ressabiado quanto ela, para os apertos mais finalizadores e os sentimentos mais profundos. Sempre olhando de lado, ambos, com receio de marcar aquele símbolo pendurado no céu com os respingos de uma necessidade física do amor.

Por isso Letícia e Henrique esperavam o quarto minguante com muita ansiedade. Era como guardar a esfera valiosa numa caixa, para que ela não perdesse o brilho. E tudo se fazia mesmo nas noites em que as estrelas iluminavam com mais força o canto do quintal onde ambos namoravam.

A lua nova, em seguida, era o tempo de espera. Às vezes ela coincidia com o período fértil da moça, quando os cuidados eram necessários. Mas não se poupavam os beijos, cuja duração se media pelo tamanho do fôlego. Quanto mais demorado mais os pés saiam do chão.

Então o quarto crescente aparecia feito um filete, curvo e prenunciador. Chegava a hora de tirar a caixa de cima do armário e abri-la para soltar a lua cheia, que representava, sempre e incontestável, o recomeço de uma boa história vivida por duas pessoas: declarações de amor, gritos de paixão, sussurros, promessas, compromissos e a copa da árvore, cúmplice dos atos.

Nem aos planos e aos projetos Letícia e Henrique haviam chegado quando depois de muitas luas as nuvens passaram a esconder a lua, qualquer que fosse ela: cheia, minguante, nova ou crescente. O namoro chegou ao fim e ela abandonou o presente no mesmo ponto do céu onde a havia recebido. Ele tomou a lua de volta para dá-la a quem surgisse. E outras luas vieram, assim como as nuvens se seguiram.


quinta-feira, 28 de junho de 2012

Miniconto - Pesadelo

Se o telefone tocar deixa que eu atendo. Deve ser coisa do trabalho e isso não tem hora. Até de madrugada costumam ligar. Pode ser uma emergência. Por que me encara desse jeito? Parece desconfiada ou está insinuando? Eu heim...

Dito isto percebo que me atolo cada vez mais na mentira. Falseio na voz e sei que ela percebe. Aliás, o silêncio dela diz tudo. Enquanto ela se vira para o outro lado, quieta, sem fazer qualquer cobrança, estico o braço, apago a luz e torço para que o telefone não toque. Porque se houver alguma chamada a esta hora da madrugada será a outra, pronta para dizer a esta que eu minto.


quarta-feira, 27 de junho de 2012

Crônica - De todos os tipos de brevidade

Brevidade bem feita derrete na boca. É a dentada o único exercício para engolir um pedaço. Basta apenas esperar a massa perder o crocante e virar uma pasta. Sente-se o gosto do açúcar na medida certa e de mais não se sabe o que. Maisena, margarina, fermento, ovos ou sal? Vê-se que não há mistério. É mágica! Sem ingredientes especiais que ressaltem o sabor a brevidade feita com capricho fica gostosa.

Mas o enfoque é de outras brevidades e nem todas saborosas. A vida, por exemplo, pode ser breve mesmo que se viva cem anos. Como pode ser longa indo-se embora com apenas vinte anos. Já entre a paixão e o amor às vezes fica-se com a conveniência quando o assunto é brevidade. E isso significa mentira.

Dizem que a paixão é a chama. E o fogo, quando a lenha é consumida e vira brasa, anuncia o fim. Outra lenha terá que ser colocada para que a chama permaneça. A dúvida é se haverá mais material inflável. O estoque pode se esgotar no mesmo tempo em que a última lasquinha de madeira se transforma em carvão.

Quanto ao amor entre um homem e uma mulher? Para sempre! O que se sabe é que o sempre só tem data certa para começar. A durabilidade é o problema. Pode ser breve. Pode ser relativamente breve. Pode durar uma vida e então alguém dirá que a vizinha que ficou viúva após o terceiro ano do casamento nunca deixou de amar o seu cônjuge.

