sábado, 21 de fevereiro de 2009

Conto - Uma história defecante

Com quarenta e um anos cravados na carteira de identidade e no registro de nascimento, mas, vejam só, uma carinha de apenas quarenta, Ariete era daquelas que mantinha a boa forma física na base de muito diurético e laxante. A receita fora passada por uma amiga, postulante a anoréxica, que carregava em um dos compartimentos da bolsa uns vinte envelopes de lacto purga.
Eu lembro que Ariete perguntou para a Vanessa, meio irônica: "Você é ressecada? Ou isto serve só para a tanajura não perder a forma?" Mais do que rápida e com a rudeza que a vida lhe havia ensinado, Vanessa retrucou: "Não meu amor. Isso é para eu cagar toda a gordura que me sobra no meu corpinho. Senão eu acabo ficando igualzinha a você. Toda torta e pelancosa."
Eu saí de perto e nunca soube o resto da conversa. Vanessa fazia programas com empresários. Cobrava em dólar. Ariete só saia com alguém por prazer. E olha que o prazer dela era constante, frutificante, persistente e melequento. Bastava o olhar mais firme de um macho para ela ter desejos.
Encontrei Ariete dias depois daquela conversa remelenta com Vanessa. Esperei que ela dissesse alguma coisa a respeito. Esperta, ele percebeu a minha curiosidade e ficou quieta. Da minha parte, não dei carga e apenas pensei, disfarçando o olhar de súplica com um gesto de desdem: "Cago na tua cabeça, mas não te dou chance, polaca..."
Bobagem. Não de um minuto e Ariete emendou: "Eu estou só na base de fruta, muita água e fibra. Então não precisa me convidar para aquela pizza que você me deve faz uns cinco anos. Ou mais... Dispenso." Era a chance de eu entrar no assunto da briga com a Vanessa, mas antes eu precisava fazer firula: "O que há? Sempre morta de fome e pronta para um boca-livre? Agora que eu ia saldar a minha dívida me dispensa?
Boca suja aquela Ariete. Foi no sopetão que ela revidou: "É para eu cagar muito, babaca. Cagar as banhas e as gorduras no vaso sanitário que é você, entende? Quero ficar fininha e te jogar na lata de lixo. Ainda vai se ajoelhar aos meus pés."
Eu não podia deixar por menos: "Não querida. Eu não uso lente de contato. Pois só se perdesse a minha vista artificial me ajoelharia aos seus pés procurando por ela o mais depressa possível. Imagina se você me pisa nela com essa gordura toda?"
Veja, a minha relação com Ariete era assim mesmo. Defecante. A gente não sabia se falar de outro jeito. "Você é um bosta e quer fazer de mim uma privada?" - agredia a malvada. "Pare de me olhar com essa cara de merda senão eu dou descarga" - costumava eu dizer quando ela me encarava com aquele olhar de peixe congelado.
Na verdade, a gente não tinha nada um com o outro. Talvez esse fosse o problema. Nunca havia atentado Ariete e ela, tampouco, alguma vez na vida me olhou com olhar que não fosse de parceiro. Mas, parceiro no que?
A gente até se evitava. Lembro que por algumas vezes eu dava volta por três quarteirões no retorno para casa, lá pelas onze da noite, só para não correr o risco de encontrá-la. A danada percebeu e passou a fazer ponto na quitanda quase em frente de onde eu morava. Quase sempre estava com o Tarciso, uma espécie de bobo do corte daquela rainha sem trono e sem corpo de majestade. Às vezes as pelancas caiam por cima do cós da calça de cintura baixa. Ela ficava esquisita. Tenho minhas dúvidas, mas Ariete chamava Tarciso de Meu Guru. Para mim, guru tem muito a ver com um cara que não quer nada com o sexo oposto e vive encostado em mulheres, para aconselhar sobre a cor da calcinha ou o formato do sutiã.
Teve uma noite que eu driblei a Ariete com muita peripécia. Evitei passar em frente da quitanda invadindo o quintal da dona Alvinda, que dava nos fundos do meu quintal. A coitadinha estava assistindo televisão quando eu passei agachado pela janela da sala. Na verdade, ela cochilava. Senti as babas escorrendo pelos cantos da boca murcha, pois as dentaduras descansavam num copo de vidro em cima do aparelho de TV.
Cheguei em casa e acendi a luz do quarto, com janela de frente pra rua, só para avisar que eu havia chegado e ela não tinha conseguido me atasanar no caminho. E fui na janela da sala, de luz apagada, espionar. A maldita deu uma encarada para a luz acesa e começou a provocar. Vi a Ariete se roçando no Zé da Calha, apalpando o cara na frente de todo o mundo. Não sei, mas senti uma espécie de ciúme e pensei: "Que bosta, ela me torra o saco, pede para eu pagar a conta da luz do quarto dela, empresta dinheiro para comprar preservativo e na hora do bom é com esse merda?"
Nem eu entendi a minha reação. Que eu saiba, eu não estava afim daquilo. Jamais encararia uma sessão de roçagem com a Ariete, sob o risco de ficar impotente, tamanha era a feiura da dita. Depois analisei que era o jeito dela provocar que me incomodava. Vi Ariete e Zé da Calha subindo para a rua marginal, de onde se ia a um motel de quinta categoria. Imaginei o babado e decidi dormir, sem banho e sem jantar.
Na manhã seguinte corri à quitanda, ainda com remela nos olhos e os cabelos parecendo um monte de capim engomado. Mal pisei o tapete da porta e senti o clima. Só se falava naquilo. Na noite anterior, meia hora depois de sair com Ariete, o Zé da Calha retornou emputecido, soltando faísca para todo o lado.
A revolta do rapaz: Ariete havia tomado um purgante depois de um lanche reforçado, como era seu costume após as refeições dos dias em que não havia programado nada com alguém. Era o caso da noite anterior, mas para fazer fidusca comigo ela resolveu sair com o Zé. Advinha o que aconteceu? O efeito do medicamento bateu bem na hora em que ela chegou com o Zé no motel.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Conto - O amor de Durvalina foi pro saco

Tinha uma pinta negra acima do lábio superior, à esquerda do rosto, bem no rumo do buraco do nariz. Há quem jurasse que aquilo era maquiagem, ao que Durvalina dizia que era uma benção. O formato era de um pequeno coração. Ao sol, brilhava com o efeito do suor que se esparramava no buço, algo que os maldosos chamavam de bigode.
Morena, cabelos espichados com chapinha, a mulher beirava lá os seus trinta e cinco anos de idade. As amigas mais jeitosas garantiam: "Nem parece. Você tem uma carinha de trinta aninhos e olha lá..." Nilcéia, a vizinha da frente, invejosa não deixava por menos: "Nem parece que você tem quarenta anos, Durvalina."
