segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 21

A calça de brim azul marinho havia perdido a cor original. O tempo de uso e as lavagens a mão, com sabão forte feito em casa, deram à peça um aspecto de pano velho e desbotado. Uma coloração clara e arroxeada ainda predominava logo após o ferro de passar esquentado a carvão alinha as costuras das pernas e marcava o vinco. A calça tinha pregas e bolsos sociais.
Alguns minutos de uso eram suficientes para as deformidades aparecerem. No corpo magro e pequeno de Riuzim, o brim mole ficava desajeitado, transformando-se numa grande bombacha. O roxo misturava-se com o marrom da poeira, originando um furtacor que variava de acordo com a intensidade do sol.
O tergal era o tecido da moda para a confecção de calças. Propagandas de rádio anunciavam a vantagem do pano, de não amarrotar e nem perder os vincos. Os meninos de famílias mais abastadas davam-se ao luxo de frequentar as aulas com modelos diferenciados. Alguns ousavam comparecer na escola com as bocas de sino arrastando no chão. Os passadores eram largos e apropriados para cinturões de fivelas enormes. As pregas eram eliminadas e a tendência do momento ajustava as calças até a altura dos joelhos. Nada proibia aquele tipo de roupa, mas dona Aurora, a inspetora de alunos do Vicente Rijo, seguia a determinação da direção do estabelecimento de ensino e implicava com os alunos que se entregavam à moda. Dona Aurora era perseguidora implacável de Riuzim, não por causa da boca de sino e do passador largo. É que a calça velha de Riuzim, justificava secamente a inspetora, era roxa, e não azul marinho.
As meninas usavam saias plissadas, também azuis. As peças normalmente eram de tergal, pois o brim complicaria a passagem a ferro e desmancharia as preguinhas milimetricamente costuradas. Não havia, portanto, muitas implicâncias com as meninas, pois o pano demorava mais para perder a cor. Mas dona Aurora, fiel à direção do colégio, ficava de olho no comprimento das saias. Espertas, as alunas contentavam-se com os modelos abaixo dos joelhos. Mas fora dos muros do Vicente Rijo, na ida e no retorno da escola, elas enrolavam o cós e faziam das suas peças do uniforme atraentes minissaias, que ganhavam mais destaque ainda com o branco das meias enroladas até os tornozelos e embutidas nos sapatos pretos de amarrar.
Joelhos de fora e boca de sino nem sempre bastavam para a velha senhora. Dona Aurora era rigorosa com os cabelos longos dos meninos e as unhas esmaltadas das meninas. Não havia um parâmetro para as jubas da molecada. Para os que usavam cortes tradicionais, bastava alguns fiapos cobrindo as orelhas para dona Aurora implicar. Os que optavam por cabeleiras modernas, típicas nas cabeças dos cantores da época, eram analisados com benevolência desde que o artista copiado fosse da música popular. Havia os que se inspiravam nos roqueiros e estes eram rigorosamente perseguidos pela inspetora.
As unhas das mãos femininas tinham que ter esmaltes discretos. Cores vivas eram condenadas. Uma aluna com pintura vermelha na unha era motivo de muitos comentários. Até professores costumavam gastar os seus intervalos para lanche em conversas nada interessantes sobre a maquiagem leve no contorno dos olhos de alguém. Com a cara exageradamente pintada a aluna não passava pelo portão da escola.
Foi numa tarde de quinta-feira, após o intervalo, que a inspetora implicou mais uma vez com a cor da calça de Riuzim. Fez uma espécie de ultimato: amanhã não entra. Naquele dia o menino voltou cabisbaixo para casa. Interrogado pela mãe, disse que não poderia assistir aulas no dia seguinte por causa da cor da calça de brim. Em silêncio, Margarete foi até o quarto, onde tirou de um armário um de algodão com roupas velhas.
Uma calça descartada de seu Francisco era o que ela procurava. Feito de casimira, a peça ficara pequena na cintura e fora guardada apenas para se planejar nela um alargamento. Diante, porém, de uma situação de emergência, Margarete resolveu desmanchar a calça, que foi cortada para Riuzim. O modelo concebido foi de acordo com o tamanho do tecido. Sem pregas, de bolsos por fora e uma boca de sino leve, quase reta, cairam bem no menino.
Na sexta-feira, após uma chuva no fim da madrugada até o início da manhã, Riuzim tornou-se elegante com a calça azul marinha de casimira. Apesar de justa, dona Aurora não implicou. Para surpresa de Riuzim, despachou-lhe um elogio. Naquele dia o menino não brincou de bola com os colegas após o sinal de saída. Nem participou das correrias pelas calçadas da avenida Higienópolis durante o caminho de retorno para casa. Cuidou-se o quanto pode para não sujar a calça nova.
Após subir a Higienópolis, Riuzim desceu trecho da rua Paraíba até a Quintino, de onde entrou pela Belo Horizonte, no sentido do antigo Samdu.
Ali atravessaria a linha férrea e tomaria o rumo da rua Araguaia. Escorregadio em dia de chuva, o barranco abaixo do Samdu foi matreiro com o menino. A perna direita, com os pés calçados num Vulcabrás de salto gasto, escorregou para a frente, fazendo a perna direita dobrar-se. A ginástica resultou num barulho de pano arrebentado e um rasgo, que pegou dos fundilhos até a metade da bunda, bem rente à custura do cavalo da calça.
Riuzim completou o trajeto até em casa com a bolsa segura pelas duas mãos, na altura da bunda. Foi para esconder o rasgo, que Margarete ziguezagueou com capricho dobrado, de forma a permitir que seu filho, na semana seguinte, pudesse frequentar as aulas.

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