quinta-feira, 29 de março de 2012

Dominante e dominado na prova do concurso

Classe dominante e classe dominada! Faz tempo não ouvíamos e nem líamos nada sobre isso. É bom lembrar, no entanto, que esse termo foi muito usado no Brasil do período militar. E a gente, quando remetido para aqueles anos, recupera na memória a cara rechonchuda do então ministro Delfin Neto. No mundo a classe dominante nos remete aos debates de outrora sobre o marxismo, que a chamava de burguesia no sistema capitalista. Enfim, era a classe social que controlava o processo econômico e político.

Controlava? Na verdade nunca perdeu o controle, apenas assumiu novas denominações usando dos mesmo artifícios: a exploração econômica, política e cultural, o que inclui o trabalho, a oportunidade de renda, o acesso ao ensino de qualidade, o lazer, a possibilidade de vida social, a saúde e tudo o que faz parte do cotidiano do povinho.

Recente concurso realizado pela Fundação de Apoio à Educação, Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Funtef-Pr) para a Prefeitura de Cambé mostra claramente que a classe dominante está firme e forte e como no passado ainda hoje age descaradamente contra a classe dominada.

Na prova para as vagas de gari cerca de meia dúzia de questões relacionadas à conhecimentos gerais reflete este embate. Uma pergunta é sobre o nome de uma atriz de novela da Globo. Outra é sobre frase que caracteriza uma personagem de humor de programa da Globo. Uma questão chama o recém-falecido jogador de futebol Sócrates de libertário. E assim vai, invocando dupla sertaneja que aparece frequentemente no Domingão do Faustão ou o nome da música que consagrou um tal de Michel Teló, que nem fazemos questão de conferir se escrevemos o nome correto porque não faz diferença.

Cultura geral é isso, para a equipe que elaborou estas perguntas. E não se pode exigir mais conhecimento que isso para um candidato a vaga de gari porque o risco é desse trabalhador, sendo aprovado ou não, adquirir cultura de verdade após estudar para o concurso. Cultura, enfim, é um direito adquirido da classe dominante. A classe dominada não pode saber mais do que as fococas e as vulgaridades.

E vejam a que ponto chegamos! Somos obrigados a tratar a cultura com subdivisões: cultura de verdade. Isso significa que pode haver cultura de mentira. E não estamos falando de contra cultura. Estamos nos referindo a este empreendedorismo vergonhoso de ser contra a cultura para as pessoas que não tem acesso a ela.
Isso se faz assim mesmo. Tratando quem não tem recursos para assistir a um bom espetáculo de teatro ou música como pessoas burras e dando a ela mais incentivo para assistir o BBB do Pedro Bial e pagar caro para se espremer no Parque Ney Braga enquanto um meia boca canta no recinto de shows.

E porque Sócrates foi libertário? O jogador, que também era médico, lutou pelos profissionais do futebol. Por isso foi respeitado como atleta e como líder. Libertário é um termo jocoso e provocativo. Sócrates não foi libertário. Ele foi um líder.

Nunca, na verdade, tivemos a ilusão de que esta guerra fria da classe dominante contra a classe dominada tivesse chegado ao fim. Mas em determinados momentos caímos na ilusão e aceitamos passivamente que os patrões chamassem os empregados de parceiros ou colaboradores. Também engolimos durante toda a nossa vida, como se aquilo fosse doce e degustável, aquele gasto discurso: o trabalho enobrece. Concordamos! Mas quem é que é o enobrecido?

Em governos mais recentes, depois do milagre brasileiro de Delfin e dos militares, Collor de Melo implantou o neoliberalismo caipira e perverso. Henrique Cardoso inventou outro neoliberalismo e além da privatização desvairada criou o voluntário para consertar escolas e unidades de saúde. Também incentivou seus partidários a criarem leis para esconder os informais atrás de programas que empobrecem os formalizados que passam a ser microempreendores individuais. Lula criou a república assistencialista e calou os banqueiros e os grandes grupos econômicos com legislações contemplativas. Dilma dá sequência.

Então... se soubermos o que a Globo difunde, segundo as questões daquela prova, temos cultura. Yes! Nóis sabe das coisas!

segunda-feira, 26 de março de 2012

Crônica - Nenhuma das opções é interessante

Tenho dúvidas da idade mental desta menina de quase trinta e rosto de criança. Na verdade ela sempre se apresenta como alguém de quinze. Ou menos. Nem os atributos físicos dão maioridade a ela. O bumbum se ajeita saliente e durinho numa calça apertada, mas o que ela diz derruba o atrativo. E aquilo se transforma numa pelanca.

Os decotes mostram partes dos seios de vez em quando e se olham para o que aparece até quando ela se mantém quieta. Ao abrir a boca a menina esconde aquilo que chama a atenção sem se dar ao trabalho de reduzir o campo visual. E daí ela pode por tudo a mostra. Nada será notado.

Estranho isso. Ponho-me a perguntar: é o rosto excessivamente jovem que abate o desejo? Se assim fosse, jamais os homens se gabariam de terem mulheres de quarenta e poucos com corpinhos de balzaquianas mesmo que moldados em academias, dietas rigorosas e cirurgiões plásticos.

E eu mesmo corrijo a rota. Sempre concluo que o problema está na cabeça. Imagino, assim, meio que para subsidiar uma espécie de conformismo: uma mulher de cinqüenta com corpinho de quarenta e idéias avassaladoras e centradas cai muito bem. O perfil seria de alguém que fala porque sabe o que falar. Manjaram?

