segunda-feira, 5 de março de 2012

Conto - O dia de uma mulher não é de festa

Estranho manter uma relação assim. Aliás, estranho ter que se conformar com tal situação. Porque ela é imposta e a gente é impedida de usar a voz. E faz-se o silêncio mesmo que a indignação cutuque. Causa um estado muito pior do que ter que engolir, pois a questão não está apenas nos verbos, sujeitos e substantivos que deixamos de usar. Está no conteúdo do que tínhamos a dizer.

Acordei bem cedo hoje. Fiz café antes mesmo do banho, pois o marido e os filhos não perdoam. Se houver atraso a culpa é da mulher. Às vezes até o pão e a manteiga são responsabilidades dela. Custa para alguns homens e muitas crianças e adolescentes abrirem a geladeira para pegar o pote disso ou daquilo. E o pão, se estiver amanhecido, é por culpa da mulher que o comprou na tarde anterior e não soube guardá-lo adequadamente. O certo seria ela acordar mais cedo ainda e ir buscar pão novo na padaria a cinco quadras de casa.

O meu banho foi rápido. Ele demorou três vezes mais sob o chuveiro. Eu me contentei com o resto de tempo que sobrava para ter o direito a uma carona até o meu local de trabalho. Sai correndo, com os cabelos molhados.

No trajeto passei o baton e ele se irritou. Queixou-se do trânsito pesado e reclamou que o meu movimento para me ajeitar com a aparência atrapalhava a visão. Fui quase com a metade da boca pintada e a outra metade desbotada. Branca e sem brilho. Eu mesma me perguntei se uma boca que não diz nada para se contrapor aos desaforinhos do cotidiano precisa ter cor e brilho. Beijos? Rola, no máximo, o selinho rápido, frio e obrigatório na hora da despedida.

Cá estou no meu serviço. Com a impressão que de um ambiente a outro troquei seis por meia dúzia. Uma pilha de relatórios me aguarda num canto da escrivaninha. O colega do lado nem chefe é, mas faz de conta que manda em tudo. A colega da frente presta contas de suas atividades relacionando tudo: até o que ela nunca colocou a mão só ficou pronto por iniciativa dela. Senão...

Vou engolir um lanche rápido no almoço. O marido deve comer num restaurante com os amigos. Para as crianças deixei bilhetinhos colados na porta da geladeira. Feijão e arroz apenas para aquecer, salada cortada para temperar a gosto e carne. Se preferirem, aqueçam o de ontem, sobraram uns bons pedaços. Mas com uma frigideira dá para passar rapidinho o bife fresco que deixei fora do congelador.

Imagino que isso vai dar em insinuações. Os meninos vão dizer aos coleguinhas que preferem um lanche pronto do que comida requentada. E o maridão vai me ver com olhos acusadores, do tipo, nem com a alimentação dos filhos você se preocupa. Está certo, ele não diz nada, mas acusa com o jeito de encarar. O certo seria que ele, com a posse do carro da família cuja prestação eu ajudo a pagar, me proporcionasse condições de preparar o almoço em casa todos os dias.

Colocaram um aviso lá no corredor. A empresa vai bancar um coquetel para comemorar o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, aproveitando que no setor de vendas as mulheres deram um banho nos homens. Todas atingiram a meta. Que bom!

Vou participar para não gerar questionamentos. O que, afinal, eu tenho para comemorar? E também porque, pelo que eu saiba, o 8 de março é um dia de luta. Alguém, com certeza, vai nos dizer que conquistamos a igualdade e estamos lá. Onde é que isso fica mesmo? Qual é o lá a que se referem? Eu pergunto a mim somente. Penso que não adiantar repartir esta minha tese com outras, pois festa é pão com direito a circo. Reflexão dá trabalho. Muito. E luta, nem eu consigo travar a minha. Por isso me calo.

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