Incontestável. Três anos delimitam o começo e o fim do sempre quando se quer assim. Mas há casos de três meses. Ou três semanas e provavelmente três dias e isso delatará equívoco. Nunca três horas, a não ser que a tese do amor a primeira vista seja verdade. Não se ama por apenas três horas quando o amor colocado em prática é o do emaranhado que ajunta num mesmo pote sentimentos e necessidades físicas.

Vejam! Brevidade que é guloseima é muito mais fácil de conceituar. Bom ou ruim? Exageradamente doce? Sem o fundamental crocante na massa? Assadura fora do ponto? Já a brevidade nas relações humanas é complexa. Puxa-se o fio e as alvuras que surgem denunciam, em determinadas situações, que o breve está muito longo.


terça-feira, 26 de junho de 2012

Crônica - O pão por cima da cerca de madeira

Vinha um pão caseiro ainda quente pelo menos uma vez por semana. Grande e cheiroso! Presente de Dona Maria Baiana, vizinha que passava a oferenda por cima da cerca de balaústre.

Feito nos quintais de outrora, o pão tinha a massa preparada a mão sobre uma mesa de madeira colocada na varanda. Nem o cilindro manual preso a uma das quinas do móvel era usado. E o forno, feito de tijolos, colocava o produto no ponto com lenha catada nas redondezas.

Nem sempre havia manteiga ou margarina. Mas bastava o café feito na hora e as fatias cortadas milimetricamente por mamãe mexiam com as lombrigas. Era um momento de festa mesmo que o dia fosse uma segunda, terça, quarta, quinta ou sexta de chuva.

Depois do pedaço mais grosso esperava-se a sobra, repartida com critério e justiça de mãe: igual para todos. E mais café esquentado no bule de alumínio de alça refeita com criativo improviso. Passado no coador de pano, o líquido escuro tinha gosto. E que gosto!

Só então, com a gula amainada, as crianças voltavam para o terreno em volta da casa. Se chovia brincava-se com o barro. Se estiava as árvores davam sombra. Eram quintais grandes. Varais de arame atravessavam a parte dos fundos de um lado a outro. Plantas ornamentais dividiam os espaços com grama e ervas daninhas. Cães perambulavam ao lado de gatos e frango caipira.

Dona Maria Baiana, alta, idosa e obesa, era na época apenas uma vizinha. Como tantas outras: a vizinha do lado esquerdo, a vizinha do lado direito, a vizinha dos fundos e a vizinha da frente, no outro lado da rua. O conceito de proximidade era simplista. Talvez porque fossemos todos pessoas simples, acostumadas a repartir o pouco que tínhamos com quem estivesse próximo.

Vigorava uma permuta espontânea. Ganha-se o pão hoje e retribui-se amanhã com umas laranjas. Ou o mamão e quem sabe um pedaço de melancia. Os primeiros moradores a terem geladeiras nas cozinhas costumavam colocar forninhos extras para congelar. Assim os vizinhos também podiam se refrescar nos dias de calor.

Dona Maria Baiana! Na verdade Dona Maria. O Baiana foi um acrescento por causa da origem da velha senhora. Faz muito tempo! E só agora ela aparece como pessoa importante nas nossas lembranças.

   

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Crônica - Da 1ª transmissão ao protesto de Sara

Sara Winter, Michael Jackson, cotonete, Frederico Franco, Fernando Lugo e televisão. Não sei o que converso com esta mulher. Mandaram eu fazer sala e cá estou. Foi bem assim: “Segura ela uns vinte minutos na recepção enquanto fechamos o relatório. Conversa sobre alguma coisa que não tenha nada a ver só para passar o tempo”.

E agora? Me informaram que a mulher é um gênio. Domina meia dúzia de idiomas e tem conhecimento de tudo o que acontece no Brasil e no mundo. É requintada. A origem nobre permite a ela analisar Michel Teló e Michelangelo com o mesmo rigor, sem que um cidadão mediano saiba se o que ela manifesta é crítica ou elogio.