De um jeito simplista, seria a mulher que não joga conversa fora. Jamais ela teria a característica de uma Amélia, encostada na parede e esperando o destino dar um jeito nas rugas, nos cabelos desalinhados, nas pelancas dos braços e da barriga. Ela seria a outra, inteligente e sutil a ponto de usar sua sensibilidade como arma poderosa apesar de estar alguns quilinhos acima.

Visualizem! Estamos falando de alguns quilinhos a mais, porque até nos cuidados com o seu aspecto físico a mulher inteligente é criteriosa: não se mata de malhar e nem passa fome; não acredita em milagre cirúrgicos que esticam os olhos até as orelhas. Elas são naturais em tudo. Auto suficientes e seguras, controlam situações e dominam. Quando acometidas de alguma dose de maldade, são capazes de fazer com uma única ordem os caras limparem suas sandálias.

Estou mentindo? Tem muito marmanjo que posa de autoridade e faz isso cotidianamente. E de tão acostumados a se submeter já nem percebem quando cedem até o extremo. Você! Você mesmo, barbado! Já passou aquele monte de roupa que a sua mulher pediu para alisar durante a sua folga semanal? Aposto que não só cumpriu a ordem. Até já guardou todas as peças no armário e bem do jeito que ela recomenda.

Feito isso, ela foi ao salão de beleza mandar o cabeleireiro fazer escova. E você aproveita a ausência dela em casa e trate de varrer a calçada. Aquilo está um lixo só. Vai lá machão e se apresse. Ela vai voltar com as unhas feitas e quem é que vai abrir o portão da caragem com toda aquela porcaria emperrando a roldana? Você!

Assim eu provo. Aquela mulher de trinta com cara de menina de quinze e cabeça de adolescente de doze? Deixa ela conversar com outras crianças na internet. Aliás, a cinquentona que eu tenho lá em casa eu penso que a manipulo, mas ela se sai com aquele sorriso de ironia e me deixa lavando os pratos. 

quinta-feira, 22 de março de 2012

Opinião - A vida se faz vencendo desafios

Cá estamos diante de mais um rio para ser atravessado a braçadas. Sabemos nadar, mas duvidamos ter fôlego. A margem oposta parece distante. Um palestrista de auto estima inventaria estória. Sim, estória, porque ele faz da ficção a sua ferramenta de trabalho para levantar platéias com palavras de ordem. E se descobre que o fulano está na pindaíba. Pior: que o fulano não consegue caminhar dez metros por estar arcado com o peso de problemas pessoais que não consegue resolver.

Valorizado por empresas que querem fazer de conta, estes profissionais – ou não? – cobram cachês consideráveis para falar bobagens. E há colaborador que acredita. Perceberam? Colaborador! É outro termo usado para tapear desavisados. Escravo, de repente, é chamado de colaborador...

Voltemos ao tema base. O termo estória nem faz parte da norma culta da língua portuguesa. Mas foi usado no passado para clarear definições: estória é continho de fada; história é fato. Assim diziam os professores dos bons tempos do curso primário.

Certa vez participei de um evento de auto estima como funcionário de uma empresa de comunicação. Numa tarde de sábado vestimos uma camiseta com a foto do patrão na frente e a frase: “Viva o patrão!”

E o palestrista foi hilárico. Começou dizendo que mergulhou na piscina e lá embaixo abriu os olhos. Enxergou a borda lá distante e se determinou: vou chegar sem ter que ir a tona para respirar. E deu braçadas vigorosas até atingir o outro lado. Para falar essa baboseira ele levou da empresa em que eu trabalhava pelo menos cinco mil pratas, além de viagem, estadia e refeições pagas. Assim até eu nadaria de uma borda a outra sem respirar. E de quebra usando somente um braço, porque a outra mão estararia segurando acima da água um cigarro aceso.

O cotidiano é de surpresas. Às vezes nos planejamos após refazer as contas meia dúzia de vezes e algo nos pega no solado do pé, como uma alavanca que nos joga lá longe. E a necessidade de replanejar exige apenas um respiro para colocar o cérebro no lugar. Nenhum palestrista de auto estima estará ao seu lado para sugerir que caia na água e alcance a outra borda sem respirar. Afinal de contas a gente atravessa fogueiras pisando em brasa quase que diariamente.

Claro, acontecimentos adversos nos colocam no chão. Causa revolta, cria dúvidas, gera questionamentos. Do tipo: “Por que?” E é justamente este estado consequente que nos dá força para levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Assim empreendemos esforços contínuos. Lutamos e vamos colhendo pequenas vitórias, às vezes diante de desacertos gritantes. Nunca se conformar, eis a receita. Sentar encostado na parede e esperar por milagre divino é rebaixar-se ao desânimo. O certo é dialogar, inclusive com o seu santo devoto, o que significa consigo mesmo. A reflexão faz bem.