Já era mãe a cavaluda morena de nádegas saltadas e rego dos seios provocativamente à mostra. Não era gorda, mas cheinha, com as partes vem definidas e os excessos distribuídos alinhadamente, o que fazia dela um objeto dos desejos para muito marmanjos.
O mais velho dos rebentos Durvalina ganhou quando tinha ainda dezesseis anos. O filho, chamado Ayrton e agora com dezenove anos, foi um fruto proibido devorado por Durvalina e o namorado Adamastor, quando ela morava com os pais na casa de empregados de uma fazenda em Sertanópolis. Foi depois de uma campeada lá pelos lados do pomar, com o argumento de que iriam colher tangerinas, que o casal de namorados tomou o rumo da mina d'água. lá onde diziam os mais velhos que uma sucuri espreitava por entre o capinzal para engolir os desprovidos.
Durvalina, moradora desde criança do lugar, e o parceiro Adamastor, na época com vinte e um anos e gabarola por ter feito o tiro de guerra em Londrina, sabiam que a história da gibóia era cascata. Adamastor, macho de pegar taturana com as mãos e de torcer pescoço de gambá girando o bicho com uma só mão, dizia que se a bichona viesse se arrastando ele a deixaria parada com uma chave de braço ali bem no pescoço e controlaria o resto da cobra com o outro braço. Nunca, mesmo entre os mais espertos, se fez alguma pergunta sobre onde ficaria o pescoço da gibóia. Mas nem todos acreditavam no papo do mancebo e dizim que tudo não passava de tagarelice.
Pois então. Adamastor justificou e disfarçou: "Vou apanhar tangerina mas não quero moleque por perto. Só atrapalha." Desceu sozinho e pouco depois Durvalina deu uma volta na casa, usando o carreador, pulou a cerca de arame farpado e correu pela área de pastagem até se encontrar com o namorado no pomar. Ele já havia apanhado umas frutas, para não voltar de mãos abanando. Ela, se não segurasse, a vontade, se entregaria aos beijos ali mesmo.
Adamastor se conteve e sugeriu o bambuzal ao lado da mina, cerca de trezentos metros. Ali havia uma espécie de cova feita pelos meninos só para as sacanagens. No meio do bambuzal, a moçada havia aberto uma clareira, acolchoada com palhada seca, para fumar escondido dos pais e aprontar com as meninas que topassem um namoro mais forte.
Durvalina e Adamastor nem beijos trocaram. As roupas tiradas pela metade só sairam por completo depois do sobe e desce dos corpos suados. Gemidos abafados quebraram a monotonia do zumbido reto e sem acordes produzido pelo vento nas folhas. Depois o silêncio e o jeito de atordoados estampado nas caras de ambos, que se refizeram para subir até o pomar, catar as tangerinas espalhadas pelo chão e voltar para os parentes.
Antes, Durvalina e Adamastor correram até a mina e lavaram os sexos coma água que lá em baixo, na altura do sítio de dona Cida do Fogão a Gás, o pessoal usava para beber de tão límpido que o líquido descia.
A segunda filha, Carolina, foi também de mãe solteira. Mas de um namoro mais promissor, que só não aconteceu porque Carlos Antonio foi servir o Exército em Curitiba e acabou ficando por lá, para seguir carreira militar. Durvalina esperou pelo retorno de Carlos Antonio, que prefiriu uma loira colegial de um bairro médio da capital. Adamastor, ainda nas proximidades, tentou se recompor com Durvalina. Não deu sorte, pois a ex-namorada nunca o perdoou por ele ter mexido com Valdirene, uma vizinha que, conforme os boatos, se abria para qualquer um que usasse calça comprida.
O terceiro filho, Alexandre, outro deserdado de pai, nasceu de mais um relacionamento inacabado de Durvalina. Foi com Joaquim da Quitanda da Frente, como era conhecido o português que trocou uma mercearia da Vila Casone, em Londrina, por um pedaço de terra no Distrito da Warta. No lote, além de plantar para consumo próprio ajeitou um barracão de madeira na beira da estrada, onde vendia defumados, cigarros, pinga, cerveja, pão, sabão, detergente, óleo de soja e linguiça cortada em porção.
Foi lá que Durvalina conheceu Joaquim e passou a ser uma frequentadora assídua do estabelecimento quando vinha de Sertanópolis para Londrina. Num meio de semana, lá pelas três da tarde, horário de pouco movimento e de cara de sono, que o menino foi concebido.
Agora Durvalina está de enrosco com Ernesto, um motorista de ônibus. Ela ainda causa ciúmes no quarentão, que é casado com Amanda Neves e pai de Clarissa e Rodrigo. Lá nas redondezas dizem os malditos que está a caminho mais um filho sem pai. Preocupada, Ligia Leandra, uma prima de Durvalina que mora na cidade, andou recentemente perguntando para a parente: "Parece que você não ama homem algum? Vive de enrosco e engravida..." No que Durvalina, mais por ironia, respondeu: "Amor, minha prima? Onde é que eu sinto isso? O meu sentimento pelos homens hoje em dia está mais no saco. E tem que ser grande."

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Conto - Nome de velho

Genivaldo morava pra lá da ribanceira que dava na fazenda do seu Nico, poderoso dono de terras vindo lá de Minas, Estado vizinho de onde o adolescente, quase moço, nasceu há 14 anos. O goiano era a mistura do negro com o polaco. Do couro cabeludo saiam os pichainhos ruivos, embaraçando escovas e quebrando dentes do pente.
Novo, mas matuto, falava e agia como os adultos. Sabia contar vantagens e nelas mentia como um escolado proseador de causos inventados. Nunca se viu Genivaldo vermelho da cor da vergonha após ser sarreado por alguém numa conversa na porta do bar do Zé Antônio, o único estabelecimento comercial fincado naquele entrocamento modorrento com a reta levando para a propriedade do seu Nico e o desvio, à direita, fazendo caminho para um par de sítios de pequeno e médio portes.
Uma das galhofas era em torno do seu nome, Genivaldo. Já era tempo até de cantor de música sertaneja ganhar estrelato com estampa de luxo, como Rick & Renner, só dando um exemplo. Nada parecido com Tonico e Tinoco ou até Chitãozinho e Xororó, que embora modernosos e ouvidos mesmo cantando modinhas urbanas tinham ao menos nos nomes um tico de raiz do mato.
Então qual era a causa de um menino de 14 anos ter nome de velho? A pergunta era mais por ironia, já na hora em que os antigos, cabeças atoladas em bonés com propaganda de veneno, tropeçavam nas garrafas de cerveja. De resto, sobravam os copinhos de trago, com o cheiro da branquinha enjoando, enfileirados na beira da parede de madeira do bar onde mulher não entrava depois das seis da tarde.