Me deram um exemplo: “Não se encabule. No fundo o que ela vai dizer é que Michelangelo se eterniza pela sua arte e Michel, por outro lado, é a arte do fisiologismo. Entendeu? Um é ouro, outro é coco. Então apenas consinta. Se não quiser falar acene com a cabeça que concorda”.

É pouco para mim. Sou tagarela e tenho opinião formada sobre algumas coisas. “E a brasileirinha que foi presa na Ucrânia antes do jogo da Eurocopa? A senhora não acha loucura uma menina de 19 anos sair de São Paulo para protestar lá longe, com os seios de fora?”

Nada. Ela despreza. Mexe no tablet para consultar a agenda. Isso me enerva, pois os vinte minutos já viraram trinta. “Faz três anos que o Michael Jackson morreu. É... 25 de junho de 2009. Era um grande talento no palco. Produção profissionalizada. Que perda, não?”

Nada ainda. Estou de frente para ela. Sorte que a mulher não enxerga o meu monitor. Estou puxando mais assuntos no Google. “Está bom a temperatura do ar condicionado? Quer que eu diminua um pouco? Não está tão calor assim... falando em quente, o que será que vai dar a briga política lá no Paraguai? Parece que o Frederico Franco, vice que assumiu, de tão pressionado que está terá muita dificuldade para governar. Capaz de dar reviravolta e o Fernando Lugo voltar”.

Ela continua mexendo no tablet. Fico, assim, constrangido e desabastecido de temas. E sem querer eu dou um grito: “Cotonete!” Qual? A mulher prossegue não dando a mínima. Dou um salto de alívio quando o telefone toca, penso que é o pessoal lá de dentro liberando a entrada dela na reunião.

Que nada! O fulano me diz: “Agüenta aí. Continua a conversa que já estamos finalizando o relatório. Vai trocando idéia sobre qualquer coisa. E além do mais ela é coroa mas até que é bonita, concorda? Então...”
Sacanagem. Entro numa página que trazem os fatos históricos do dia 25 de junho e descubro que em 1967 houve a primeira transmissão mundial de televisão ao vivo, via satélite. Entro no assunto ou fico quieto?

Decido não pagar mico. Permaneço em silêncio e só então ela se manifesta: “A Sara Winter tem uma formação cultural privilegiada, mas não é por isso que ela está em condições para fazer protesto fora do Brasil com os seios de fora. O Michael Jackson foi sempre cercado de polêmica sustentada pela mídia. Mas concordo que ele era aplicado e perfeccionista nos shows. E já que você gritou lembro que hoje, 25 de junho, é o dia do cotonete, inventado por um ex-combatente de guerra chamado Leo Gersternzang. E sabe qual foi a música que os Beatles cantaram na primeira transmissão mundial ao vivo da televisão? Sabe? All You Need Is Love. E entre Lugo e Franco eu fico com nenhum deles”.

Estranho! Ela acumulou as minhas perguntas e respondeu no atacado, uma atrás da outra. Será que a mulher também memoriza? Primeiro ela transformou o meu diálogo em um monólogo de fracassado. Depois emenda tudo num único parágrafo só para mostrar que sabe das coisas. E então ela finaliza: “Já que aqueles vagabundos estão demorando, por que você não me fala do Rogério Ceni? Começou a carreira de goleiro no dia 25 de junho de 1993. E olha que nem são-paulina eu sou...” Dito isto me mostrou o tablet aberto no Google. E eu, de cabeça baixa, nada mais perguntei.


sexta-feira, 22 de junho de 2012

Conto - O outono me deixa outra vez

Fiz um brinde ao outono que se foi. Eu e o tempo, mais ninguém, tilintamos copos vazios numa sacada distante do ponto que podia ser visto a olho nu. Nem sol havia no meio da tarde horas antes da estação da nostalgia se ir.

E ela foi sem drama. Nem se queixou de ter que partir sozinha. Fez como quando veio: simplesmente apareceu. E delicadamente sumiu. Se choveu não foi por ela, embora no vácuo entre a sua despedida e o olá do inverno o céu tenha ficado sem nada, por instantes, enquanto a estação que me deixava era trocada por outra.