E assim vamos tocando em frente. Todas as cenas que protagonizamos são lições. E entre um livro de auto estima e a vontade nossa de ir prefira esta segunda. É o caminho, tenha absoluta certeza.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Crônicas - Pequenas coisas em textos pequenos

Sonho de almoço

Deu a volta no mundo num sonho de poucos minutos após o apressado almoço no refeitório da empresa. Discursou pela igualdade dos gêneros numa assembléia da ONU. Cobrou o Estado com um pronunciamento corajoso e pediu dele o cumprimento daquilo que é direito do cidadão contribuinte. Denunciou publicamente o não-cumprimento do Código de Defesa do Consumidor. E deu-se ao direito de passear pelos arredores da Torre Eiffel que até agora ela só conhece nas fotografias das revistas. Acordou aliviada por estar em seu cantinho, no trabalho, para defender com ética e postura o seu salário que dá condições para pagar as contas. E acordada sonhou com novas possibilidades de discursos e passeios. A vida é bem assim e assim se vive bem.

Sapatos e bolsa

O par de sandálias de noventa e nove reais não é de couro. Mas combina com a bolsa de trezentos e oito e nove que dizem ser de couro. As sandálias imitam aquele que custa quinhentos e noventa e nove. A bolsa se parece com aquela outra que pode ser comprada por apenas sessenta e nove. Tirando o preço, quem repararia nas outras diferenças? A vendedora cumpre o seu papel e declama uma fala decorada e sem consistência: a mais cara dura mais. E mostra uma costura para falar do acabamento de primeira. A compradora não se ilude e consigo mesma conclui: levo por cento e quarenta e oito um par de sandálias e uma bolsa que vão durar o tempo suficiente para evitar enjôos com peças de modelos ultrapassados. E assim se vive bem porque a vida é bem assim.

Sorvete de colher

Uma colher de plástico e um pote de sorvete tamanho família. É a janta do pedinte e duvida-se que ele tenha recebido aquela refeição de um boa ação. Imagino que o andarilho ajuntou suas moedinhas e pode comprar a guloseima que alguns diriam: é exagero, ele devia ter comprado bons quilos de pães. Mas nunca ninguém perguntou ao mendigo há quanto tempo ele se via privado do sorvete. E qual era o tamanho da vontade que ele tinha de saborear um sorvete. Isso porque somos analistas fatídicos e não damos ao analisado o direito de colocar os pés acima do chão. Somos a vida e a razão. E a razão nem sempre é a vida.

Cintos e carteiras

Ele vende cintos e carteiras de qualidade duvidável. É o seu ganha pão. Na sua atividade nunca teve que enganar um comprador. O que ele comercializa está exposto no varal ambulante que carrega de um lado a outro, dias e dias seguidos, até que alguém necessitado de um cinto para segurar as calças ou de uma carteira para guardar os seus trocados se interesse pelo que ele vende. Um domingo, hora do almoço, sol batendo castigador no corpo, eu via o rosto do vendedor atravessando uma rua de um bairro nobre. E ele chorava. Culpa das vendas fracas e da comida rala na mesa da família. A vida não devia ser assim. Mas assim é a vida para muitos lutadores anônimos que atravessam ruas e derramam lágrimas.

terça-feira, 20 de março de 2012

Pequenas crônicas - Lua, noite, tempo e amor

Noite sem luz

Girei com o dedo o disco que a lua forma no céu. Ela rodou furta cor, mas destacou o dourado e o prata que, ofuscantes, levantaram faíscas sem estalos. Silenciosas, iluminaram silhuetas de caras e corpos perdidos de amor. Cena pesada para quem está só e brinca com a lua para rodar a uma velocidade tão intensa que ela parece parada lá em cima, sem claridade para eu ver o rosto de quem preciso.

Distância

Os pontos cardeais enganam, sei muito bem disso. Você diz que vai ao norte e vejo você no oeste. Promete me esperar no sul e escapa pelo leste. Nossos extremos estão em conflito, não amenize. Se digo que vou para cima e faço o caminho contrário você percebe e escolhe a trilha que leva até a outra ponta. É muita distância. Sem chance de conciliar eu vou cada vez mais longe do lugar onde você está.

Desacertos

Fiz um plano para nós dois. Segunda eu fico e você vai. Terça eu vou e você fica. Na quarta ficamos juntos: você na sala e eu na varanda. Quinta é dia de reconsiderar: você vai de carro e eu vou a pé. Sexta, digamos, é prenúncio de um sábado sem nada para conversar. Por isso continuamos calados contando as horas que faltam para passar a tempestade que trará um domingo de silêncio e rancores. Se assim for a segunda abrirá um novo ciclo. Eu indo e você ficando, você ficando e eu indo. Sempre na quietude de quem nada tem a falar.

Pétalas caídas

Bem me quer, mal me quer. Arranquei muitas pétalas e nunca acertei no que quero. Bem me quer parece impossível. Mal me quer é o aviso: ou troco de flor ou esqueço que você existe.

Última briga

Pousou joaninha na minha camisa e me encheu de esperança. Fiz as contas das roupas que eu tenho e deu que eu preciso mesmo de um presente. Já se passaram dias e outras joaninhas me visitaram. Só você se faz ausente e eu uso a camisa velha. De lembrança ela tem um leve rasgão no bolso, marca registrada do derradeiro encontro.

Variação de um tema-1

Fui rei e fiz de vocês meus súditos. Me falha a memória quando perguntam se fui justo. Se não pequei é provável que em alguns momentos eu tenha me omitido. Como qualquer governante usei a prioridade para justificar meus atos. E assim substimei aquilo que não era urgente para mim. Esqueci das emergências alheias.

