terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Conto - Uma mensagem direta e nada mais

Dá um calafrio quando você passa. É na verdade uma espécie de vertigem. Ou outra coisa qualquer entre bom e melhor ainda. Eu me contenho, mas juro: soltasse a mim mesmo e daria num louco. De paixão.

Nem eu sei como seria. Forma um redemoinho e isso é nada racional. Eu me confundo e muito. A irracionalidade é rasgar o peito e mostrar a alma, coisa que mesmo no extremo do sentimento de amor amedronta.

Falar bobagem, por exemplo, é risco. Dizer coisa com coisa é sanidade que elimina o estado de levitação e se cai de um jeito estranho, esborrachando o coração num piso frio de cor sem vida.

Manter-se quieto é pior que desdizer. Cria-se ima impressão de vazio. Isso de ficar oco é próprio de quem não carrega mensagem. E se não há conteúdo pouca chance resta de existir substância. Chega-se, enfim, ao ponto de truncar o comunicado: jamais você saberá se eu sinto e o que eu sinto.

Ser gratuito, grande preocupação. Falar e falar, expondo mais do que se deve. Colocar-se nu fragiliza, pois expõe fraquezas. Os defeitos podem em seguida ser relacionados por grau e gênero, de acordo com o que é mais forte: egoísmo, vaidade, hipocrisia, tiques, manias e até os defeitos da arcada dentária entram na lista.

Sem perdão e não há pedido de desculpas que seja o bastante. O primeiro contato é uma triagem. E nem sempre os pontos positivos empatam com o que é mau. Este último tende a ultrapassar. Pontua com esbanjo e impiedoso derruba castelos. Leva na queda toda e qualquer pretensão.

Sou franco. Desconheço estratégias. Espero você chegar e tento do jeito que der. Esqueço planejamento, ignoro horário e lugar. Onde vier e quando, de um jeito possível, nunca ideal, vou tentar apenas dizer: “Você é linda!”

Para mim é o bastante. Entenda como quiser e seja o que for.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Conto - Os saltos do andar de cima enganam

Os saltos do andar de cima têm pressa. Pisam ligeiros de um lado a outro, vão e voltam, dão paradinhas que atiçam a imaginação: por que e onde os pés sobre os saltos se acomodam? Seria diante de um espelho para melhorar a maquiagem?

Difícil concluir. As coisas ficam pendentes e surgem mais. Estaria a dona dos pés vestindo um modelo social? Ou surpreenderia esportiva com o jeans fazendo um meio termo à parte de cima um tanto clássica, de forma que os sapatos ou as sandálias coubessem para o resto do que ela usa?

Mais dúvidas. Nada pontuado, tudo em aberto. Sapatos ou sandálias? Como ficariam as unhas pintadas de vermelho prensadas dentro de um modelo fechado? E as pontas, com que agudez elas conseguiriam ferir?
E os saltos, lá em cima, fazem toc toc. Aliás, há bom tempo. Já se percebeu de um pavimento abaixo alguém cutucando o teto para pedir um basta. Provavelmente aquela que prefira rasteiras de solado emborrachado e não curta como a pessoa dos saltos os preparativos para uma noitada.

Claro, são quase duas da manhã. Ela não está chegando. Ela vai sair. Toc toc toc toc e pára. É suposto que o andar seja do guarda roupa até o banheiro, do banheiro para a gaveta da mesinha de cabeceira, dali para o balcão onde as embalagens dos perfumes estão enfileiradas. Escapa pela janela a fragrância adocicada. O que seria? Para qual ocasião serviria aquele aroma?

Toc toc toc toc. Os saltos vão. Torturam as moradoras de baixo. E os marmanjos se sugerem, maldosos. Será que a mulher de cima já está totalmente vestida? Seria uma loira ou uma morena de cabelos alisados? E sonham com mulatas charmosas calçadas nos pés mas descalças no resto, provando cor, corte, caída, ocasião, oportunidade e expectativas sobre peças íntimas coladas ao corpo cheiroso.

Os pés agora vão mais longe. Ganham possivelmente a saída do apartamento pois ouve-se em breve o clique da chave e o estalo da porta. Os pés levam os saltos para o elevador e há quem encontre explicação para uma descida.