Também, de minha parte, houve o respeitoso consentimento. Claro, queria que ela ficasse. Mas me precavi para que tudo o que o meu silêncio dissesse fosse entendido como a aceitação sem angústia de um ciclo que se repete há anos, desde que nasci. E são tantas as velas apagadas...

Assumi faz tempo que ela vem e vai. Antes do conformismo havia revolta. Não vingava a consciência de que a presença dela no meu álbum de fotografias se limitasse as calçadas tomadas de folhas nas manhãs da meia estação.

Era quando eu abusava, moleque, do encanto que o outono carrega: cheiro, clima ameno, galhos desfolhados, frutas na quitanda, blusas leves e na imensidão, lá longe, o cenário que se mostrava de um dia de sol apagado. E se enxergava muito além da nitidez que a claridade permite.

Até no amor era assim. Mergulhava-se na alma da parceira e fazia-se promessa para o outro outono. Nunca o que se propunha era o mesmo do verão ou da primavera. E o inverno, por estar à espreita, chegando, jamais ganhava menção.

Ousei um dia perguntar a mim mesmo quantas promessas feitas foram cumpridas. Me encabulei ao contar que poucas aconteceram, embora muitas tenham sido tentadas. O balanço apresentou que aquelas, do moleque, de uma forma ou de outra chegaram aos seus desfechos. Mas as demais, do amante, quando exercitadas deixaram a desejar.

Talvez por isso o outono se vá assim, tão frio, nos dias de hoje. O vizinho varre o quintal, cujas folhas caídas escasseiam. Será que ele tem uma história para cada vassoura usada na limpeza das marcas da estação? Eu só tenho agora a desconfiança que devo reservar um agasalho. Não sei se vou sentir frio.


quinta-feira, 21 de junho de 2012

Crônica - Ai que inveja dos autores de agora

(tentativa de composição de música popular brasileira inspirada na nova cultura nacional)

Toc toc... toc toc toc toc...
Faz tchac tchac na chave 
e traim traim no giro pra destrava
Abra porta queu vo entra
Pof pof... pof pof pof pof...
Abana pó do sofá
Dá espaço e deixeu senta
Glub glub... vê água pro sal baixa
E vem loira
Tsiiii tsiii... crep crep... tchum...
Destampa cerveja preu toma
Tim tim... tim tim tim tim...
Num batos copos, gata
Pros vidros num rebenta
Trrrriiiimmmmm trrrriiiimmmmmm....
Faz caco pra todo luga
E liga o som, pra rebenta
Tchê tchê tchummmm... tchê tchê tchum...
Tchê tchê tchummmm... tchê tchê tcham...
Scabundum scabundunlundum...
Scabundum scabundunlundum...
Reptiiii reptiii reptiulum...
Tcham tchambalum...
Quero ocê assim
Zurubundonavum...
Quero morde seu oringundum...
Após beija o purungundum...
E entra de frente no seu mulungundum...
Fazendo assim, ô...
Fazendo assim:
Pelecotcha pelecotcha...
Pelecotchatchutchem...
Bem gostosim
Valapti valapti valapti... vrummmm...
E vai e volta... entra e sai...
Tchoq tchoq... valapti volupti...
Ai... ai... ai... ai...
Assim num guento
Vamo muda de jeito
Ai... ai... ai...

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Um conto meio besta - A vida é assim e assado

Objeto direto! Bastava apertar um botão e a coisa funcionava. Nem carecia regular volume, intensidade, contraste, altura ou qualquer outra coisa que exigia jeringonça de alavanca, tecla, manivela ou o escambau.
Péssimo na gramática ele realmente improvisou de acordo com o seu jeito. O objeto indireto, por exemplo, era o carro do irmão que ele tinha que negociar para pegar emprestado.