Dizia o velho João Marcelino, em tom de puro deboche, que Antenor e Maria do Amparo esperavam a vinda de Geni, uma menina para completar o time de quatro rebentos gerados pelo casal. A preferência por uma moça se dava por causa do precedente: três sacos roxos barulhentos desde o nascimento e resmungões, de boca aberta para soltar palavrões até em discussão com mulher. Mas nasceu outro pé grande, com cara de safado desde o primeiro tapa na bunda dado por uma enfermeira magra e de seios grandes.
Ainda atordoada pela passagem do graúdo do útero para a vida de fora, num parto normal doloroso e sem piedade do médico do hospital público, Maria lembrou do avó, falecido fazia três anos, que se chamava Valdemar. Para não desperdiçar Geni, nasceu Genivaldo, cuja terminação tem pouco a ver com o morto Valdemar mas serviu de inspiração.
Dita assim, a lorota não acabrunhava o adolescente, que entre um descuido e outro do pai e dos irmãos mais velhos virava o copo de alguém conivente e dava uma talagada de cerveja quente, um purgante, cujo efeito era a vermelhidão da cara rabiscada de sardas. E retrucava: Genivaldo, um antepassado, fora em Minas um corajoso desbravador que defendia suas lavouras e suas criações a facão contra o roubo cometido por vizinhos desavisados e o ataque de onças e leões.
Havendo tempo, a história prosseguia por mais uns capítulos, até chegar na gibóia de uns quinze metros que o bravo Genivaldo abateu após uma luta de três horas. A carne da comprida servira urubus por mais de dias, concluia o adolescente já na hora do Zé Antônio fechar a porta de tábuas do estabelecimento e garantir o seu patrimônio com um cadeado de latão enferrujado.
Por desaforo, ninguém contestava e muito menos ria da história. O grupo, sem combinação nenhuma, acertava uma reação de silêncio e pouco caso. E tomavam os rumos de seus sítios se arrastando, tropegos, pelo batidão de terra. Ainda pegavam o final da novela das oito, cujas cenas jamais seriam comentadas na tarde seguinte, no encontro do bar, por pura questão de hombridade: macho não assiste novela. Nem precisava. Pois no bate e rebate da história do nome de Genivaldo, cada dia uma versão diferente aparecia e consumia horas de criatividade e gargalhadas.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 21

A calça de brim azul marinho havia perdido a cor original. O tempo de uso e as lavagens a mão, com sabão forte feito em casa, deram à peça um aspecto de pano velho e desbotado. Uma coloração clara e arroxeada ainda predominava logo após o ferro de passar esquentado a carvão alinha as costuras das pernas e marcava o vinco. A calça tinha pregas e bolsos sociais.
Alguns minutos de uso eram suficientes para as deformidades aparecerem. No corpo magro e pequeno de Riuzim, o brim mole ficava desajeitado, transformando-se numa grande bombacha. O roxo misturava-se com o marrom da poeira, originando um furtacor que variava de acordo com a intensidade do sol.
O tergal era o tecido da moda para a confecção de calças. Propagandas de rádio anunciavam a vantagem do pano, de não amarrotar e nem perder os vincos. Os meninos de famílias mais abastadas davam-se ao luxo de frequentar as aulas com modelos diferenciados. Alguns ousavam comparecer na escola com as bocas de sino arrastando no chão. Os passadores eram largos e apropriados para cinturões de fivelas enormes. As pregas eram eliminadas e a tendência do momento ajustava as calças até a altura dos joelhos. Nada proibia aquele tipo de roupa, mas dona Aurora, a inspetora de alunos do Vicente Rijo, seguia a determinação da direção do estabelecimento de ensino e implicava com os alunos que se entregavam à moda. Dona Aurora era perseguidora implacável de Riuzim, não por causa da boca de sino e do passador largo. É que a calça velha de Riuzim, justificava secamente a inspetora, era roxa, e não azul marinho.
As meninas usavam saias plissadas, também azuis. As peças normalmente eram de tergal, pois o brim complicaria a passagem a ferro e desmancharia as preguinhas milimetricamente costuradas. Não havia, portanto, muitas implicâncias com as meninas, pois o pano demorava mais para perder a cor. Mas dona Aurora, fiel à direção do colégio, ficava de olho no comprimento das saias. Espertas, as alunas contentavam-se com os modelos abaixo dos joelhos. Mas fora dos muros do Vicente Rijo, na ida e no retorno da escola, elas enrolavam o cós e faziam das suas peças do uniforme atraentes minissaias, que ganhavam mais destaque ainda com o branco das meias enroladas até os tornozelos e embutidas nos sapatos pretos de amarrar.
Joelhos de fora e boca de sino nem sempre bastavam para a velha senhora. Dona Aurora era rigorosa com os cabelos longos dos meninos e as unhas esmaltadas das meninas. Não havia um parâmetro para as jubas da molecada. Para os que usavam cortes tradicionais, bastava alguns fiapos cobrindo as orelhas para dona Aurora implicar. Os que optavam por cabeleiras modernas, típicas nas cabeças dos cantores da época, eram analisados com benevolência desde que o artista copiado fosse da música popular. Havia os que se inspiravam nos roqueiros e estes eram rigorosamente perseguidos pela inspetora.
As unhas das mãos femininas tinham que ter esmaltes discretos. Cores vivas eram condenadas. Uma aluna com pintura vermelha na unha era motivo de muitos comentários. Até professores costumavam gastar os seus intervalos para lanche em conversas nada interessantes sobre a maquiagem leve no contorno dos olhos de alguém. Com a cara exageradamente pintada a aluna não passava pelo portão da escola.
Foi numa tarde de quinta-feira, após o intervalo, que a inspetora implicou mais uma vez com a cor da calça de Riuzim. Fez uma espécie de ultimato: amanhã não entra. Naquele dia o menino voltou cabisbaixo para casa. Interrogado pela mãe, disse que não poderia assistir aulas no dia seguinte por causa da cor da calça de brim. Em silêncio, Margarete foi até o quarto, onde tirou de um armário um de algodão com roupas velhas.
Uma calça descartada de seu Francisco era o que ela procurava. Feito de casimira, a peça ficara pequena na cintura e fora guardada apenas para se planejar nela um alargamento. Diante, porém, de uma situação de emergência, Margarete resolveu desmanchar a calça, que foi cortada para Riuzim. O modelo concebido foi de acordo com o tamanho do tecido. Sem pregas, de bolsos por fora e uma boca de sino leve, quase reta, cairam bem no menino.