Aquele de dois pavimentos abaixo diz à mulher que esqueceu o celular dentro do carro, na garagem. O do imediatamente superior justifica à esposa que escutou barulho de alarme igual ao do carro que acabou de comprar. O aposentado lá de baixo não disse nada, pois é sozinho, e chegou à entrada do prédio pela escada. Muito antes do elevador.

Parecia uma assembléia do condomínio, mas só de moradores homens. Cada um se justificando ao vizinho o que fazia ali no saguão àquela hora da madrugada. Até que os pés dos saltos chegaram e o corpo que os sustentavam encheu o ambiente de perfume. 

Era o morador do décimo segundo, um meia idade representante comercial. De sapatos altos, peruca e um modelo até os joelhos, com um cavado profundo nas costas. Justo, sobre meias finas escuras. Ninguém reparou se eram sapatos ou sandálias, peruca loira ou morena. E as unhas não eram vermelhas. Estavam pintadas de verde forte.   

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Conto - Uma relação apenas poética e musical

Você passa e eu acho graça... Tudo a ver com a voz de Clara Nunes interpretando Ataulfo Alves e Carlos Imperial. Magnificamente. Safra boa, gente de talento. É música para tomar emprestada. Fazer de conta que a gente é quem canta. Pudera vencer os desafinos...

Certa vez fizemos isso. Afinamos na alma. Acertamos o tom no improviso aproveitando outras afinidades. Deu certo por um bom tempo. Formamos uma dupla de todos os instantes: na troca de idéias, na cama, no prato feito do restaurante popular.

Nada para ser arrependido, tudo para concretar uma relação que ia de bem para melhor. Nem os exageros eram condenáveis. As críticas rebatiam como elogios. Bronquinhas eram manifestações ciumentas. Não havia nada a ser reprovado em um ou outro. Você passa e eu acho graça! Eu passo e você acha graça!

Eram frases carinhosas, feitas declarações. Mexiam, aumentavam o calor e a vontade de mais. Mais longe, mais intenso, mais carinho, mais demorado, mais e mais sempre. Com a certeza de que o esgotamento é impossível. Nunca será de outro jeito, nunca caminharemos distantes, nunca outra história, nunca e nunca mais.

Que pena! Você passa e eu acho graça! Eu passo e você acha graça! Agora em outra versão, às vezes irônica, outras desaforada. Mais e mais, nunca e nunca, sempre e sempre! Palavras extraídas da alma agora parecem expressões tolas jogadas da boca para fora.

Você passa e eu acho graça das promessas que fiz e das juras que você me fez. Eu passo e você acha graça não sei do que. Provável que seja daquilo que prometi e não cumpri. Se houver ainda um pouco de afinidade haverá também complacência sua e assumirá que a sua graça quando eu passo é também por aquilo que me jurou e deixou em aberto.

Fomos inocentes e agora somos culpados. Ou fomos culpados e agora somos inocentes. Tanto faz. Aqui a ordem dos fatores não altera o produto que somos. Que pena! Você passa e eu percebo que estou ficando só. Escuto Clara e admiro Ataulfo e Imperial. Eu passo e você permite que eu vá.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Opinião - Os dois sonhos da menina Grazielly

Era tanta a vontade da menina Grazielly ver o mar que parecia sonho. Algo cuja possibilidade é de nunca acontecer e continuar sonho. Sempre, na constante variação da cor da água, de verde para azul, azul para verde. E as ondas, quando gigantes, medonhas. Mas em sonhos elas são inofensivas e acariciam e conduzem, não levam embora para longe.

Os pais tanto falavam desse mar, que também era o sonho deles, que a menina Grazielly sonhava cada dia mais. Ver o mar. Pegar nele. Tê-lo diante dos olhos e não só nas imagens da tevê ou nas ilustrações das revistas.

Ter o sonho tocáveis, nas palmas das mãos, possível. Quem é que não sonha com isso? A menina Grazielly sonhava. E tanto valeram os sacrifícios dos pais, a auxiliar de panificação Cirleide e o caminhoneiro Gilson, que a menina Grazielly pode ir à praia no feriado de carnaval. Com a mãe, o pai e o sonho da família de pegar um pedacinho do mar na areia, na água, nas conchas e no sol do mar, que é diferente de qualquer outro sol.