Além de devolver gasolina o acordo previa lavagem com limpeza interna. E não fumar, não carregar gente esquisita, não furar sinal vermelho, não levar multa, não estacionar em porta de bar suspeito, não ligar o som com o carro parado e assim vai. Um listão!

Nem sempre o pretérito era perfeito. Às vezes a negociação ficava no verbo. Aliás, na maioria das tentativas o projeto morria na garagem.

Objeto indireto! Foi assim também com a vizinha, uma moça jeitosa. Ela não chegava a uma Luiza Brunet. Mas estava muito além de uma Luiza Erundina. Pretérito imperfeito. A menina tinha olhos para outros candidatos. E assim desistiu ele de investir. Sem tentar regular volume, intensidade, contraste, brilho, altura ou o que valha.

Sujeito prático e objetivo. Ou vai ou racha! Nada de meio termo. Do tipo quem sai na chuva tem que se molhar. Decidido e rápido, quando comprou carro próprio teve que fazer o motor. Casou com uma ex-colega de trabalho de cor, altura, peso definidos: loira, um metro e setenta, setenta e nove quilos. Feia que doía. Partiu do princípio que jamais seria um corno. Três anos depois ela o deixou. Trocou ele por uma segurança do supermercado próximo.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Crônica - Manchetes às vezes escoram interesses

Leu com desdém a manchete do jornal: “PT faz aliança com Maluf; Erundina ameaça boicote”. Feito estátua na frente da banca de revistas, não reagiu como era de costume. Apenas se perguntou: “Quem é Maluf? O que é PT? Que importância tem essa tal de Erundina na ordem do dia?”

E nem teve valia a foto que ilustrava a manchete a escancarar três personagens e esclarecida com a legenda: “Lula cumprimenta Maluf na casa do ex-prefeito, que exigiu a presença do ex-presidente para anunciar o apoio a Haddad”. Novamente se perguntou: “Quem é Lula? O que significa Haddad?”

Jornais às vezes tem serventia. Num dia de chuva branda servem para proteger a cabeça. No passado embrulhavam raízes de mandioca que eram vendidas nas quitandas em casca. Hoje jornais servem eventualmente para embrulhar as sujeiras dos gatos e as porcarias dos cães. No chão as fezes incomodam. Podem ser pisadas por solas de calçados novos que emporcalham por onde se vai. Nos jornais as fezes são embrulhadas.

Imaginou-se eleitor. Nunca leitor. Mas sem ânimo e nenhuma vontade. Como se votar fosse obrigação. E concluiu que a escolha é difícil. Que um menos um é sempre igual a nada. Que políticos, partidos, jornais e outros interessados são iguais na soma e na subtração. E tanto faz. Então chova mais forte e os cabelos fiquem molhados. Jornal não serve para se esconder da chuva.


segunda-feira, 18 de junho de 2012

Crônica - Se é vilã, cuidado com autor global!

A batata é a grande vilã. Deu no jornal de tempos atrás. Bem que eu vi ela matreira, lá no fundo da panela, dura, em calda rala e recusando ponto. Foi tentar a garfada e ela saltou do prato. Resvalou na tigela de repolho, ricocheteou na quina da mesa e atingiu o chão com três quicadas até se esconder sob a geladeira, bem naquele lugar que nem com cabo de vassoura se puxa o que fica lá embaixo.

Bom que a janta virou diversão. “Esta danada subiu 44,17 por cento. Não abro mão dela. Cato e a como fazendo miúdos até ter certeza de que a alta da cesta básica valeu no estômago”. Tamanho pronunciamento em hora de comida só podia vir do chefe da casa, auxiliar de pedreiro nas horas vagas e desocupado durante o expediente.

E foi a farra! Um puxando o geladeirão para o lado, outro forçando para frente e o pezinho comprado na mercearia da esquina rachando e fazendo croc... “Ponha um tijolo senão a geladeira fica capenga. Deixa a batata. Quem sabe ela dá muda e a gente planta”.  Ai já era o caos.