Na sexta-feira, após uma chuva no fim da madrugada até o início da manhã, Riuzim tornou-se elegante com a calça azul marinha de casimira. Apesar de justa, dona Aurora não implicou. Para surpresa de Riuzim, despachou-lhe um elogio. Naquele dia o menino não brincou de bola com os colegas após o sinal de saída. Nem participou das correrias pelas calçadas da avenida Higienópolis durante o caminho de retorno para casa. Cuidou-se o quanto pode para não sujar a calça nova.
Após subir a Higienópolis, Riuzim desceu trecho da rua Paraíba até a Quintino, de onde entrou pela Belo Horizonte, no sentido do antigo Samdu.
Ali atravessaria a linha férrea e tomaria o rumo da rua Araguaia. Escorregadio em dia de chuva, o barranco abaixo do Samdu foi matreiro com o menino. A perna direita, com os pés calçados num Vulcabrás de salto gasto, escorregou para a frente, fazendo a perna direita dobrar-se. A ginástica resultou num barulho de pano arrebentado e um rasgo, que pegou dos fundilhos até a metade da bunda, bem rente à custura do cavalo da calça.
Riuzim completou o trajeto até em casa com a bolsa segura pelas duas mãos, na altura da bunda. Foi para esconder o rasgo, que Margarete ziguezagueou com capricho dobrado, de forma a permitir que seu filho, na semana seguinte, pudesse frequentar as aulas.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 20

Uma mecha com poucos fios de cabelos transpunham a cabeça do professor Eugênio, auxiliar de direção do Complexo Escolar Professor Vicente Rijo, na avenida JK, esquina com a Higienópolis, em Londrina. Magro, o auxiliar era chamado pelos estudantes de Professor Pardal, nunca devido à criatividade de um gênio ou em referência ao seu nome, mas por culpa do perfil físico. Os cabelos saiam da lateral esquerda da cabeça e as pontas encostavam na orelha direita. A tentativa era de cobrir parcialmente a careca, num disfarce cômico.
Eugênio era um excelente professor de ciências. Como auxiliar da direção, tinha uma postura austera e impunha medo nos estudantes. Riuzim era aluno do noturno. Embora morasse na Vila Nova e tivesse como opção o Colégio Marcelino Champagnat, decidiu, com uma turma de colegas, mudar para o Vicente Rijo acompanhando a mudança de endereço do estabelecimento de ensino público tradicional da cidade.
Riuzim saía cedo de casa, pois trabalhava como aprendiz no escritório de um parente, na região central de Londrina. Fazia os serviços de banco, providenciava a limpeza do estabelecimento e era responsável pelas atividades que nada tinham a ver com as máquinas de escrever ou de calcular. Era, na verdade, um office boy.
O almoço se limitava a um lanche num bar próximo. O pão com mortadela era o prato principal e uma tubaína gelada ajudava a matar a sede e a preencher o vazio do estomago. O descanso após a refeição era feito num banco da praça em frente à antiga sede do Colégio Londrinense.
O retorno ao escritório, uma hora e meia depois, se dava em clima que misturava euforia e preguiça. Euforia pela possibilidade dos ponteiros do relógio correrem. Preguiça devido à volta ao trabalho, com o arroto do refrigerante e do sanduíche causando olhares de reprovação por parte dos colegas.
Uma nova ida aos bancos, entrega de pastas em empresas clientes, levar café para o tio, comprar pão e leite para a escriturária e acompanhar a tia no supermercado estavam na lista de atividades para o período da tarde. Às vezes, o carro do parente, sujo nos inícios da semana, obrigavam Riuzim a assumir a função de lavador.
A jornada diária terminava às seis da tarde. Antes de deixar o serviço, Riuzim limpava as mesas dos escriturários e contadores, esvaziava as latas de lixo, varia o chão do escritório. Só depois passava uma água fria no rosto e no pescoço, usando um papel-toalha para se enxugar. Uma bolsa colegial branca de ziper, com o emblema do estabelecimento de ensino, continha, além de livros, cadernos e canetas, um pão com manteiga preparado de manhã pela mãe.
O lanche era devorado no caminho, feito a pé, do escritório até o Vicente Rijo. Escondido em um saco plástico num canto da bolsa, um maço todo amarrotado por causa do tempo em que ali ficava escondido e também devido ao volume dos livros continha cigarros tortos. O sabor era de mente, para alimentar a ilusão de não chegar a escola com o cheiro da nicotina na boca e nas mãos.
Depois do lanche Riuzim escolhia um local ermo e disfarçava na procura do maço de cigarros dentro da bolsa. O que retirava necessitava de uma espécie de massagem delicada para que os amassados fossem eliminados e o fumo, desconcentrado, fosse socado na unha do polegar. Um isqueiro niquelado comprado em tabacaria, com forte cheiro de fluído, era transportado no compartimento da frente da bolsa.
Acender o cigaro era um ato engenhoso e suspeito. Riuzim observava os carros que iam e vinha, para evitar ser flagrado por algum parente. Só nos pontos mais escuros da Higienópolis, ondes as folhas das árvores cobriam a luminosidade das lâmpadas, é que o cigarro era aceso.
Riuzim não sabia tragar. Tinha vergonha de dizer aos colegas da mesma idade que ainda não tragava, pois seria motivo de ironia. Um dia Riuzim decidiu que, após o pão com manteiga, no caminho do colégio, acenderia quantos cigarros fossem necessários para aprender a tragar.
Foi no segundo que sentiu a fumça entrando na garganta. Sentiu-se feliz, decidiu que depois daquele acenderia outro, para evitar o risco de desaprender a tragar.
O terceiro cigarro, já perto do Vicente Rijo, foi fatal. O estomago começou a embrulhar e a cabeça doia. O chão faltava sobre os pés. Os olhos embaçavam. Uma reação parecida com uma forte ressaca, sensação que Riuzim nem havia sentido ainda por não beber, fez Riuzim procurar apoio na mureta externa do colégio.
O sinal bateu e o inspetor de aluno rodou pelo pátio do estabelecimento de ensino a procura de estudantes que matavam aulas. Riuzim, do lado de fora, foi reconhecido e levado para a diretoria. Mal conseguia falar, mas o forte cheiro de cigarro denunciou o estado do adolescente.
Depois de um remédio e duas balas de hortelãs, o auxiliar da direção ocupou-se com Riuzim por mais quarenta minutos. Mais da metade do tempo para uma reprimenda. O outro tanto para a elaboração de uma carta aos pais de Riuzim, denunciando-o de matar aulas para ficar fora do pátio fumando.