Lá nasceu uma manhã bela, de céu azul. De longe a menina Grazielly viu a água do mar, em sua imensidão. Às vezes verde, outras azul que lá no horizonte se confundia com o céu. E a menina Grazielly não deu chance para os pais, cansados de uma viagem de um lugar onde não há mar para outro onde o mar existe. Pediu para ir a praia.

A água acariciou a menina de três anos. Brincou com ela molhando os cabelos dourados. Arrancou gritos de alegria da menina Grazielly e amoleceu o coração da mãe, Cirleide, que chorou ao testemunhar a alegria da filha.

E foi tanta euforia de sentir o mar no corpo. De ter certeza que o mar existe. De engolir a água salgada do mar. De perceber o corpo empurrado para a areia pelas pequenas ondas que na menina Grazielly pareciam grandes, de bater na cintura, estalar nas costas e quando de frente para elas obrigar a fechar os olhos para evitar que o choro da elegria fosse lavado pelo mar.

Minutos que parecem uma eternidade. Ou que duraram tão pouco tamanho era o prazer de viver o mar que a menina Grazielly havia acabado de conhecer. A menina que também sonhava ser bailarina só teve um sonho realizado. E foi tão pouco para o tamanho do sonho que ela tinha.

Mal a menina saiu da água e um monstro a levou para sempre. O monstro que não era o adolescente de 14 anos que perdeu o controle de um Jet Ski. Mas os monstros que são os responsável em permitir que um menino conduza um veículo perigoso. O monstro que descuida na fiscalização de quem pode pilotar uma máquina que, na água, é mortífera nas mãos de um adolescente.

A menina foi atingida pelo Jet Ski desgovernado que invadiu a praia. Um Jet Ski que não era conduzido por um monstro. Mas que funcionou nas mãos de um menino de 14 anos porque monstros o autorizaram a ser, infelizmente, o causador de uma tragédia. 

A menina Grazielly viu o mar, sentiu-o de leve por algum tempo. Como disse a mãe, aos prantos: “O outro (sonho) era ser bailarina, mas esse ela não vai poder realizar”. Grazielly morreu perto de seu sonho.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Conto - Pierrô, colombinas e tantos carnavais

Nem pierrô e nem colombina. Somos comuns mascarados nos salões carnavalescos que nunca chegam à quarta-feira de cinzas. A nossa fantasia é o vestuário do cotidiano. Camisas e blusas amassadas nas poltronas empoeiradas dos coletivos evitam a nudez dos nossos peitos. 

Abaixo, nada de tapa-sexo. Os jeans apertam nas cinturas, as barras se soltam e varrem o chão. E a mancha de suor nas costas denuncia uma espécie de folia estranha: com ritmo descompassado e sem enredo e nem samba. Somos apenas figurantes no carnaval da vida, este que nos empurra para os compromissos inadiáveis que são apenas itens da agenda pela sobrevivência.

Eu nunca te vi de colombina e jamais estive de pierrô. É provável que já tenhamos nos imaginados disfarçados de outras coisas. Pessoas que pretendem outros capítulos, por exemplo, que em nenhum ponto se pareçam com os que vivemos. 

Vultos que tentam fugir do passado fantasiando o presente. Sombras furtivas escapando pelas beiradas das portas em busca da suficiente luminosidade. Pois sem ela as sombras desaparecem e a realidade nos pega de impacto, massacrando, cobrando, condenando, censurando e nos envergonhando por nos darmos ao direito de desviar da linha reta e tirar os pés do chão.

Estranho, porque ainda assim você é colombina e eu sou pierrô. Nesse carnaval da nossa imaginação sempre estivemos nos mesmo bailes e cantamos as mesmas marchinhas. É possível que tenhamos provado da mesma bebida. Por algum momento, aproveitando a penumbra, é capaz dos holofotes terem iluminado os nossos olhos escondidos atrás das incomodas máscaras que nunca tiramos por receio de acordar com o rosto cansado de pensar miragens.

Admitamos: foi mais um carnaval sem cinzas. Outros virão nessa rotina de possibilidades que fazemos questão de manter estática, de forma que a evolução seja sempre um projeto inacabado. Como poderemos continuar sonhando sem permitirmos que as coisas aconteçam? Então é assim. A folia que terminou agora recomeça daqui a pouco. E em breve termos novas marchinhas e outros goles. Eu pierrô e você colombina, personagens que sempre quisemos e nunca fomos.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Conto - Nem o mar foi parceiro na dor do mijão

Escreveu o nome dela na areia. Mas o fez de um jeito desaforado e fora do peculiar, fruto de um estado de revolta. Mal grafada e incompleta por falta de urina, ficou mais ou menos assim: angelic

Sem a letra “a” e nenhum ponto. Omitido o maiúsculo e nada de floreios. Nome incompleto e torto cuja justificativa foi a pressa, de forma a evitar que alguém o flagrasse durante a escrita inusitada.

Bastaram dez minutos e a palavra ser apagou por culpa do sol. Nem evidência sobrou. Claro que restou o alívio da necessidade feita e o desafogo da alma por ter cometido, segundo a sua cabeça, um ato de desconsideração.

Ninguém leu o nome de Angélica mijado na areia a uns 10 metros do mar. Naqueles dez minutos que a letra resistiu ao calor por uma única vez alguém correu até o local atrás de uma bola perdida. Mas era tanta pressa de voltar ao jogo que a pessoa nem percebeu que a redonda havia danificado a letra “g”, bem lá em cima e no pé, de um jeito que ela ficou parecendo um “y” arredondado.

A intenção era escrever ANGÉLICA INGRATA, tudo em caixa alta, mas ele mesmo assumiu que era pouca cerveja para duas palavras relativamente grandes. E mesmo que houvesse carga na caneta a acentuação ficaria prejudicada. Como dar uma parada na escrita para voltar ao “é” de Angélica? Difícil.

Tanto que ele pouco se importou da palavra sair incompleta e evaporar depressa. E a pessoa que deveria ler a mensagem nem por ali estava. Angélica há dois dias desfrutava os prazeres da praia com um novo namorado que nem tanta cerveja bebia. Era mais chegado a uma vida saudável e preferia suco natural. Politicamente correto, imaginava-se desse novo par que ele jamais urinaria na areia para escrever desaforos.

E o abandonado, minutos depois, nem se tocou que estava com vontade de mijar. Dentro da água tentou se aliviar e nem o mar aceitou sujar o seu líquido com sentimento tão pesado. Ele teve que sair e correr para o mato mais próximo onde não foi possível. Um casal fazia sexo por ali. Sem nada a perder soltou-se no meio da multidão e retornou ao mar. Conformado com a sua situação de infeliz no amor.  

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Crônica - Só os poetas escrevem os poemas

O que tenho é poesia. Desconheço rima e ignoro métrica. Por isso estou léguas de ser poeta. Alguém disse que poesia não é forma. Por ser apenas sentimento ela não depende de escrita. Poesia é o que encanta e comove. Ou o que machuca e faz sofrer.

Está na árvore ali adiante. Encontro-a na solidão aqui presente. Busco-a nas coisas miúdas quando a pretensão é transformar detalhezinhos em colossos. Ou o contrário: fazer do gigante um anão. O poema é a forma que se dá a isso num pedaço de papel. Um guardanapo serve. Na forma moderna usam a tela de um monitor. Tanto faz. O que vale é o resultado.

Mas eu queria ser poeta. Ah, como queria. Trabalhar metáforas e abusar do sentido figurado para dizer em três linhas aquilo que exigiria na prosa uma folha inteira. Colocar a alma na vitrina com poucas palavras como os gênios do haicai escrevem a vida num instante. Rabiscar cordéis feito os grandes mestres que narram extensos epsódios como se estivessem conversando numa esquina.

Eu tento, porém, chegar mais perto que posso. Porque eu sei virar o meu coração do avesso. Quando preciso, faço isso. E a precisão nem sempre é a rota matemática de um traçado. Pode ser apenas sinônimo de necessidade. Eu quero, no entanto, mais. Pretendo que o meu preciso seja a mistura de tudo: sentimento e certeza, carência e resposta e a reprodução exata e na devida proporção, num desenho rápido, da maçã que derrubou Eva. É forma e conteúdo. Só não sei como faço as rimas e a métrica não dá som.

Faço uma prosa e a única sequencia lógica do meu escrito é o que o cérebro permite escrever, mandando sinais para os dedos que digitam, os olhos que conferem, a mente que conclui: que texto ruim!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Conto - A ida é o sonho do medo de voltar só

O dia é cinza, o sol cansou de clarear. Nem é calor, veste uma blusa, pode cair chuva de manga ou pode durar tempo preciso pra natureza chorar.

Vê se caminha rente à estrada, cuidado com pedras, pisa devagar, ergue o corpo, anda reto pra coluna não arcar.

Leva um pão, há de querer fome tapear, se ela bater, aproveita que ainda é fresca, é de ontem, a massa é boa, dá pra enganar.

Decore a mensagem que mando, do jeito que deve ser dito, capricha nos detalhes, inventa um pouco mais, acerta nas datas, horas e lugar.

Não deixe nada de fora, repita se for melhor, clareia dúvidas, insista, volte se tiver certeza que o recado ficou bem lá.

Confira se convém dar conta, sonda com cuidado se é bom, do que ocorre por aqui nestes dias que se passam desde a ida dela para lá.

Se for melhor diga nada, retorna, faz caminho de volta, nem olha para trás, saia manso sem nada demonstrar.

Cuida pra evitar suspeita, faz de conta, mostra riso, percebe se não dá fora, avisa que vai-se indo, toca-se a vida melhor que dá.

Mas fica atento, perceba se nela há vontade de saber de cá, meça se é necessidade ou mero querer de se inteirar.

Se assim for diga nada, faz pouco caso, desvia conversa, inventa pressa de andar pra mais cedo chegar e antes poder descansar.

Só peço, presta atenção, se for mesmo precisão, diga que por querer eu mesmo iria lá, sem medo de ter que voltar antes dos olhos dela encarar.

Faz assim na sutileza, como quem nada pretende, relato da solidão, narrativa de alguém que sem ela, por aqui sozinho está.

Vá meu sonho, pura pretensão de chegar lá sem nunca aqui abandonar, por receio de retornar tão só quanto na ida.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Crônica - Como interpretar Memória da Pele

É uma análise arriscada, pois a poesia transformada em música é assinada por dois grandes monstros da MPB: João Bosco e Wally Salomão. De qualquer forma vamos empreitar. Primeiro com a transcrição da letra:
“Eu já esqueci você / Tento crer / Nesses lábios que meus lábios sugam de prazer / Sugo sempre / Busco sempre / A sonhar em vão / Cor vermelha carne da sua boca, coração
Eu já esqueci você, tento crer / Seu nome, sua cara, seu jeito, seu odor / Sua casa, sua cama / Sua carne, seu suor / Eu pertenço a raça da pedra dura
Quando enfim juro que esqueci / Quem se lembra de você em mim / Em mim / Não sou eu sofro e sei / Não sou eu finjo que não sei, não sou eu /
Sonho bocas que murmuram / Tranço em pernas que procuram enfim / Não sou eu sofro e sei / Quem se lembra de você em mim / Eu sei, eu sei
Bate é na memória da minha pele / Bate é no sangue que bombeia /
Na minha veia
Bate é no champanhe que borbulhava / Na sua taça e que borbulha / agora na taça da minha cabeça
Eu já esqueci você, tento crer / Nesses lábios que meus lábios sugam de prazer / Sugo sempre / Busco sempre a sonhar em vão / Cor vermelha, carne da sua boca, coração”
Pois é. A letra é um conformismo inconformado. É um desapego apegado. É sim e não e, enfim, é negação de um fato que se perdeu. A pessoa que se foi deixa marcas fortes: lábios, odor, cara, jeito, casa, cama, carne e suor. E quem foi deixado faz de conta que esquece, despreza, ignora. Mas se denuncia amarrado ao amor a ponto de detalhar momentos e eternizar cenas.
Memória da Pele chegou inclusive a ser tema de novela. Mas a letra e a música de João Bosco e Wally Salomão são gigantes. É poesia pura, cantada com maestria. É o melhor da música popular brasileira. É obra para ser curtida.
Quantos esqueceram do fogo da paixão que teima em acender a cada momento de solidão? Então Memória da Pele é vida para quem ama. Pura realidade. Às vezes até o sorriso de quem se foi fica por anos aparecendo nos espelhos que temos pela frente.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Conto - Rede de fofocas em versão jumento

É preciso deixar as coisas claras. Mas claríssimas, alvas, perceptíveis. Quando o chefe disse isso, a tal fulana saiu correndo pedir para o serviços gerais comprar meia dúzia de lâmpadas e recomendou: tem que ser aquelas bem fortes, que ilumina tudo. Que a luz chegue inclusive atrás dos armários, pois nada pode ficar no escuro.