Variação de um tema-2

Esperem, que eu estou subindo. Difícil reconhecê-los assim, de costas. Quando lá de cima eu os encarei identifiquei apenas indivíduos. Agora, cá embaixo, enxergo os semblantes de cada um. É porque vigora em mim um novo jeito de olhar.

Sua benção!

Senhora Mãe! Obrigado pela Sua Presença em minha vida e de toda a minha família e amigos. Peço o seu olhar materno para a minha esposa, meus filhos, minha nora e meus netos. 

segunda-feira, 19 de março de 2012

Pequenas crônicas para chamar o outono

 Para despertar

Dias e noites iguais, eis o que me dizem do equinócio. Não sei se vou dormir mais ou menos, apenas tenho certeza que pretendo despertar para tantas necessidades que eu as deixo adormecidas enquanto planejo e não ajo. O outono quase bate na janela do meu quarto. Já o sinto no friozinho da manhã. Lembro que eu preciso ir em busca do que me impede de ficar esperando.

Carpinteiro

O que faz José da vida? Ele dá forma à madeira bruta para transformá-la em uma poesia que fala da vida num livro aberto em qualquer página sobre uma escrivaninha de tábuas. José, carpinteiro, produziu a peça de madeira que abriga a humanidade em verso e prosa. José, desde anos atrás, talhou o mundo com suas ferramentas.

Seja mulher

Maria, lava a louça ligeiro que ainda tem almoço pra ser feito. Maria, passa o uniforme das crianças que de roupa amassada elas não vão estudar. Maria, faz isso e aquilo porque depois tem mais trezentas tarefas para terminar em um dia. Maria, tira a poeira do sofá que assim sujo nem dá gosto sentar pra descansar. Maria, esquece todas as ordenas e vá lá no quarto se arrumar. Maria, dê um tempo pra você se olhar no espelho e fazer cara bonita. Maria, deixa de ser dona de casa e vira mulher porque só assim os teus vão te valorizar. Maria, cuida de você mesma e verás: quanto mais mulher você for mais os homens vão cuidar de você.

Assim seja

Usou um pedaço de jornal para montar uma pipa daquelas sem varetas. O cabresto ficou no ponto e evitou piruetas. O rabo foi feito com tiras que sobraram. Foi um vento forte e o menino nem precisou esforço para empinar o brinquedo. Subiu e levou as notícias para o ar. A manchete falava da leveza que é correr batendo no rosto um vento quase gelado do começo do outono. 

Todas as estações

O verão anunciou que está indo. Mas disse com muita convicção que volta depois do outono que o substitui e chama o inverno para esperar na fila. E quando entrar a primavera ele estará de novo pertinho daquele lugar no quintal onde o sol das diferentes estações se apresenta diariamente. Perturbador no calor, mas oportuno na meia estação e bem-vindo no frio.

Recomeço

A vida começava aos seis quando a escola era novidade. Depois a vida começou mais tarde quando a adolescência ensinou novas travessuras. Também começou aos dezoito por causa da maioridade. E assim aos trinta, aos quarenta, aos cinqüenta e me vejo ainda esperando a vida começar de novo, aos cinqüenta e cinco, cinqüenta e seis, cinqüenta e sete, sessenta, setenta e enquanto houver lucidez. Ela nunca acaba, sempre começa de um jeito melhor.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Textinhos - Bem curtas mas muito duradouras

Estrela sapeca

Tem uma estrela no rumo da minha janela da sala. É uma estrela tímida. Às vezes ela se esconde atrás de nuvens. Outras vezes ela se põe miúda e sem brilho. Eu tenho a impressão que ela é perversa comigo. Um dia ela se mostra e me assanha. Outro dia ela desaparece e me espia. E ela sabe que todas as noite eu a procuro.

Maracujá doce

Fiz de um jeito para a planta se escorar na madeira da cerca. Ela cresceu rápido seguindo a minha sugestão. Subiu e tomou um rumo que lhe desse sol, esparramando-se sobre a cerca. Deu flores e ofertou frutas. A mais bonita delas vingou na rama que invadiu o quintal vizinho e me deixou na mão.

Movimento contínuo

A criança balança no balanço que vai e vem, sobe e desce num ritmo compassado e não se sabe se é o balanço que balança a criança ou se é a criança que faz o balanço balançar. Suponho que há uma aliança, quase trama, da criança e do balanço que faz o movimento ser contínuo e sem esforço: vai e vem, vem e vai, sobe desce, desce e sobe, a criança balança no balanço e o balanço faz a criança balançar.

Aniversário

Fez de conta que esqueceu a data do seu próprio aniversário. Todos os procedimentos foram dentro da normalidade, desde o despertar. Saiu de casa ao trabalho sem receber parabéns. Lá despachou, providenciou, encaminhou, protocolou e esvaziou a escrivaninha como qualquer outro dia. Almoçou sozinho um salgado com refrigerante e de novo, no escritório, deu conta dos afazeres. Saiu do trabalho para casa sem nenhum cumprimento. De volta ao lar não foi surpreendido com alguma festa. Dormiu no sofá, televisão ligada, e num sonho chorou lágrimas de solidão.

Nenhuma mensagem

Um olá seria bem-vindo. E como! Para isso existe a caixa de entrada e seria esta a sua mais nobre finalidade. No entanto ela se enche de anúncios de computador, aparelho de TV, liquidificador, barbeador, livros e fórmula mágica para emagrecer. A mensagem que eu espero não chega. Prefiro acreditar que a culpa é da tecnologia e imagino: bem que ela tentou enviar muito mais do que o olá! Mas essas coisas virtuais vão para o descaminho e não me chega aquilo que eu tanto espero.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Poucas palavras - Sobre intenções e pretensões

Caminhos

Pode ser uma bola de papel ou uma pedra. Para onde for chutada ela vai. E segue-se longe seguindo-a. Chutando e seguindo, seguindo e chutando, até onde surgir a placa de aqui é o lugar. Os pés apenas chutam, a pedra ou a bola de papel obedecem. Quem faz a rota é a sua vontade de ir para algum lugar.

Em círculo

Dobrou a esquina e esperou a chegada da outra esquina, que mostrou outras e tantas mais. Foram passadas dadas e o retorno ao mesmo lugar. Se nada de novo colheu nestas voltas também não houve motivo para lastimar. Encontrou rostos conhecidos com expressões variadas.

O tempo

Caiu chuva de manga e eu bebi água do céu. Não saciei a minha vontade da fruta doce. Mas provei o gosto suave da natureza absorvida em gotas geladas sob um calor de verão.

Relógio de corda

Disseram que não, mas eu tenho certeza. Quem faz o tic do relógio é o ponteiro grande que depois prossegue fazendo o tac. Tic tac, tic tac, tic tac. Ritmado e sem canseira. E de tão certeiro provoca sono e fecha pálpebras, de forma que o barulho seja ouvido cada vez mais longe.

O ambulante

A matraca do vendedor de biju é música quando acorda as lombrigas. Batida com destreza e rapidez avisa que o crocante está no ponto e o vendedor se aproxima. Menos nos cochilos de domingo após o almoço, quando o som da matraca vira batucada sem ritmo e é apenas barulho.

Talvez...

Lá vem o carteiro e não se sabe o que ele traz. Apressa o passo, menino, chega depressa, entrega aquilo que eu espero e leva que eu sorri quando abri o envelope e li o que continha no papel. Somente duas palavras e uma exclamação: “Quem sabe!” A simples possibilidade me contentou.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Textinhos - De coisas bobas mas essenciais

Declaração ilegível

Eu não sei escrever palavras bonitas porque minhas letras são garranchos. Bem que eu queria e faço esforço. Mas fica na frase que rascunho coisas que eu duvido que você entenda. E assim assumo que nem nas declarações de amor eu sou legível.

Hora da tortura

Fechei a torneira e eliminei o fio grosso de água batendo barulhento na pia. Restaram os pingos por culpa do desgaste da peça que faz a vedação. Eles são teimosos e pontuais. Pingam e estalam no tempo certo. Compõem de início uma música lamurienta. Depois incomodam e torturam enquanto eu, passivo, escuto e observo sem ter reação.

Medo e teimosia

Este é o seu número, ligo ou não ligo? Por que deveria ligar se já ouço o que tem a me dizer? E qual benefício eu teria ao ouvir de novo o que você sempre me diz? Ausências, acusações, culpas e defesas são assuntos que não cabem no pequeno aparelho celular que desligo para me livrar da tentação de telefonar só para você falar verdades que eu não posso assumir.

Ponta do dedo

Escreveram de manhãzinha na janela o nome de alguém. Ficou legível enquanto a umidade do orvalho persistiu. Depois, nas primeiras batidas do sol, virou borrão e se apagou deixando no vidro apenas manchas confundidas com sujeira. Melhor assim. Aliás, eu tenho dúvidas se grafei o seu nome certo.

Ninguém manda

O cão é o dono da loira ou a loira é a dona do cão. Não se sabe e nada se afirma. Ele late, ela reclama. Ela grita com ele e ele retruca com a parada no pé da árvore para marcar terreno com urina. Ela puxa ele para seguir em frente. Ele puxa ela para voltar à moita de mato do terreno baldio. E se conclui que ninguém manda em ninguém. Eles se entendem apesar das freqüentes contrariedades durante o passeio de fim de tarde. 

terça-feira, 13 de março de 2012

Curtíssimas - Da vida e de outras passagens

Amor desfeito

Água é pra lavar canseira, menina. Tem que ser fria, quase gelada, no ponto do arrepio. Deixa ela cair feito fio grosso na cabeça. Dá um choque e esparrama. Chega nas costas que nem sente, parece quentura mais leve que o morno. É massagem. Tem mais jeito de carícia correndo o corpo, limpando a dor, varrendo a preguiça pra dentro do ralo que vai pra longe. E leva com ela a tristeza que a espuma do sabão esconde no meio do líquido transparente.

A Lua é cheia

É minguante quando esconde na parte escura os sonhos dos apaixonados. Assume-se nova para disfarçar a idade dos que amam. E se apresenta crescente expondo as fantasias dos sedutores em doses que aumentam até ela ficar cheia.

Folhas murchas

Caíram duas. Vieram em seguida outras. E muito mais no piso desbotado do quintal. Dias e noites, semanas de varrição. Outono sem folhas murchas é verão camuflado de primavera sem flores.

Café da hora

Sai fumaça da xícara e assanha. Sobe até as narinas e enfeitiça. Cheiro bom, líquido quente, sabor estimulante e mais um gole, até restar no fundo apenas o círculo escuro do café que a vasilha deixou sobrar.

Sol ou chuva

Basta o suor para molhar o rosto e o sol será bem-vindo. Assim se eu chorar as lágrimas se misturam e ninguém dirá que eu choro. Como também é acolhida a chuva se o tempo virar e eu rir de uma graça que é minha. Assim pensarão que os traços que parecem sorridentes são caretas para evitar os pingos nos olhos.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Crônica - Rua é rampa que se sobe sem sombra

A blusa é estampada, a saia é preta, a bolsa é lilás, os chinelos são verdes e o sol queima igual fogo a pele clara. É uma senhora subindo a rua que parece uma rampa sem vegetação. Tem lá os seus 60 anos, salvo se a aparência engana e ela tem menos. Ou mais, quem é que sabe?

Nada é perfeito nestes caminhos. Cabelos grisalhos emolduram o rosto. Presos atrás feito um rabinho, mostram destrato. E quem é que liga para a aparência de uma velhinha subindo uma rampa que é a rua sem árvores?

Nunca os homens públicos de agora e de antes ligaram para isso. Árvores para refrescar a senhorinha, por que faríamos isso? Nem os doutores convenceram alguém quando disseram que a planta faz o gás letal virar oxigênio. Sim, dito assim de um jeito simples e incompleto, sem o uso de palavrões técnicos, já foi motivo de ironia. Imaginem se ouviriam um relato científico?

Disseram alguns que viram a mulher subindo que nem ela, provavelmente, saberia responder sobre a importância da árvore. Ela apenas diria que faz sombra durante a subida. Então cá alguém se perguntou se esta não seria a resposta ideal. Mas ficou nisso, este fulano preferiu ficar em silêncio.

Árvores servem para os passarinhos ficarem jogando fezes sobre os humanos que sobem ou descem. Chegaram a dizer isso e foi justo o dono de um carro zero, revoltado com os borrões na lataria. Ele, quando sobe, no máximo precisa mexer no câmbio. Isso se o automóvel não for automático. E calor? Para que serve, afinal, o ar-condicionado automotivo? Para subir e descer com as janelas de vidros escurecidos fechadas. Claro.

Mas logo a senhorinha chegará lá em cima. Faltam alguns passos, pouquíssimos para quem está acostumado a andar a pé. Devia carregar uma sombrinha pelo menos. Assim ela venceria a distância protegida. Bolsa de um lado, sacolas na outra mão e uma sombrinha. O peso compensa o conforto. E o suor do rosto enxuga-se numa paradinha no meio do caminho. E outra: ninguém vai reparar que ela transpira.

É apenas uma senhora de cerca de 60 anos. Se tiver mais aparenta menos idade. Se tiver menos envelheceu com rapidez. Será que ela ainda vota nas eleições? Se sim, imagina se a senhorinha vai lembrar na campanha eleitoral que fulano plantou tantas árvores? Este fulano pode ser um fazendeiro daqueles que erradicou o café, montou pastagem e agora planta cana-de-açúcar. E ele mesmo não quer árvore porque os passarinhos enchem de meleca a sua cabine dupla. Ninguém tem coragem de dizer que os pássaros estão nas poucas plantas urbanas porque transformaram os seus locais de origem em desertos.

Pois é. Nada é perfeito e a gente vai, subindo ruas que são rampas sem vegetação e votando em quem não enfrenta subida. 

sexta-feira, 9 de março de 2012

Opinião - Insisto! 8 de março é um dia de luta!

Vejo na programação do mês da mulher de Cambé uma palestra com um tema que me causa arrepios: “A importância da mulher no lar”. O que é isso? Algo para deixar o marido sempre bem alimentado e gordinho? Receita para deixar a casa limpa e aromatizada de segunda à segunda aproveitando os horários de folga do trabalho e das atenções com os outros afazeres domésticos? Ou um truque para lavar e passar a roupa entre o preparo do almoço e a compra no supermercado?

Peco por não ter ido à palestra, no dia 8 de março em um centro municipal de educação infantil, apesar das perguntas que me vieram à cabeça. Mas se pequei nisso tenho o direito de pelo menos manifestar que o título, além de arrepiar, provoca indignação.

Também por não ter ido ao evento desconheço que tipo de público esteve presente. Reconheço que estas ausências não me credenciam a ser crítico, mas torço que a exposição tenha tido enfoque diferente daqueles que me vieram à cabeça. Ainda assim, se me fosse dada a possibilidade de opinar, eu diria que ficaria melhor um título assim: “A importância da mulher na família”. Isso daria mais amplitude ao tema e o leque permitiria inclusive a interação da família na comunidade e, consequentemente, da comunidade com o conjunto da sociedade nas questões políticas, culturais, sociais e econômicas.

Preocupa-me a equivocada interpretação que as autoridades, principalmente, tem do Dia Internacional da Mulher, 8 de março. É uma data promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para redefinir pautas, avaliar conquistas e pontuar itens que afligem as mulheres e, por tabela, toda a humanidade. Porque as mulheres já são maioria na População Economicamente Ativa (PEA), são no Brasil mais da metade dos brasileiros que votam nas eleições, são comandantes de órgãos públicos federais importantes e assumem postos elevados na iniciativa privada.

Ainda assim há muitas desigualdades, sobretudo no chão da fábrica. A própria cota obrigatória dos partidos de candidatas mulheres é questionada, pois muitas delas apenas vão para a disputa de cargos públicos para cumprir uma lei. Então, nem nas sociedades mais avançadas o Dia Internacional da Mulher é uma data para ser comemorada. E os órgãos públicos, alguns comandados por mulheres, anunciam a programação como uma comemoração.