E não se sabia se falavam sério ou era gozação. “Este é o feijão que subiu 11,84 por cento e ajudou a puxar a alta da cesta básica?” Era. Tanto que o grãozinho navegava na calda desbotada. O que ajudava no sabor era o alho comprado na promoção. Esse sim contribuiu com a refeição. Alguns dentes escaparam do amassador e ficaram inteiros na panela. Dava para sentir o gosto de longe.

“Fica todo mundo proibido de tentar espetar um feijão com o garfo. Corre o risco do bichinho escorregar e ir lá pra baixo da geladeira fazer companhia pra batata”. O duro é que ninguém ria. Sinal que a conversa era séria. “Se for lá pra baixo o almoço de amanhã está garantido...”

E alguém falou em crise? Deu lá no jornal, durante a refeição, que a água do tal  cachoeira respinga para todo lado. Camisa cheirando a suor, o agregado, aquele que vive da venda de CD pirata, já uniu a preguiça à falta de asseio: “Banho de cachoeira? Nem pensar. Pode fazer 40 graus que é fria...”

Tinha razão o fulano. Recentemente ele recebeu mensagem no celular avisando de um prêmio: setenta e cinco mil reais e um carro zero. Tinha um número de telefone para ele retornar e garantir o prêmio. Está é besta? O agregado não telefonou por desconfiar que era armação de algum cachoeira. E fez certo. Um conhecido ligou e três dias depois foi avisado do seqüestro de um filho que ele não tinha. O cara, além de solteiro, é estéril. 

Manjaram? É tudo arapuca nesta sala de jantar... E já tem autor de novela da Globo convencendo a batata a ser a vilã da próxima novela. Vilã hoje em dia dá muito Ibope. Eita povinho que gosta de ver gente sacana aprontando... E veio o gaguinho querendo fazer graça quando os pratos, a tigela e as panelas já estavam no seco e a batata continuava sob a geladeira: “Demóstenes que que que es es estamo mos cer cer cercados de Ca, cana, canalhas...” 

É mole? Que nada! É hilárico.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Miniconto - Travessura contida

Desatou o nó da gravata num puxão. Fosse camisa velha e lá se iam os botões. Cadarços e meias sociais foram desprezados num canto. E as calças de vinco ganharam o encosto da cadeira.

Se disfarçou de menino: bermudão, camiseta sem grife e um par de tênis manchado da poeira de tempos atrás fizeram as rugas encolherem. As franjas escoradas por gel desceram, livres da goma, sobre a testa.

Pensou fazer travessuras. Pular, gritar, xingar, cantar, assobiar, abusar, incomodar? Nenhuma coragem para ousar! Então montou um avião de papel e soltou pela janela do décimo quinto andar.

E se deu por satisfeito. Havia passado o tempo de correr atrás do brinquedo descendo escadas e atrapalhando o trânsito. Foi assistir tevê e esperar o amanhã para fechar os botões da camisa, acertar os laços dos cadarços, fazer o nó da gravata e engrossar os cabelos com gel. 

E as rugas voltaram.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Minicrônica - Tempo que vai

Forte neblina e sol envergonhado a vinte minutos da hora de ir. Só um raio de luz abre fresta e desembaça o salmão da parede do prédio a dezenove minutos da hora de chegar. Frio nem tanto faz se a pressa é tanta. Café se engole devagar mas não há tempo. Dezoito, dezessete, dezesseis, quinze e quatorze. Ponteiros desaforados correm quando deviam molejar. Escova nos cabelos e pasta nos dentes. Treze, doze, onze, dez e nove. Todo número ímpar é seguro. Nunca acredite nos pares. Relógios são traiçoeiros. Encurtam os minutos e eliminam os segundos. Oito, sete, seis e cinco. Fosse seguro correria. E para que? O agora é o instante que importa. O resto ficou para trás. Quatro, três, dois e um. Já é atraso. Então o melhor é ficar. Forte vergonha do sol escondido atrás da neblina. E nem se enxerga mais a cor do prédio salmão. Menos um, menos dois, menos três, menos quatro, menos cinco e assim vai. Como justificar o tempo que se perdeu?