O cara voltou com lâmpadas incandescentes. Ela mandou ele voltar à loja para trocar por fluorescentes. Brancas, que melhoram a impressão de clareza. E acrescentou consigo mesma: no fundo é tudo luz, mas as brancas dão a ilusão de mais clareza.

O fulano, por sua vez, telefonou ao vizinho e fechou um orçamento. A pintura da sala onde a equipe estava instalada num branco tão alvo quando a camisa do chefe. Acontece que no dia em que o vizinho pintor apareceu o chefe havia trocado de cor: foi trabalhar com uma camisa bege.

Então beltrano telefonou para bronquear e exigir a reparação no preço do orçamento original. Se deu mal, pois o pintor, por desaforo, passou o branco ralinho sobre a cor escura e ficou um bege opaco, desanimante e pouco estimulador.

Já o sicrano se encarregou dos móveis. Saíram as escrivaninhas, cadeiras, lixeiras, porta canetas, grampeadores, fitas adesivas, pastas, computadores, porta trecos e outras desnecessidades que eram de cores variadas. Tudo ficou branco, menos o cartucho de tinta da impressora.

E alguém se lembrou do piso. O laminado marfim foi retirado e no lugar colocaram o piso frio estonteantemente branco. Ficou realmente uma alvura. Combinaram também que todos trabalhariam de branco, inclusive nas peças íntimas. Beltrano e fulano acharam-se médicos, mas um deles foi confundido com cabeleireiro e outro, quando passou a pé em frente de um hospital, foi puxado violentamente para dentro porque havia uma emergência e estava faltando enfermeiro.

Quando o chefe retornou da viagem de algum lugar que ninguém soube onde, após participar por cinco dias de duzentos e trinta reuniões técnicas, a alvura do ambiente cegou os olhos e a tolerância. Foram berros para todos os lados. A bronca durou meio período de trabalho e só depois ele esclareceu. O que eu estou pedindo é de informantes. Quero saber tudo o que dizem por ai, nos outros setores da empresa. Quero ouvidos de jumento, grandes, captadores. Quero relatórios.

No dia seguinte todos foram trabalhar fantasiados. Eram orelhões enormes presos com elástico. As de fulana ficaram realmente de pé, antenadas, como se estivessem ouvindo tudo. As orelhas de beltrano ficaram iguais a de cachorros desanimados: caídas... e sicrano inovou: tratou de ir ao camelódromo para comprar amplificadores de audição.

No relatório fulana escreveu que realmente as orelhas de jumento melhoravam a captação das conversas, mas presas com elástico apertavam a cabeça e deixavam marcas bem na altura da testa. Beltrano não gostou: escreveu que com as orelhas escutou menos, pois feitas com panos macios elas entortavam e caiam sobre os seus ouvidos, prejudicando a audição. Sicrano pôs no relatório que a solução seria os aparelhos de surdez, mas precisava que a empresa o ressarcisse dos gastos com a compra numa lojinha de produtos do Paraguai.

O chefe, então, desistiu. Ele não tinha uma equipe preparada para atuar como informante. Ou seus subordinados eram burros ou se fizeram de jumento só para não criar naquele setor um time de fuxiqueiros. E alguém, por precaução, acrescentou no final deste texto: o jumento e o burro mencionados são humanos. Nenhuma ofensa aos animais, pois isso dá uma dor de cabeça...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Conto - Ironia com inteligência alivia calor

Então se o político brasileiro pode tudo, Nandinho resolveu colocá-los à prova. É bom deixar claro e direto que este carinha não é rato de gabinete parlamentar ou escritório político. Nandinho é um chato mais interessante: cobra desempenho com mensagens enviadas por internet e, para reforçar, manda correspondências pelos Correios na opção de AR. Assim o destinatário tem que assinar que recebeu o envelope.

O tema da mais recente interferência de Nandinho foi escolhido num almoço do pessoal da empresa onde ele é auxiliar do assessor do chefe. Aliás, um cargo intermediário conseguido com muito suor. Para se ter uma idéia, antes de ocupar a função Nandinho tinha salário bruto de oitocentos e setenta e quatro reais e vinte e seis centavos. Empossado no cargo o bruto passou para oitocentos e oitenta e poucos mais centavos afins.

A diferença, se levado em conta a renda líquida, dá para uma garrafa de refrigerante daquelas pequenas, de 290 ml. Isso numa padaria e confeitaria sofisticada. No mercadão da esquina o valor dá para quase duas garrafinhas.

Mas vamos ao que interessa. Foi num almoço, no refeitório da própria empresa, que colocaram na cabeça do Nandinho que ele devia mandar uma carta aos vereadores sobre esse destempero da natureza com calor de 35 graus ao sol.

Nandinho logo pensou em uma manifestação ecológica, com texto pesquisado na internet sobre desmatamento, uso excessivo de equipamentos e produtos nocivos ao meio ambiente, reciclagem, assoreamento, recuperação da mata ciliar, saneamento e outras coisas relacionadas.

Pensou e estufou o peito de orgulho e vontade. Planejou tópicos a serem abordados e autores a serem consultados. De cabeça fez a introdução de uma carta que mais do que apenas cobrar devia conscientizar, comover e estimular ação.

Mas a galera estava de gozação e completou que a carta devia ser enviada a todos os edis solicitando que enviassem requerimentos pedindo complacência da mãe natureza para com o ser humano: mais chuvas e permuta de um pouco do frio que faz na Europa com o calor tropical daqui.

Nandinho, ao contrário de esbravejar, aceitou o desafio. Prosseguiu com o seu projeto de dar boa fundamentação ao texto a partir de estudos científicos e pôs alma na redação. E no finalzinho propôs aos vereadores que convocassem audiência pública para que a mãe natureza se fizesse presente e falasse da sua tristeza por tantas maldades do homem ao meio ambiente.

Dos dezenove vereadores dezoito gargalharam com o manifesto do Nandinho. Um sugeriu que o texto do Nandinho fosse usado em uma campanha de conscientização. Claro que a proposta foi engavetada, mas até na ironia Nandinho conseguiu ser forte em seu argumento.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Conto - Se eu consigo falar você não entende...

Dá um tempo, fulana! Mas nem tanto, só o bastante para um respiro. Caramba, como você fala. E fala e cobra, e cobra e mais fala. Vai assim montando uma novela de epsódios truncados, diálogos interrompidos e final que se chega nunca.

E prossegue sem pausa. Até mistura nome de uma personagem da história de agora com aquela que ainda será relatada. Se faz uma pergunta tenho dúvidas se devo responder. Mas também para que? Você mesma tem a resposta e quem sou eu para discordar?

Que nada. Vou ouvindo. Quando posso consinto com um balanço de cabeça. Se não há como faço uma careta de espanto. Também recorro à expressão de surpresa. Ou dou-me ao trabalho de responder com monossílabos só para fazer de conta que estou entendendo.

Eis a questão. Se entendo e não concordo eu me calo. Se não entendo e não estou nem ai nada digo. Se quero concordar com entusiasmo você não deixa e eu me retraio. Que coisa estranha esse nosso diálogo!

E me pergunta ainda se gostei da janta de ontem. Vai que eu tente ser honesto comigo e diga que faltou sal no tempero da torta. Certo, já sei a resposta. Vou morrer de pressão alta se continuar consumindo tanta porcaria. Então quero dizer que algumas porcarias são gostosas. E o medo é que você pense que eu esteja me referindo a você. Como é que eu fico?

 Por falar nisso aquela da gordura foi trágica. Ofereci uma taça de sorvete e você recusou. Argumentou que estava de regime e tinha que se cuidar. Sinto muito. Não pude evitar o fora. Respondi que mais gorda do que você já estava não tinha chance de ficar.

Adivinhe o que aconteceu comigo? O olho roxo ainda embaça. A inflamação da unha encravada vai aos poucos se ajeitando. Mas os ouvidos, como ardem de tanto você falar que eu fui deselegante e cafajeste. Pode isso? 

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Conto - Desfiz e fico preso ao que não fiz

Fiz de conta que o seu sorriso passa longe do que eu sinto quando alguém sorri para mim. Ajuntei indiferença e respondi com um esboço improvisado de boca levemente torta e olhar distante.