A carta teria que ser devolvida para o auxiliar com a assinatura da mãe, do pai ou do responsável pelo aluno. Enquanto o documento não chegasse às mãos do auxiliar Riuzim não poderia frequentar as aulas.
Foram dias de angústia, medo e arrependimento. Riuzim não sabia como apresentar o documento para a mãe. Colegas o convenceram a pedir a alguém uma assinatura falsificada. Riuzim concluiu que seria um pecado para com a mãe. Melhor seria desistir da escola, dizer que queria mudar de colégio.
Do flagrante, na terça-feira, a carta só chegou à Margarete na manhã da segunda-feira seguinte. Cabisbaixo, Riuzim mentiu. Disse que havia ganho um cigarro de um colega e fumado. Passou mal e foi reprimido pelo auxiliar. Margarete, olhar terno e complacente, apenas retrucou, de um jeito calmo, que o cigarro não era um negócio bom para a sua idade. Nada mais disse e assinou a carta, que à noite foi devolvida para o auxiliar.
Riuzim perdeu uma prova de matemática durante as faltas. Perdeu também a liberdade e a desenvoltura com que abraçava a mãe quando chegava, às onze e meia da noite, da escola. Nunca mais conseguiu parar de fumar e retornava para casa com a sensação de estar traindo a mãe.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 19

As bombas das festas juninas eram avaliadas pelo preço. Quanto mais caro, mais potente e barulhento. Uma bombinha de vinte servia para levantar uma lata de extrato de tomate até a altura de um poste. Uma de trinta arrancava o fundo da lata e ia muito acima do pico do poste. Uma de cinquenta era comprada escondida dos pais. A potência e o barulho indicavam muito perigo.
A febre dos fogos de artifício começava em maio. Já nas comemorações do Dia das Mães alguns fogos estouravam na vizinhança, levantando a preocupação dos adultos. Para alguns, o receio era do perigo. Outros chegavam ao extremo e reprimiam os pequenos com um discurso pronto: estourar bombinhas era o mesmo que queimar dinheiro. Havia também as donas de casa que se incomodavam com o estouro no momento em que escutavam uma radionovela.
Os pequenos mercados de uma ou duas portas, que vendiam de inseticida a carne seca, não perdiam a oportunidade de melhorar o caixa vendendo bombinhas para fregueses de qualquer idade. Aproveitavam a inexistência de uma lei e se permitiam a comercializar sem restrições. Uma criança de quatro anos de idade, com dinheiro na mão, deixava o balcão com um pacote de soda, ou uma garrafa de pinga, ou uma maço de cigarros.
Os meninos das ruas sem asfalto da Vila Nova economizavam no cinema para comprar os fogos de junho. Na volta da escola, iam em grupos às mercearias e saiam com os bolsos recheados com os pequenos artefatos. Antes mesmo de chegar em casa, enchiam as ruas do caminho com a algazarra típica das crianças e atiravam alguns bombas acesas nos quintais dos inimigos: eram os adultos que implicavam com as suas brincadeiras ou os moradores que mantinham cães os mais visados.
Atos de irresponsabilidade confundiam-se com ousadia. Vez ou outra um menino decidia estourar uma bomba segurando a rabetinha de papel com as pontas dos dedos. Outros, com os pés descalços, sacaneavam os parceiros pisando nos fogos que estes soltavam. Apagavam o sonho do estouro do dono do artefato ou, quando calçados, permitiam que a bomba explodisse com o barulho abafado pelo pisão.
Três festas juninas eram típicas no bairro. Seu Chiquinho era o promotor da primeira delas, a de Santo Antônio, na véspera do dia 13 de junho. Uma bandeira do santo, escorada num mastro, era fincada na entrada da casa. A lenha da fogueira começava a ser empilhada logo após o almoço. Seu Chiquinho, um carroceiro, tratava de providenciar madeiras descartadas e troncos secos de árvores dias antes. Tudo era empilhado na beirada da rua, bem em frente ao seu quintal.
À noite, quentão, pipoca, batata-doce, milho cozido, paçoca, doce de leite eram distribuídos aos participantes: vizinhos, parentes e conhecidos que vinham de longe. Corria no bairro que os promotores das festas de junho pagavam algum tipo de promessa, por isso tinha que comemorar os santos de junho todos os anos.
A festa de São João acontecia na casa do próprio, seu João, morador da mesma rua de seu Chiquinho. Seu João tinha um time de meninas e belas moças em casa, todas morenas, de cabelos negros levemente ondulados. Das seis filhas, Angélica era a mais nova e a mais espevitada. Adolescente, a menina-moça chamava a atenção dos rapazes que procuravam por namoradas.
Acostumada a brincar com os meninos nos jogos de bola queimada, Angélica tornava-se uma espécie de anfitriã dos participantes da festa organizada pelo pai. As irmãs empenhavam-se desde o meio da tarde nos preparativos da batata-doce, do pinhão, do amendoim, do milho e dos bolos. A pipoca era estourada depois, na medida em que as pessoas chegavam.
Os rapazes, atiçados pela presença de mulheres bonitas, buscavam opções nada atraentes para serem percebidos. Recorriam aos bucapés, odiados pela raparigas, para assustarem as crianças e os idosos. Na maioria das vezes cortavam a vareta do buscapé, para que o fogo de artifício saísse em zigue e zague sem ganhar altura e explodisse nos pés de alguém.
A última festa, na rua de baixo, era organizada por seu Pedro, na véspera do dia 29 de junho. Fechado e de poucos amigos, seu Pedro tinha menor frequência no seu evento. Os meninos da rua de cima tinha receio de participar. Observavam de longe e saboreavam somente o cheiro das guloseimas. Riuzim, recomendado pela mãe, Margarete, ajuntava-se com a sua turma, na beirada do campo de futebol, para brincar de pega e esconde.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 18

A tarde de 18 de junho de 1975 pareceu noite para as meninas e os meninos da Vila Nova. Fazia frio, mas após as aulas do matutino, alguns escolares foram às ruas brincar já com as tarefas passadas pelas professores do Grupo Escolar Nilo Peçanha, na rua Araguaia, cumpridas.
A terra estava batida, sem poeira e sem barro, no ponto ideal para algumas brincadeiras como o carrinho de rolimã e a bolinha de vidro. O tempo nublado inibia a tentativa de soltar pipa e a opção com maior número de participantes era a pelada com uma bola de boracha no campo do União. Algumas meninas, recolhidas em seus quintais, preparavam saladas para as bonecas com capim e folhas recolhidas do jardim. Outras, advertidas pelos pais, preferiam o espaço quente das casas, onde a televisão ainda era uma raridade e os aparelhos de rádios, com os sucessos do momento, animavam boa parte dos moradores.