Equívoco ou proposital? Assim eu quase concluo que o tema da palestra que mencionei acima foi levado ao pé da letra. Ou seja, além de participar da renda familiar, cuidar das crianças, fazer compras, cozinha, lavar louça, passar roupa e limpar a casa, a mulher tem que ser uma excelente dona de casa.

Lembro que a instituição e promulgação do Dia Internacional da Mulher teve entre as motivações o incêndio numa indústria têxtil que empregava cerca de 600 operários, a maioria mulheres de 13 a 23 anos que cumpriam jornada de trabalho extensa. Cerca de 120 delas perderam a vida no acidente.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Crônica - Todas as mulheres são mulheres

Te conheci ainda no teu ventre, se lembro daquele tempo não sei, mas sinto que ali já sofri a sua influência que me fez um homem determinado. Te vi mocinha ainda, cabelos negros e lisos nas costas e um baton escondido numa gaveta para ser usado só de vez em quando. Até quando você partiu e eu me senti órfão dos seus braços que me apertavam, do socorro que me acalmava nas suas intervenções a meu favor, do seu arroz com feijão, da sua compreensão, do seu amor por mim.

Te conheci ainda menino, você menina, cabelos curtos, saia desbotada e chinelos de dedo na rua onde eu morei e você chegou. Desprezei seus olhos negros, nem sei o que me deu, mas acho que te considerei moleca sem nada para acender paixão e dar faísca ao amor. Até quando eu mudei e você ficou, e um dia eu vi você formada, moça, cabelos feitos, sobrancelhas aparadas, ao lado de alguém que levou o seu coração.

Te conheci ainda adolescente besta, louco por cenas de pornografia em revistas de páginas amassadas, ao brincar de homem numa rua escura e medonha de um lugar que antes nem de dia eu fui capaz de percorrer. Destratada, mas soberba, vi que você leu o meu medo e se ofereceu a fazer sexo por um preço justo e num lugar seguro, de um jeito que eu me sentisse bem. Até quando você se foi para não sei aonde, levando a virgindade que tirou de mim e aumentando a minha confiança em ti por ter me ensinado a amar nos instantes dos quartos alugados para uso rápido.

Te conheci ainda jovem sonhador, carreira a ser feita, estudo para continuar e sem nada de material que me garantisse vida após o fim do dinheiro do salário no bar da esquina, em pastéis engordurados e garrafas de cerveja. Percebi que você queria deixar de ser moça para ser mulher, depois virar mãe e se tornar parceira, até as rugas assumirem o peso de ser avó. Até aqui estamos no caminho, às vezes você recupera a jovialidade, outras vezes se torna ranzinza, mas prefiro você mulher batalhadora no seu serviço, como se o tempo nunca passasse.

Te conheci nos acasos e foram em eventos quase casuais, em momentos diferentes, circunstâncias inesperadas e necessidades diversas. Você sempre mulher. Eu homem e nada mais que isso. Até quando der.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Conto - O dia de uma mulher não é de festa

Estranho manter uma relação assim. Aliás, estranho ter que se conformar com tal situação. Porque ela é imposta e a gente é impedida de usar a voz. E faz-se o silêncio mesmo que a indignação cutuque. Causa um estado muito pior do que ter que engolir, pois a questão não está apenas nos verbos, sujeitos e substantivos que deixamos de usar. Está no conteúdo do que tínhamos a dizer.

Acordei bem cedo hoje. Fiz café antes mesmo do banho, pois o marido e os filhos não perdoam. Se houver atraso a culpa é da mulher. Às vezes até o pão e a manteiga são responsabilidades dela. Custa para alguns homens e muitas crianças e adolescentes abrirem a geladeira para pegar o pote disso ou daquilo. E o pão, se estiver amanhecido, é por culpa da mulher que o comprou na tarde anterior e não soube guardá-lo adequadamente. O certo seria ela acordar mais cedo ainda e ir buscar pão novo na padaria a cinco quadras de casa.

O meu banho foi rápido. Ele demorou três vezes mais sob o chuveiro. Eu me contentei com o resto de tempo que sobrava para ter o direito a uma carona até o meu local de trabalho. Sai correndo, com os cabelos molhados.

No trajeto passei o baton e ele se irritou. Queixou-se do trânsito pesado e reclamou que o meu movimento para me ajeitar com a aparência atrapalhava a visão. Fui quase com a metade da boca pintada e a outra metade desbotada. Branca e sem brilho. Eu mesma me perguntei se uma boca que não diz nada para se contrapor aos desaforinhos do cotidiano precisa ter cor e brilho. Beijos? Rola, no máximo, o selinho rápido, frio e obrigatório na hora da despedida.

Cá estou no meu serviço. Com a impressão que de um ambiente a outro troquei seis por meia dúzia. Uma pilha de relatórios me aguarda num canto da escrivaninha. O colega do lado nem chefe é, mas faz de conta que manda em tudo. A colega da frente presta contas de suas atividades relacionando tudo: até o que ela nunca colocou a mão só ficou pronto por iniciativa dela. Senão...

Vou engolir um lanche rápido no almoço. O marido deve comer num restaurante com os amigos. Para as crianças deixei bilhetinhos colados na porta da geladeira. Feijão e arroz apenas para aquecer, salada cortada para temperar a gosto e carne. Se preferirem, aqueçam o de ontem, sobraram uns bons pedaços. Mas com uma frigideira dá para passar rapidinho o bife fresco que deixei fora do congelador.