Admito. Eu vi o seu sorriso. Mas não tanto para uma interpretação. Fiz vista grossa e permiti propositalmente que a mensagem fosse desfeita por ruídos. Então, na verdade, não sei se você sorriu por apenas sorrir ou me fez uma pergunta usando o sorriso como metáfora.

Alguma mensagem ele tinha, aquele seu sorriso. Duvido que houvesse apenas uma delicadeza num sorriso daquele, bem expressado nas formas dos lábios e dos olhos. Nego, porém, que eu tenha me acovardado diante do seu sorriso e desviado o olhar para não lê-lo.

Vi sim e encarei o seu sorriso. Só desprezei atenção. E como não o li também não pude interpretar. E sem saber se o seu sorriso tinha um causa deixei de retribuir. Isso não é medo. É desfeita.

Por favor, evite cobranças. Se desfiz prefiro ignorar o motivo. Convém considerar que o momento foi inadequado e um desvio qualquer me fez apenas enxergar o seu sorriso. Aliás, um belo sorriso, isso tenho comigo a me rondar até horas depois daquele seu sorriso.

Da mesma forma desconheço se você teria qualquer estímulo para sorrir aquele sorriso para mim, que não sou ninguém mais que alguém disposto a me contentar com sorrisos que parecem dar recados.

E se me tortura agora o fato de não ter lido o seu sorriso é porque ele me vem. Sou obrigado a me contradizer e confesso: o seu sorriso me incomoda.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Crônica - Experiência aos quarenta é nada

Pão com mortadela! Outra vez e se vai levando. É a terceira vez na semana. Lívia acabou de perder o emprego, mas o cardápio improvisado ainda não é conseqüência do desemprego. É que Lívia esta agitada, culpa da revolta misturada com a vontade de conseguir uma ocupação melhor.

São vinte e poucos anos de experiência em recursos humanos. Ela adquiriu conhecimento lidando com a papelada. Leis, procedimentos, resoluções, prazos, papeladas e outras coisas Lívia domina na ponta dos dedos e na cabeça. E assim, na vivência, Lívia jamais confundiu a austeridade com a sisudez. No comando do departamento soube se conduzir íntegra: séria, mas educada; austera, mas nunca carrasca de si própria e dos outros; metódica, porém sem neuroses quando a folha de rosto de uma pasta aparecia arquivada em ordem errada.

Nos casos de doenças e outros tipos de afastamento dos trabalhadores Lívia recorria à lei para garantir os interesses do patrão e os direitos dos empregados. Nas demissões sempre ponderou, de forma a ter certeza que o processo era encerrado com a clareza da justiça para as partes envolvidas.

Talvez por isso tenham comentado certa vez que Lívia tinha coração mole. E acrescentaram, num tom de ironia: “Serve para ser mãe, mas para comandar o recursos humanos ela nem curso específico tem. Não é psicológica, não é formada em administração, não fala inglês. Tem um monte de candidatos para o cargo com meia dúzia de certificados de cursos de pós-graduação. Está na hora de mexer ali”.

Lívia, na verdade, funcionava e muito bem no seu posto. Ela até conseguiu reduzir para a metade a quantidade de ações trabalhistas contra a empresa. Isso por rigor na papelada e acerto na condução do processo, de forma a não deixar brechas jurídicas e, principalmente, evitar que os demitidos saíssem magoados.

Não foi dessa forma que fizeram com ela. Lívia saiu cabisbaixa do emprego. Fez o trajeto a pé até a casa onde mora, distante pelo menos seis quilômetros. Esperou a família e chamou uma mesa redonda para anunciar a demissão.

E entre abraços consoladores e frases otimistas, a indignação baixou na sala de estar. Um pouco pela diminuição na renda familiar. Mais pela injustiça que na análise daquele ambiente o empregador havia cometido com uma funcionária exemplar.

Fazer o que? Lívia sabia trabalhar. Mas não tinha inglês e nem pós-graduação. E o despertar surgiu bem daí: onde enviar currículo que relacionava conhecimento e ficha limpa, mas omitia títulos pelo fato deles inexistirem? Aos quarenta e poucos ela, provavelmente, seria recebida com muita sisudez por alguns entrevistadores.