   

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Crônica - Idade nova tem lá as suas rugas, mano

Cruel! Asinha de frango na panela tem duas serventias: come-se o que sobra da fervura e usa-se o resto para palitar os dentes. Metida numa calça de lycra verde que deixa à mostra os pneus que saltam da cintura, ela acabou de preparar a polenta. Sim, ela! Aquela mesma que além de dona de casa faz bico de passadeira de roupa de vez em quando. Culpa da camiseta comprada em loja de ponta de estoque. Depois da primeira lavada virou uma peça do avesso: as costuras do lado vieram para frente e para trás. A gola laceou tanto que dá para tirar os braços por cima.

Aliás. Cena interessante! Ultimamente ela deu de ler coluna social. Desde então ninguém mais da vizinhança faz aniversário: comemora idade nova! Lá no tempão atrás ela mesma se referia às amigas com ironia: “Ficou mais velha!” E fashion? Nem o defeitinho na fala, que faz o “shi” virar “si” quando a pronúncia é rápida, evita a mulher de repetir a palavra.

Antes ela dizia de alguém: “Fulana, como você está chic hoje!”. Agora, vejam: “Estás fashion, sicrana? Que que tá acontecendo? Alguém na parada?” Viram, só perguntas. É uma forma delicada de diálogo. Não se afirma, insinua-se com indagações.

Tarântula! Como é que pode uma leiturazinha diária mudar tanto uma pessoa? É cultura, né, diria aquele, o açougueiro que no passado fez curso de datilografia por correspondência e recebeu até diploma. Ironia do destino. Ele tanto queria, mas o único “qwerty” que tecla é o da máquina de somar, o mesmo que depois chamaram de calculadora e agora tem até no celular. Mas o dele só soma, nunca subtrai e nem divide. Por isso continua máquina de somar.

E cadê aquela mulher? Agora ela mudou! Tirou a lycra que descia até a panturrilha e meteu-se num bermudão tão apertado quanto. Os pneus ainda saltam do cós. E importa? Vale que ela leu numa nota que fulano ministra palestra. Aliás. Ministra? Será que isso é chic? Beltrano ministra uma apresentação! Chicano ministra uma fala!

Chic é ela. Tem até um computador ligado na internet em casa. E fez a consulta e soube que palestra não se ministra. Palestra é proferida. Proferir, que fashion! Será que está certo usar o fashion neste caso?
Dúvidas atrozes! Como é difícil estar com o palavreado em dia! Ela faz idade nova daqui a dois meses. 

Quanto mesmo? Quarenta e quantos? Bem vivida esta danada. Mas quando o assunto é captado de ouvidos ainda restam confusões. Deu no jornal da tevê que estudantes chineses tomam “sulina” para aprender mais.
Mentira! Confusão dela! Falaram do aminoácido. Ninguém se referiu a diabetes. Aminoácidos na veia. Que confusão deu na mulher só porque o apresentador falou rápido. É assim, mano! Água vai, água vem. 

Cachoeira pra lá, cachoeira pra cá. E na TV, quem? Neymar vendendo celular, esmalte, talco, pijama, desodorante e escova de cabelo! Aliás, dos grandes, que o cabelão ali exige! É chic...


terça-feira, 12 de junho de 2012

Miniconto - Vontade...

Bala perdida não passa de mão em mão. O menino sabe, mas ele a quer, não é gula. Aquela sobre a mesa em papel cor de prata assanha. Tanto aparenta ser doce, é capaz de silenciar o estômago e tirar secura da boca. Ele estende a mão, sorrateiro, e a pesca com o dedo. Ato suficiente para levar bronca e merecer castigo. 


Miniconto - Caminhada

Dói mais o calo da alma do que as tiras das sandálias salto quinze. Ela busca o tempo perdido. Aquele que deixou passar por amar quem a fez prisioneira da ilusão.

