segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Conto - Os saltos do andar de cima enganam

Os saltos do andar de cima têm pressa. Pisam ligeiros de um lado a outro, vão e voltam, dão paradinhas que atiçam a imaginação: por que e onde os pés sobre os saltos se acomodam? Seria diante de um espelho para melhorar a maquiagem?

Difícil concluir. As coisas ficam pendentes e surgem mais. Estaria a dona dos pés vestindo um modelo social? Ou surpreenderia esportiva com o jeans fazendo um meio termo à parte de cima um tanto clássica, de forma que os sapatos ou as sandálias coubessem para o resto do que ela usa?

Mais dúvidas. Nada pontuado, tudo em aberto. Sapatos ou sandálias? Como ficariam as unhas pintadas de vermelho prensadas dentro de um modelo fechado? E as pontas, com que agudez elas conseguiriam ferir?
E os saltos, lá em cima, fazem toc toc. Aliás, há bom tempo. Já se percebeu de um pavimento abaixo alguém cutucando o teto para pedir um basta. Provavelmente aquela que prefira rasteiras de solado emborrachado e não curta como a pessoa dos saltos os preparativos para uma noitada.

Claro, são quase duas da manhã. Ela não está chegando. Ela vai sair. Toc toc toc toc e pára. É suposto que o andar seja do guarda roupa até o banheiro, do banheiro para a gaveta da mesinha de cabeceira, dali para o balcão onde as embalagens dos perfumes estão enfileiradas. Escapa pela janela a fragrância adocicada. O que seria? Para qual ocasião serviria aquele aroma?

Toc toc toc toc. Os saltos vão. Torturam as moradoras de baixo. E os marmanjos se sugerem, maldosos. Será que a mulher de cima já está totalmente vestida? Seria uma loira ou uma morena de cabelos alisados? E sonham com mulatas charmosas calçadas nos pés mas descalças no resto, provando cor, corte, caída, ocasião, oportunidade e expectativas sobre peças íntimas coladas ao corpo cheiroso.

Os pés agora vão mais longe. Ganham possivelmente a saída do apartamento pois ouve-se em breve o clique da chave e o estalo da porta. Os pés levam os saltos para o elevador e há quem encontre explicação para uma descida.

Aquele de dois pavimentos abaixo diz à mulher que esqueceu o celular dentro do carro, na garagem. O do imediatamente superior justifica à esposa que escutou barulho de alarme igual ao do carro que acabou de comprar. O aposentado lá de baixo não disse nada, pois é sozinho, e chegou à entrada do prédio pela escada. Muito antes do elevador.

Parecia uma assembléia do condomínio, mas só de moradores homens. Cada um se justificando ao vizinho o que fazia ali no saguão àquela hora da madrugada. Até que os pés dos saltos chegaram e o corpo que os sustentavam encheu o ambiente de perfume. 

Era o morador do décimo segundo, um meia idade representante comercial. De sapatos altos, peruca e um modelo até os joelhos, com um cavado profundo nas costas. Justo, sobre meias finas escuras. Ninguém reparou se eram sapatos ou sandálias, peruca loira ou morena. E as unhas não eram vermelhas. Estavam pintadas de verde forte.   

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