quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 17

Os anos de 1980 a 1990 deixaram cicatrizes marcantes na vida de Margarete. Adoentada, a costureira ainda varava horas debruçada sobre a cabeça da máquina de costura, com uma pequena lâmpada a iluminar o ponto aonde a agulha penetraria no tecidos e fecharia uma peça. Vestidos, calças, camisas, blusas e bermudas passavam por ali, garantindo parte da renda da família. Os óculos de grau, presos ao pescoço por um córdão, acompanhavam a mulher até nos rápidos intervalos para um gole de café.
A economia brasileira atingia o seu ponto de estrangulamento. A inflação deixara de ser uma adversidade temporária e ganhara a característica de cultura nacional. O salário pago pelo empregador ontem, por exemplo, comprava muito menos se a visita ao mercado ficasse para amanhã. Nos corredores dos estabelecimentos comerciais, a presença do remarcador de preços, ao contrário de causar indignação, era vista com surpreendente normalidade pelos consumidores. Seria possível que, sem ele e sua máquina de remarcar, alguém suspeitasse de alguma irregularidade.
João Figueiredo, um general batizado João Baptista de Oliveira Figueiredo, fora colocado no poder no início dos anos de 1980 para dar um desfecho ao regime militar implantado no Brasil em 1964. Como emissário do sistema político predominante, o general tinha a missão de devolver o governo aos civís de acordo com um cronograma. Polêmico, ele ficou para a história como o presidente que preferia mais os cavalos do que as pessoas.
Junto com a devolução do poder, o general deixou na economia brasileira um rastro de desespero e pânico de toda a população com a alta dos preços e a desvalorização dos salários. Margarete sentia o impacto da economia nas compras dos aviamentos para as suas costuras. Um retrós de linha ou um zíper chegava a ter o preço dobrado da noite para o dia. Margarete, no entanto, era mais costureira do que negociante. Na hora de entregar as peças prontas para o freguês, este levava vantagem usando a pechincha mesmo após o argumento da costureira sobre o custo dos aviamentos.
O dinheiro recebido era gasto muito depressa nas aquisições básicas: arroz, feijão, batatinha, cebola, macarrão, farinha de trigo, óleo de soja eram comprados em picadinhos, de acordo com o dinheiro disponível.
Pressionado pelos políticos de oposição, pelos jornais e por uma ala progressista da Igreja Católica, o governo militar pouco ou nada fazia para conter a situação. Oportunistas aproveitavam a situação para enriquecer, aproveitando os olhos fechados das autoridades e a conivência das institui~ções financeiras. O comércio usava a inflação para anunciar suas campanhas promocionais. Agiotas ganhavam dinheiro com o sacrifício dos trabalhadores que, por um descontrole, perdiam as rédeas do orçamento e chegavam a uma condição insustentável de endividamente. Negociantes de carros usados aumentavam suas rendas da noite para o dia, supervalorizando os produtos que ofereciam.
A expectativa do fim do regime militar, com a devolução do poder aos civís, alimentava análises eufóricas por parte de alguns especialistas. O presidente que substituiria João Figueiredo não teria os votos da população. Ele seria escolhido por um colégio eleitoral. Coube ao mineiro Tancredo de Almeida Neves a missão de concorrer e ser eleito, tendo como o seu vice o político do Estado do Maranhão, José Ribamar Ferreira de Araújo Costa.
A escolha de Tancredo foi em janeiro de 1985, mas o presidente eleito adoeceu. Morto, o cargo foi dado ao seu vice, que anos antes, por capricho político, havia trocado o seu nome para José Sarney de Araújo Costa. A posse foi em março de 1985, com a hiperinflação levando o país à beira do desespero.
Entre a cozinha e a sala onde costurava, Margarete fazia o possível para manter as despensas da casa com estoque suficiente de comida. Em dias críticos, ela alimentou seus filhos, já adolescentes, com sanduíche de pão e mortadela. Apesar da precariedade, orgulhava-se de nunca ter deixado faltar alimento em casa.
Uma das medidas esperançosas do novo governo foi lançado meses após a posse. Denominado Plano Cruzado, determinada o congelamento geral dos preços por 12 meses e criou um mecanismo chamado gatilho salarial. Cada vez que a inflação subisse mais 20 por cento os salários seriam reajustados.
Pouco depois de implantada, a medida criou uma nova crise, a do abastecimento. Produtos como o óleo de soja e a carne desapareceram. Filas eram formadas nos mercados. O gado mantido no pasto para melhorar o preço da venda correu o risco de ser confiscado pelo governo. Entre o anúncio do confisco e a prática, apenas alguns poucos animais foram tomados de seus produtores e entregues para os frigoríficos.
O mercado clandestino ganhou força. Negociantes, à sombra da lei, abasteciam consumidores ávidos por compras com óleo de soja de preços majorados. Quem queria garantir o estoque em casa pagava mais. Quem não queria teve outra opção. Um consumidor de Curitiba fez surgir a figura do Fiscal de Sarney, ao decretar a prisão de um comerciante que ele flagrou reajustando preços.
Margarete, costureira de fregueses trabalhadores, viu estas crises passarem como tantas outras que já havia enfrentado. Os cabelos, amarrados em rabo, embranqueciam. Os graus das lentes dos óculos eram atualizados com mais frequência. As pernas já não apresentavam o vigor de antes e um motor acionado por pedal foi adaptado à máquina de costura.
Sem uma participação efetiva do marido na busca de soluções básicas para a economia da casa, Margarete recorria ao apoio dos filhos. Aqueles que já trabalhavam deixavam de lado os seus caprichos e entregavam todo o dinheiro dos salários para a mãe. Era a vitória de uma harmonia familiar respaldada na solidariedade entre os seus membros. Isso enchia os olhos de Margarete de lágrimas.

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