O café da tarde havia sido antecipado em alguma casa, de onde um forte cheiro de pipoca estourada na panela aproveitava o vento gelado e atiçava as lombrigas dos vizinhos. Num terreno cercado com tijolos, via-se, pouco distante, a fumaça cinza subindo e espalhando o gosto do pão caseiro. Faltavam ainda alguns minutos para às três horas da tarde.
Os adultos, sabedores das coisas da natureza de um jeito pessoal, ajuntavam os seus conhecimentos para apostar em suas previsões. O latejamento na cirurgia ou na fratura já consertada significava a ocorrência futura de um fenômeno. A direção do vento, de acordo com alguns, indicava uma geada muito forte.
Os meninos ainda brincavam quando a tarde nublada perdeu praticamente toda a claridade que restava. Dos portões, mães e irmãos mais velhos gritavam para os seus pequenos se recolherem. As lâmpadas dos postes de madeira permaneciam apagados, pois naquele tempo um operário da companhia de luz passava todos os fins de tarde pela ruas para acender, poste por poste, os tomates que davam pouca luminosidade nas noites sem lua.
O vento ficou mais forte e mesmo os mais corajosos correram para suas casas. Alguns esperavam uma tempestade. Ninguém sabia o que era uma geada negra. Mesmo que alguém soubesse, esperaria-se por ela na madrugada.
Havia naquele ano plaquetas de madeira anunciando candidatos para as eleições. Alguns eram recentes, outras vinha de outras campanhas eleitorais. Anúncios de frete gás de cozinha também ocupavam os locais públicos e os mais preferidos deles eram os postes de iluminação.
Da janela da casa de madeira velha da rua Juruá, Riuzim, após limpar com pano úmido o par de sapatos Vulcabrás, viu dona Janete, da rua vizinha, atravessando o campo de futebo, com um bambu. Gorda, com meias de lã até os joelhos e uma grossa blusa marrom, a mulher ajeitava o lenço amarrado à cabeça e caminhava apressada no meio da garoa que caia. Parecia não sentir frio e nem medo de andar sozinha naquela tarde que parecia noite.
Na rua de cima, Riuzim viu o que dona Janete fazia com o bambu. Um pedaço de trapo anrolado a uma das pontas protegia suas mãos, que seguravam a comprida vareta para bater nas plaquetas dos postes. A tentativa da mulher era de derrubar todas elas. Persistente, dona Janete não seguia ao outro poste enquanto não terminasse naquele onde estava aquilo que havia pego como uma missão.
Riuzim observou a tudo e, inocente na sua criancice, não entendia o que estava acontecendo. Chamou a mãe, Margarete, que abandonou por alguns minutos os óculos sobre o móvel da máquina de costura e foi de encontro ao filho, que espiava o movimento lá fora por uma fresta. Margarete puxou a janela de tábuas até abrir uma pequena abertura, suficiente para ver dona Janete derrubando as placas do poste em frente de sua casa. Dali ela foi levada para casa, quase que arrastada, lutando contra as pessoas que impediam a sua ação. Um furgão verde escuro, de um modelo ainda comum na época, foi usado para carregar a mulher, que foi empurrada pelas duas portas traseiras por onde eram colocadas as mercadorias transportadas.
De Margarete, Riuzim ouviu a explicação de que dona Janete tinha problema de cabeça. Com o frio e o vento a loucura havia se manifestado mais forte, por isso a mulher saiu às ruas, sob a garoa, para arrancar as plaquetinhas dos postes.
Naquele dia, o escuro da tarde se emendou ao da noite. Riuzim não sabe quando a geada negra se abateu sobre Londrina. Só anos mais tarde, já adolescente, ele soube que em 1975 a cafeicultura do Norte do Paraná foi dizimada pelo fenômeno. A consequência foi o êxodo rural. Cerca de 2,6 milhões de pessoas deixaram o campo a partir daquele ano por falta de emprego. Boa parte procurou ocupação como trabalhador rural temporário, na condição de bóia-fria. As lavouras de café foram trocadas pelo soja e pelo milho. A mão-de-obra rural perdeu suas vagas para as máquinas agrícolas.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 17

Os anos de 1980 a 1990 deixaram cicatrizes marcantes na vida de Margarete. Adoentada, a costureira ainda varava horas debruçada sobre a cabeça da máquina de costura, com uma pequena lâmpada a iluminar o ponto aonde a agulha penetraria no tecidos e fecharia uma peça. Vestidos, calças, camisas, blusas e bermudas passavam por ali, garantindo parte da renda da família. Os óculos de grau, presos ao pescoço por um córdão, acompanhavam a mulher até nos rápidos intervalos para um gole de café.
A economia brasileira atingia o seu ponto de estrangulamento. A inflação deixara de ser uma adversidade temporária e ganhara a característica de cultura nacional. O salário pago pelo empregador ontem, por exemplo, comprava muito menos se a visita ao mercado ficasse para amanhã. Nos corredores dos estabelecimentos comerciais, a presença do remarcador de preços, ao contrário de causar indignação, era vista com surpreendente normalidade pelos consumidores. Seria possível que, sem ele e sua máquina de remarcar, alguém suspeitasse de alguma irregularidade.
João Figueiredo, um general batizado João Baptista de Oliveira Figueiredo, fora colocado no poder no início dos anos de 1980 para dar um desfecho ao regime militar implantado no Brasil em 1964. Como emissário do sistema político predominante, o general tinha a missão de devolver o governo aos civís de acordo com um cronograma. Polêmico, ele ficou para a história como o presidente que preferia mais os cavalos do que as pessoas.
Junto com a devolução do poder, o general deixou na economia brasileira um rastro de desespero e pânico de toda a população com a alta dos preços e a desvalorização dos salários. Margarete sentia o impacto da economia nas compras dos aviamentos para as suas costuras. Um retrós de linha ou um zíper chegava a ter o preço dobrado da noite para o dia. Margarete, no entanto, era mais costureira do que negociante. Na hora de entregar as peças prontas para o freguês, este levava vantagem usando a pechincha mesmo após o argumento da costureira sobre o custo dos aviamentos.
O dinheiro recebido era gasto muito depressa nas aquisições básicas: arroz, feijão, batatinha, cebola, macarrão, farinha de trigo, óleo de soja eram comprados em picadinhos, de acordo com o dinheiro disponível.
Pressionado pelos políticos de oposição, pelos jornais e por uma ala progressista da Igreja Católica, o governo militar pouco ou nada fazia para conter a situação. Oportunistas aproveitavam a situação para enriquecer, aproveitando os olhos fechados das autoridades e a conivência das institui~ções financeiras. O comércio usava a inflação para anunciar suas campanhas promocionais. Agiotas ganhavam dinheiro com o sacrifício dos trabalhadores que, por um descontrole, perdiam as rédeas do orçamento e chegavam a uma condição insustentável de endividamente. Negociantes de carros usados aumentavam suas rendas da noite para o dia, supervalorizando os produtos que ofereciam.
