segunda-feira, 4 de junho de 2012

Conto - Ela de rasteira; ele de botinão

Lídia tem um metro e setenta e cinco quando se põe sobre os saltos do par de scarpins. É muito para Roberto! Ainda que trôpego em cima dos botinões de peão de rodeio, de saltos escandalosamente altos e inclinados para frente, ele chega a um metro e sessenta e quatro. Onze centímetros de diferença. Ela lá em cima, ele cá embaixo.

Antes a desproporção era reduzida por consenso. Nos tempos do namoro e do noivado ele evitava mocassim. Preferia sapatos sociais com saltos avantajados. Um par de calcanheiras contribuía e Roberto quase chegava lá.

Ela, coitada, até nos eventos mais sofisticados aparecia achatada nas rasteirinhas. No casamento permitiu-se o uso de uma meia altura, com salto quatro centímetros. Da porta da paróquia até o altar, onde o noivo a esperava, Lídia pareceu uma boneca vestida de branco, véu e grinalda, calçando sapatos que deram a impressão serem de plástico.

Estranho! Como é que se desce tanto quando a paixão é labareda! Sabe-se que o fogo abranda e quando resta somente a brasa em pouco tempo restará cinzas e tocos de carvão. Estes nem servem para outras fogueiras.

Lídia usou chinelos de dedo e tênis baixos na lua de mel. Escolha certa para o lugar onde passaram duas semanas: praia! Disseram alguns que aquilo era programa de gente que nunca viu o mar: banhista pisando banhista, bola de vôlei de praia batendo na lata de refrigerante e areia dentro dos ouvidos. Foi o espetáculo. À noite, restaurante de beira de mar onde o que vale tanto é vendido pelo triplo.

A paixão ainda era chama quando a vida recomeçou, agora a dois. Mas poucas dezenas de luas cheias haviam passado quando Lídia decidiu mudar de tamanho. De volta ao trabalho, tratou de se abastecer com calçados de salto. Isso à revelia, sem consultar o baixinho. Descontente, ele correu às lojas especializadas para comprar botas de cowboy.

Coisa esquisita! De saltões Roberto ficava com as nádegas empinadas. Andava desengonçado. Precisava se equilibrar sobre aquilo.

Foi quando se percebeu que o fogo do amor havia acabado. Quanto mais altos eram os botinões de Roberto, mais aumentava a altura de Lídia. Ela caminhava segura e charmosa sobre quinze centímetros. Morena clara de cabelos negros e lisos, alta, magra, sensual e irresistível, a mulher era a diferença explicíta de Roberto. Ele andava e batia os bicos das botas nas saliências das calçadas.

Sorte que durou pouco. O casal fechou pacto e o acordado foi cumprido à risca. Ele continuou participando das celebrações religiosas dominicais da instituição da esquina. Ela renovou a fé em outro templo. Nunca mais foram ao mercado juntos para as compras semanais. Ele vai ao trabalho de ônibus. Ela pega carona com um o vizinho de média estatura.

E no almoço de segunda à sexta cada um que se vire. Ela freqüenta um restaurante nobre em companhia de um amigo de um metro e oitenta. Ele vai à lanchonete para comer salgado e conversar com a balconista, uma charmosa senhora que tem lá os seus um metro e sessenta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: