quarta-feira, 21 de março de 2012

Crônicas - Pequenas coisas em textos pequenos

Sonho de almoço

Deu a volta no mundo num sonho de poucos minutos após o apressado almoço no refeitório da empresa. Discursou pela igualdade dos gêneros numa assembléia da ONU. Cobrou o Estado com um pronunciamento corajoso e pediu dele o cumprimento daquilo que é direito do cidadão contribuinte. Denunciou publicamente o não-cumprimento do Código de Defesa do Consumidor. E deu-se ao direito de passear pelos arredores da Torre Eiffel que até agora ela só conhece nas fotografias das revistas. Acordou aliviada por estar em seu cantinho, no trabalho, para defender com ética e postura o seu salário que dá condições para pagar as contas. E acordada sonhou com novas possibilidades de discursos e passeios. A vida é bem assim e assim se vive bem.

Sapatos e bolsa

O par de sandálias de noventa e nove reais não é de couro. Mas combina com a bolsa de trezentos e oito e nove que dizem ser de couro. As sandálias imitam aquele que custa quinhentos e noventa e nove. A bolsa se parece com aquela outra que pode ser comprada por apenas sessenta e nove. Tirando o preço, quem repararia nas outras diferenças? A vendedora cumpre o seu papel e declama uma fala decorada e sem consistência: a mais cara dura mais. E mostra uma costura para falar do acabamento de primeira. A compradora não se ilude e consigo mesma conclui: levo por cento e quarenta e oito um par de sandálias e uma bolsa que vão durar o tempo suficiente para evitar enjôos com peças de modelos ultrapassados. E assim se vive bem porque a vida é bem assim.

Sorvete de colher

Uma colher de plástico e um pote de sorvete tamanho família. É a janta do pedinte e duvida-se que ele tenha recebido aquela refeição de um boa ação. Imagino que o andarilho ajuntou suas moedinhas e pode comprar a guloseima que alguns diriam: é exagero, ele devia ter comprado bons quilos de pães. Mas nunca ninguém perguntou ao mendigo há quanto tempo ele se via privado do sorvete. E qual era o tamanho da vontade que ele tinha de saborear um sorvete. Isso porque somos analistas fatídicos e não damos ao analisado o direito de colocar os pés acima do chão. Somos a vida e a razão. E a razão nem sempre é a vida.

Cintos e carteiras

Ele vende cintos e carteiras de qualidade duvidável. É o seu ganha pão. Na sua atividade nunca teve que enganar um comprador. O que ele comercializa está exposto no varal ambulante que carrega de um lado a outro, dias e dias seguidos, até que alguém necessitado de um cinto para segurar as calças ou de uma carteira para guardar os seus trocados se interesse pelo que ele vende. Um domingo, hora do almoço, sol batendo castigador no corpo, eu via o rosto do vendedor atravessando uma rua de um bairro nobre. E ele chorava. Culpa das vendas fracas e da comida rala na mesa da família. A vida não devia ser assim. Mas assim é a vida para muitos lutadores anônimos que atravessam ruas e derramam lágrimas.

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