A expectativa do fim do regime militar, com a devolução do poder aos civís, alimentava análises eufóricas por parte de alguns especialistas. O presidente que substituiria João Figueiredo não teria os votos da população. Ele seria escolhido por um colégio eleitoral. Coube ao mineiro Tancredo de Almeida Neves a missão de concorrer e ser eleito, tendo como o seu vice o político do Estado do Maranhão, José Ribamar Ferreira de Araújo Costa.
A escolha de Tancredo foi em janeiro de 1985, mas o presidente eleito adoeceu. Morto, o cargo foi dado ao seu vice, que anos antes, por capricho político, havia trocado o seu nome para José Sarney de Araújo Costa. A posse foi em março de 1985, com a hiperinflação levando o país à beira do desespero.
Entre a cozinha e a sala onde costurava, Margarete fazia o possível para manter as despensas da casa com estoque suficiente de comida. Em dias críticos, ela alimentou seus filhos, já adolescentes, com sanduíche de pão e mortadela. Apesar da precariedade, orgulhava-se de nunca ter deixado faltar alimento em casa.
Uma das medidas esperançosas do novo governo foi lançado meses após a posse. Denominado Plano Cruzado, determinada o congelamento geral dos preços por 12 meses e criou um mecanismo chamado gatilho salarial. Cada vez que a inflação subisse mais 20 por cento os salários seriam reajustados.
Pouco depois de implantada, a medida criou uma nova crise, a do abastecimento. Produtos como o óleo de soja e a carne desapareceram. Filas eram formadas nos mercados. O gado mantido no pasto para melhorar o preço da venda correu o risco de ser confiscado pelo governo. Entre o anúncio do confisco e a prática, apenas alguns poucos animais foram tomados de seus produtores e entregues para os frigoríficos.
O mercado clandestino ganhou força. Negociantes, à sombra da lei, abasteciam consumidores ávidos por compras com óleo de soja de preços majorados. Quem queria garantir o estoque em casa pagava mais. Quem não queria teve outra opção. Um consumidor de Curitiba fez surgir a figura do Fiscal de Sarney, ao decretar a prisão de um comerciante que ele flagrou reajustando preços.
Margarete, costureira de fregueses trabalhadores, viu estas crises passarem como tantas outras que já havia enfrentado. Os cabelos, amarrados em rabo, embranqueciam. Os graus das lentes dos óculos eram atualizados com mais frequência. As pernas já não apresentavam o vigor de antes e um motor acionado por pedal foi adaptado à máquina de costura.
Sem uma participação efetiva do marido na busca de soluções básicas para a economia da casa, Margarete recorria ao apoio dos filhos. Aqueles que já trabalhavam deixavam de lado os seus caprichos e entregavam todo o dinheiro dos salários para a mãe. Era a vitória de uma harmonia familiar respaldada na solidariedade entre os seus membros. Isso enchia os olhos de Margarete de lágrimas.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 16

Ademar de Barros era o governador do Estado de São Paulo, mas na distante Londrina, Margarete integrava o grupo de brasileiros que admiravam o político que por duas vezes comandou o governo paulista, foi deputado estadual e federal e também prefeito de São Paulo. Margarete nem tinha noção do termo usado para denominar os seguidores daquela autoridade: ademaristas. Mas sabia que ele era médico, aviador e empresário de uma indústria tradicional de chocolates.
Um dia, a campanha política trouxe Ademar de Barros para a casa de Margarete. No início da tarde, um grupo de pessoas procurou a casa velha de madeira e bateu palmas no portão. Era a equipe responsável pela organização de um comício, que percebendo uma placa de madeira na parede da frente com o nome do candidato para quem o evento seria realizado, não hesitou em pedir os favores: puxar a eletricidade para as luzes na carroceria de um caminhão e os dois microfones do sistema de som.
Margarete nem se preocupou com os gastos extraordinários com a energia elétrica. Cedeu a sua luz e recebeu a notícia de que além dos candidatos locais, viriam alguns políticos estaduais e um grande líder nacional, o governador Ademar de Barros, de São Paulo. A moradia simples de Margarete seria usada para um descanso das autoridades, informaram os organizadores.
Para Margarete a notícia não poderia ser melhor. Numa época em que só o rádio chegava às diferentes localidades do país, o que se conhecia num lar modesto como o de Margarete era que o político paulista era um salvador da pátria. Raramente um exemplar velho da revista O Cruzeiro, com algumas informações sobre a política nacional, incluindo a de São Paulo, chegava às pessoas de menor poder aquisitivo. A carência de informações alimentava um sistema, que era benéfico aos poderosos.
Margarete não sabia que em 1941 Ademar de Barros fora acusado de corrupção, tendo como uma das pessoas a lhe apontar o dedo nada menos que o presidente Getúlio Vargas. E se soubesse, provavelmente Margarete relevaria o fato. Também não sabia que em 1940 Ademar de Barros foi destaque com uma medida às avessas da democracia, quando confiscou o jornal O Estado de São Paulo. Se soubesse, Margarete provavelmente diria que o político tinha razão.
A rua Juruá, na Vila Nova, tinha ainda postes de madeira e neles os candidatos pregavam as suas plaquetinhas com propaganda eleitoral. A poeira em dias de sol era aceita com normalidade pelos moradores. Mas a lama, após as chuvas, geravam muitas queixas, principalmente das mocinhas que iam trabalhar em outros bairros.
Bem ali, no poste em frente à casa de Margarete, que o caminhão do comício estacionou por volta das cinco da tarde. Alguns operários trataram de ajeitar a cobertura de lona, enquanto os outros penduravam as bandeirolas com as fotos dos candidatos. A fiação foi puxada e os testes com as luzes deram positivo. Os alto-falantes, estridentes, começaram a despejar jingles em seguida, trocando a monotonia do bairro por um fim de dia barulhento.
As crianças trocaram o jogo de bola pela algazarra nas proximidades do caminhão. As adolescentes iniciaram um footing, fazendo um vaivém com as chinelas empoeiradas pela rua. Às sete da noite de um mês de setembro, dia do inverno de temperatura amena, o clima em frente à casa de Margarete já era de festa. Ela preparou um prato de bolachas sortidas e deixou no jeito um café para oferecer aos políticos.
