É mais ou menos assim. Aliás, mais do que menos. Ele não inventava e ficava dentro do enredo. Sempre. Fiel narrador, dava detalhes das coisas. Mas ninguém daquele tempo lembra ter ouvido dele aquele epsódio que poucos tiveram ciência, tamanha foi a tristeza que o cercou somada à decepção com os que fizeram parte da trama. Aquilo foi guardado dentro do silêncio, rasgando de raiva o coração e formando na garganta um nó que não se desprendia. Entalando, machucando, doendo e mexendo, como uma espécie de bicho enorme subindo e descendo o corpo por dentro dos músculos e arrebentando as veias.
Ambrósio, eis o nome do sofredor fulano. Sujeito que nasceu pobre e se fez pessoa de bem graças à herança que recebeu dos pais na sua formação. Bom aluno do grupo escolar, fez o então exame de admissão e passou na primeira tentativa. Então se viu no ginásio, de camisa branca, calça de tergal azul marinho, meias pretas e sapatos vulcabrás pretos. Era o padrão recomendado pelo estabelecimento de ensino.
Nunca repetiu de ano e nem chegou a ficar para exame. De repente se viu no colegial. Até os quatorze anos continuou estudando de dia, com o exigido uniforme da rede pública. Até que alcançou a idade da época de poder trabalhar e conseguiu transferência para uma turma à noite.
Escrevia muito bem. Suas redações, vez ou outra, serviam de exemplo nas aulas da professora de português. É porque, trancado na solidão de um menino simples, morador em um bairro de classe média, Ambrósio só tinha colegas na escola. Seus vizinhos, pelo menos a maioria, freqüentavam colégios particulares. Então ele lia muito e lendo inspirava-se nos autores a que tinha acesso para colocar o seus textos no papel. Chegou a um ponto em que rascunhava poesias, peças teatrais, letras de música, contos, crônicas, comentários sobre acontecimentos que testemunhava.
Sem uma máquina de datilografar, que era a tecnologia daquele tempo, passou a registrar o seu conhecimento da escrita e a sua inspiração, e como não também o talento, em folhas extraídas de cadernos de anos anteriores. Depois do primeiro emprego como aprendiz, conseguia comprar cadernos, cujas páginas eram rapidamente preenchidas com histórias.
Ambrósio começou como aprendiz de um laboratório de prótese dentária. Limpava, ajuntava os cestos de lixo, fazia entregas nos consultórios dentários, saia para depositar cheques no banco e, na sobra de tempo, os mais velhos, sensibilizados pelo interesse do menino, ensinavam a vazar as moldagens com gesso, esculpir de brincadeira alguns dentes e, no sério, deixar o lugar em estado de perfeita limpeza. Varrendo, lavando, ajuntando o lixo.
Quando os patrões acharam que ele já merecia uma promoção, o então adolescente anunciou que já tinha idade para trabalhar num banco e ia tentar uma vaga. Não foi tão fácil, mas conseguiu graças ao esforço e a persistência. E quando os chefes do banco, anos depois, achavam que deviam ter uma conversa com o mocinho para que ele prosseguisse os estudos na faculdade em áreas úteis à instituição financeira, Ambrósio saiu na lista de aprovados do curso de comunicação. Os chefes ficaram decepcionados, mas decidiram manter o rapaz empregado, sem a possibilidade de qualquer promoção. "O que um cara formado nessa tal comunicação pode fazer pelo banco", se perguntavam, às vezes, na gargalhada.
Nos primeiros anos do curso Ambrósio foi indicado por um dos professores para fazer parte da equipe de jornalismo de uma emissora de televisão. Ele aceitou e sofreu muito para se adaptar ao texto do jornalismo da emissora, pois como contista e cronista escrevia e muito. Nos jornais da TV precisa ser conciso. Pegou o jeito, depois de levar algumas advertências dos superiores, que significavam o risco de nem passar pelo período de experiência.
Até que ganhou a confiança e, a seu modo, adaptou a sua escrita ao jeito que o meio de comunicação achava que era o certo: texto seco, dando os fatos e dispensando detalhezinhos. Foi demitido quatro anos depois. O diretor de redação justificou que por escrever demais o texto dele era "meio comunista" e a diretoria da empresa não queria ter problemas com as autoridades.
Após quebrar o galho em pequenas publicações impressas, chegou anos depois a um jornal de porte médio. Aos poucos conquistou espaço e fez inimizades. Certa vez foi chamado por um superior para assumir vaga disponível num grande setor do jornal. Aceitou e, à noite, levou a novidade, junto com um lanche especial, à família.
A felicidade, porém, durou pouco. Um colega de trabalho que fazia parte daquele setor procurou-o para dar o seguinte recado, na bucha: "Você é um foca. Se aceitar a vaga que o fulano te ofereceu nós vamos te f..."
Foca era o termo que se usava para um profissional da área em início de carreira. À noite, sem dizer nada à família, Ambrósio se enrolou na cama por não conseguir dormir. Mas decidiu que ia aceitar o desafio: "Não sou um rato, vou encarar”, pensou.
E também rememorou a ameaça, em seu sentido mais pleno: “Se você aceitar a vaga vamos fazer você trabalhar só em porcaria, e de montão. Você não vai ter tempo e nem condição de produzir material bom”.
Como isso seria possível, pensou Ambrósio. "Se me derem só porcaria para fazer eu consigo transformar a minha produção em coisa boa", imaginava. “Eu vou mostrar como se faz porcaria virar coisa boa”.
Mas se deu mal. E muito. Foi, durante o período que se manteve no setor, castigado com o excesso de produção, a falta de condição para aprofundar os assuntos, a pressão psicológica por trabalhar vigiado por colegas e a frustração de não conseguir impor-se profissionalmente.
Até que, sentindo-se derrotado, pediu ao superior que o transferisse para outro setor. "Eles venceram, eu substimei. Não achei que a maldade tivesse tanta força", pensou consigo mesmo. E pouco tempo depois recuperava o seu vigor, o seu talento, a sua vontade e capacidade. Já conseguia escrever aquilo que quem o lia gostava de ler.
Eu sei dessa história porque achei no meio dos rascunhos de Ambrósio as anotações, em letras espichadas, mas legíveis, de como tudo aconteceu. Não sei quantos netos e quantas netas Ambrósio tem. A bem da verdade, eu nem ao menos sei se ele tem netos e netas. Mas pelo modo como o rascunho estava escondido, imagino que ele, que gostava de falar sobre as suas produções, jamais comentou com familiares, parentes ou amigos este epsódio que tomo a liberdade de contar no lugar dele.
E sei também os nomes daqueles que participaram da trama. Mas não falo. Se Ambrósio se calou eu fico quieto e também levo comigo, e só comigo, o que contém atrás de cada um dos envolvidos. São coisas que acontecem em diferentes ambientes de trabalho onde há pessoas armadas escondidas atrás das escrivaninhas ou dos balcões. Se é que ainda usam isso, escrivaninhas e balcões.
De qualquer forma, deixo esta verdade escrita e publicada, para que os "amigos" do Ambrósio saibam que foram derrotados.