Imagino que isso vai dar em insinuações. Os meninos vão dizer aos coleguinhas que preferem um lanche pronto do que comida requentada. E o maridão vai me ver com olhos acusadores, do tipo, nem com a alimentação dos filhos você se preocupa. Está certo, ele não diz nada, mas acusa com o jeito de encarar. O certo seria que ele, com a posse do carro da família cuja prestação eu ajudo a pagar, me proporcionasse condições de preparar o almoço em casa todos os dias.

Colocaram um aviso lá no corredor. A empresa vai bancar um coquetel para comemorar o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, aproveitando que no setor de vendas as mulheres deram um banho nos homens. Todas atingiram a meta. Que bom!

Vou participar para não gerar questionamentos. O que, afinal, eu tenho para comemorar? E também porque, pelo que eu saiba, o 8 de março é um dia de luta. Alguém, com certeza, vai nos dizer que conquistamos a igualdade e estamos lá. Onde é que isso fica mesmo? Qual é o lá a que se referem? Eu pergunto a mim somente. Penso que não adiantar repartir esta minha tese com outras, pois festa é pão com direito a circo. Reflexão dá trabalho. Muito. E luta, nem eu consigo travar a minha. Por isso me calo.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Conto - Sentimentos nunca são extremos

Dá um nó esquisito que não se sabe onde. Se no peito ou na garganta, pois tem horas que sufoca. É um aperto moderado. Como se alguém segurasse o pescoço e pressionasse suavemente, porque se dá conta que a respiração fica mais difícil aos pouco. É sensação que não vem de repente. Começa latejando o coração e pensa-se que o problema está ali. Ilusão, porém, pensar que um médico resolva.

É uma agonia que martela. Não, sem extremismo. Agonia é o fim próximo, o declínio, a morte. Seria provavelmente uma angústia, o que se desconhece é a causa dela torturar tanto assim. Talvez uma pontada de solidão, essa coisa estranha de a gente mesmo querer ficar isolada à espera de uma alma que preencha o vácuo que se abre.

Às vezes vai muito mais. Uma enorme cratera que nos cerca. Parada eu me vejo sem saída. Pular é a única opção. Ou ficar até o pesadelo acabar. As duas possibilidades causam dor, sei muito bem disso. Já experimentei fugir de todos os jeitos e cá estou. Qualquer traçado é um círculo e volta-se ao mesmo lugar.

Então decido gritar. E junto com o grito eu choro. Se choro o nó se desfaz, devagar, e a respiração volta. A mão que me aperta o pescoço se afasta e agora é só um afago. O coração bate e a cratera se fecha.

Já tenho o norte, o sul, o leste e o oeste. Refaço trajetos, priorizo metas e ensaio novas arrancadas que me trarão mais angústia. É a vida. Eu, mulher, sei muito bem como vencer meus fantasmas. Vou gritar e chorar para derrubar minhas aflições. 

quinta-feira, 1 de março de 2012

Crônica - Barcos são feitos de rascunhos

Fiz um barco de papel e escrevi no casco: agora eu vou. Ainda me falta um rio largo e de águas mansas, suficiente para ir. O mar causa arrepios. Minha embarcação é precária, construi com folhas de um caderno cujas notas traçadas com um lápis quase se apagaram. Faz tanto tempo que usei a matéria-prima para rascunhar poemas que nunca chegaram ao fim. Quando acertei na métrica me faltaram as rimas. E foi que achei as duas coisas justo no momento em que findou a inspiração.

Procurei na gaveta do armário um pouco de criatividade. Nada que encontrei tinha uma embalagem avisando que aquilo continha talento. Nem sei de que jeito ela vem, se é pó ou pomada, líquido ou spray, precisa ferver ou se toma frio. Ignoro se causa um impacto e as letras, assim por diante, correm livres e ligeiras pelas linhas. Queria muito encher páginas dizendo coisa com coisa. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis e vinte, vinte e um, quanto mais. Completas, em letras miúdas e pontuação conferida. Exclamação quando couber, interrogação se preciso, vírgulas nos lugares exigidos e reticências. Muitas reticências permitidas em frase compostas especialmente para serem fechadas com elas.

Experimentei temas variados. Abusei do amor, sou confesso. A leitura do que grafei ficou sem ritmo, longe pensar em uma declamação. Fucei as entranhas do abstrato e causei desastres. Saíram declarações pontuais e pareceram vulgares, batidas e enfadonhas. Decidi aperfeiçoar o concreto e o resultado foram afirmações cotidianas sobre aquilo que é trivial. Por isso a prosa que propus deu em textos descritivos de tamanho, cor, formato, abrangência, localização, espessura e peso.

Foi assim que eu virei um construtor de barcos. Conheço modelos diferentes, sei fazer as dobras sem causas rupturas nos cascos. A chuva já demora, mas ela vem a qualquer hora dessas. Sou paciente e espero. Quando a água descer vou junto, nos meus barcos, e levo neles poemas que tentei escrever e que viraram rascunhos, perfeita matéria-prima para construir embarcações. Agora eu vou. Para algum lugar onde haja permissão para rabiscar sem rima e sem métrica o sonho da viagem para onde se quer ir. As águas é que vão me levar e não terei rascunho para voltar. Que venha a chuva, porque agora eu vou.