Faltava pouco para às oito horas da noite quando a comitiva chegou. Um carro preto, placa oficial, parou e dele desceram cinco engravatados. Conduzidos para a casa de Margarete pelos assessores, as autoridades usaram a privada do fim do quintal para as necessidades e sobre o chão de cimento bruto da cozinha tomaram café e experimentaram bolachas.
Lá fora, músicas e gritarias, que foram interrompidas quando os políticos pisaram no palco improvisado na carroceria do caminhão. Margarete sentiu-se realizada. Era a sua participação na política que se concretizava. Semanas adiante ela compareceria nas urnas para votor. O voto feminino, instituído em 1932, ainda era recente no Brasil.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 15

Ana Cristina havia completado os 42 anos de idade fazia menos de um mês. A pele morena e o sangue mestiço eram fiéis aliadas da mulher, que casou quando tinha apenas 17 anos e era mãe de duas moças. Magra, alta e jovial, ela formava com as filhas um trio de mulheres atraentes e belas.
Mineira, Ana Cristina chegou ao Norte do Paraná ainda menina. O rosto denunciava traços caboclos, com forte presença indígena nos olhos e nos lábios carnudos. O nariz, pequeno e delicado, tinha na ponta arredondada a mais evidente manifestação de uma mistura forte, carregada também pelo negro. Os cabelos crespos desciam até os ombros e mereciam, de vez em quando, uma sessão de escova. Lisos, eles davam à mulher uma aparência exótica.
O pai de Ana Cristina escolheu a terra roxa de Londrina assanhado pela fase de ouro do café. O desfecho de um processo de herança permitiu a ele a compra de um sítio de 12 alqueires no distrito de Guaravera, onde uma área de seis alqueires já estava com a cultura. O resto servia de área de preservação, pastagem, hortaliças e pomar. O milho, mais para o consumo da própria família e para os animais, ocupava quase dois alqueires. O feijão também tinha um pequeno espaço, que não chegava a dois hectares mas dava colheita, em ano bom, para o consumo de quatro meses.
Oito pessoas moravam na casa-sede da propriedade rural, construída em madeira. Ana Cristina tinha uma irmã, com quem repartia um pequeno quarto, e quatro irmãos, que ocupavam duas beliches num cômodo maior. O pai e a mãe ficavam com o quarto da frente, cuja janela dava para a estrada, ali bem distante, porém visível em dia claro. Por ali passavam os caminhões, ônibus e os pequenos veículos com destino a Curitiba.
Um barracão, cerca de vinte metros à esquerda da casa, era usado como tulha e despensa. Rente à porta eram guardados os enxadões, os rastelos, as vassouras e as caixas de ferramentas, com martelos, alicates, chaves de fenda e pé de cabra. Ali, quando menina, Ana Cristina e a irmã, Maria Selene, brincaram de bonecas de pano. Nem a ameaça da doença de Chagas, devido à presença do bicho-barbeiro, punha rédeas nas crianças, que abusavam do perigo durante a diversão.
Ana Cristina estudou até o então quarto ano primário em uma escola rural próxima. O ginásio foi feito em Londrina, graças a uma perua Kombi que transportava os escolares todos os dias, só deixando de carregar as crianças em dias de chuva muito forte e estrada intransitável por causa da lama. Com 16 anos Ana Cristina chegou ao curso colegial, quando o contato com a cidade já interferia no comportamento de uma adolescente ansiosa por novidades.
Foi quando ela conheceu Jorge Cervantes, 23 anos, membro de uma religião evangélica e escriturário de um cartório de registro. O namoro correu a uma velocidade apressada e um ano depois Ana Cristina e Jorge estavam noivos. Ana era católica e seguia uma tradição familiar rigorosa. A fé, diferente, criou alguns impasses entre os parentes dele e dela, mas nada que o bom-senso do pais da moça não pudessem contornar. Uma gravidez precipitada agilizou a união dos adolescentes no civil, ficando o casamento religioso em aberto, devido à intransigência das duas igrejas.
Ana Cristina teve Amanda Maria primeiro. Um bebê que pelos traços cresceria morena, como a mãe, de olhos pretos, porém cabelos lisos. Dois anos depois Ana Cristina teve Elisângela, uma loira, de olhos muito mais azuis que o do pai.
As meninas já estavam com cinco e três anos de idade quando Ana Cristina fez, pela primeira vez, a sua influência prevalecer sobre o marido. Convenceu-o a se tornar um católico, aproveitando que Jorge, nos últimos anos, havia deixado de ser um membro assíduo da sua religião. Não demorou muito e Jorge, participante ativo das atividades da paróquia, não se sabe se por vontade própria ou para contentar a esposa, tornou-se um ministro.
Mais um tempo se passou e Ana Cristina jogou a sua segunda carta. Na época, o distrito de Guaravera, a pouco mais de 40 quilômetros de Londrina, já não podia ser considerado um lugar monótomo e sem vida, apesar do declínio da cafeicultura e da entrada da monocultura no lugar. Mas Ana Cristina queria contemplar a sua necessidade de ser urbana, vivendo numa quase metrópole. Por isso convenceu o marido a deixar o sítio nas mãos de agregados e comprar uma casa em um bairro de Londrina. Jorge cedeu mais uma vez.
Sem a presença do proprietário, o sítio, antes administrável, começou a ser apenas mantido. Ana Cristina aproveitou a mudança e prosseguiu os estudos. Passou no vestibular em pedagogia e adquiriu mais vontade ainda de ser uma mulher urbana. Frequentava os salões de beleza todas as semanas, alisando os cabelos e fazendo as unhas. As roupas, sempre bem caídas e compradas em lojas de melhor padrão ajudavam a fazer dela uma pessoa admirada. Os olhares masculinos constrangiam Jorge a caminho da paróquia do bairro onde moravam.
Ana Cristina jurava amor a Jorge. Mas um dia apareceu Riuzim, para quem ela continuou jurando amor a Jorge, recorrendo a uma indiferença em relação ao novo personagem que, que no entanto mais aproximava. Um dia Riuzim se declarou. Ana Cristina vacilou, mas não mostrou segurança na sua recusa. E ambos se envolveram numa relação que foi desenrolada em cima de uma estrada de muitas curvas e ondulações, por um tempo interminável e uma necessidade cada vez maior de que os sentimentos entre ambos se eternizasse, apesar dos conflitos e destemperos presentes no livro do passado dos dois.
Ana Cristina e Riuzim apostavam que o livro jamais seria aberto, pois haviam decidido cunhar a mais dura madeira para viverem sempre juntos. Não previam que rachaduras poderiam acabar com sonhos e projetos. Ela deixou Jorge Cervantes e não se contentou com Riuzim. Fez o seu plano de vida longe dos dois homens que imaginou, por algum momento da vida, ter amado.