Promessas não-cumpridas, perguntas não respondidas... 

A mulher vai. Cambaleia na tontura da decepção. Mas vai. Ainda há tempo de chegar.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Miniconto - Padrão 300 caracteres máximo

Dura liberdade!

Fogo de palha! Anete jurou recomeçar. Com novo namorado, nova disposição no trabalho e outros projetos de vida. Casa ou apartamento? Dois ou três filhos? Azul ou verde? Quadrado ou redondo? Daí surgiram conflitos. Entre conciliar, substimar ou submeter preferiu recuar. Mora só, de aluguel. Nem pensa em herdeiros, adora cinza e ama metida num triângulo.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Conto - Ela de rasteira; ele de botinão

Lídia tem um metro e setenta e cinco quando se põe sobre os saltos do par de scarpins. É muito para Roberto! Ainda que trôpego em cima dos botinões de peão de rodeio, de saltos escandalosamente altos e inclinados para frente, ele chega a um metro e sessenta e quatro. Onze centímetros de diferença. Ela lá em cima, ele cá embaixo.

Antes a desproporção era reduzida por consenso. Nos tempos do namoro e do noivado ele evitava mocassim. Preferia sapatos sociais com saltos avantajados. Um par de calcanheiras contribuía e Roberto quase chegava lá.

Ela, coitada, até nos eventos mais sofisticados aparecia achatada nas rasteirinhas. No casamento permitiu-se o uso de uma meia altura, com salto quatro centímetros. Da porta da paróquia até o altar, onde o noivo a esperava, Lídia pareceu uma boneca vestida de branco, véu e grinalda, calçando sapatos que deram a impressão serem de plástico.

Estranho! Como é que se desce tanto quando a paixão é labareda! Sabe-se que o fogo abranda e quando resta somente a brasa em pouco tempo restará cinzas e tocos de carvão. Estes nem servem para outras fogueiras.

Lídia usou chinelos de dedo e tênis baixos na lua de mel. Escolha certa para o lugar onde passaram duas semanas: praia! Disseram alguns que aquilo era programa de gente que nunca viu o mar: banhista pisando banhista, bola de vôlei de praia batendo na lata de refrigerante e areia dentro dos ouvidos. Foi o espetáculo. À noite, restaurante de beira de mar onde o que vale tanto é vendido pelo triplo.

A paixão ainda era chama quando a vida recomeçou, agora a dois. Mas poucas dezenas de luas cheias haviam passado quando Lídia decidiu mudar de tamanho. De volta ao trabalho, tratou de se abastecer com calçados de salto. Isso à revelia, sem consultar o baixinho. Descontente, ele correu às lojas especializadas para comprar botas de cowboy.

Coisa esquisita! De saltões Roberto ficava com as nádegas empinadas. Andava desengonçado. Precisava se equilibrar sobre aquilo.

Foi quando se percebeu que o fogo do amor havia acabado. Quanto mais altos eram os botinões de Roberto, mais aumentava a altura de Lídia. Ela caminhava segura e charmosa sobre quinze centímetros. Morena clara de cabelos negros e lisos, alta, magra, sensual e irresistível, a mulher era a diferença explicíta de Roberto. Ele andava e batia os bicos das botas nas saliências das calçadas.

Sorte que durou pouco. O casal fechou pacto e o acordado foi cumprido à risca. Ele continuou participando das celebrações religiosas dominicais da instituição da esquina. Ela renovou a fé em outro templo. Nunca mais foram ao mercado juntos para as compras semanais. Ele vai ao trabalho de ônibus. Ela pega carona com um o vizinho de média estatura.

E no almoço de segunda à sexta cada um que se vire. Ela freqüenta um restaurante nobre em companhia de um amigo de um metro e oitenta. Ele vai à lanchonete para comer salgado e conversar com a balconista, uma charmosa senhora que tem lá os seus um metro e sessenta.