segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 18

A tarde de 18 de junho de 1975 pareceu noite para as meninas e os meninos da Vila Nova. Fazia frio, mas após as aulas do matutino, alguns escolares foram às ruas brincar já com as tarefas passadas pelas professores do Grupo Escolar Nilo Peçanha, na rua Araguaia, cumpridas.
A terra estava batida, sem poeira e sem barro, no ponto ideal para algumas brincadeiras como o carrinho de rolimã e a bolinha de vidro. O tempo nublado inibia a tentativa de soltar pipa e a opção com maior número de participantes era a pelada com uma bola de boracha no campo do União. Algumas meninas, recolhidas em seus quintais, preparavam saladas para as bonecas com capim e folhas recolhidas do jardim. Outras, advertidas pelos pais, preferiam o espaço quente das casas, onde a televisão ainda era uma raridade e os aparelhos de rádios, com os sucessos do momento, animavam boa parte dos moradores.
O café da tarde havia sido antecipado em alguma casa, de onde um forte cheiro de pipoca estourada na panela aproveitava o vento gelado e atiçava as lombrigas dos vizinhos. Num terreno cercado com tijolos, via-se, pouco distante, a fumaça cinza subindo e espalhando o gosto do pão caseiro. Faltavam ainda alguns minutos para às três horas da tarde.
Os adultos, sabedores das coisas da natureza de um jeito pessoal, ajuntavam os seus conhecimentos para apostar em suas previsões. O latejamento na cirurgia ou na fratura já consertada significava a ocorrência futura de um fenômeno. A direção do vento, de acordo com alguns, indicava uma geada muito forte.
Os meninos ainda brincavam quando a tarde nublada perdeu praticamente toda a claridade que restava. Dos portões, mães e irmãos mais velhos gritavam para os seus pequenos se recolherem. As lâmpadas dos postes de madeira permaneciam apagados, pois naquele tempo um operário da companhia de luz passava todos os fins de tarde pela ruas para acender, poste por poste, os tomates que davam pouca luminosidade nas noites sem lua.
O vento ficou mais forte e mesmo os mais corajosos correram para suas casas. Alguns esperavam uma tempestade. Ninguém sabia o que era uma geada negra. Mesmo que alguém soubesse, esperaria-se por ela na madrugada.
Havia naquele ano plaquetas de madeira anunciando candidatos para as eleições. Alguns eram recentes, outras vinha de outras campanhas eleitorais. Anúncios de frete gás de cozinha também ocupavam os locais públicos e os mais preferidos deles eram os postes de iluminação.
Da janela da casa de madeira velha da rua Juruá, Riuzim, após limpar com pano úmido o par de sapatos Vulcabrás, viu dona Janete, da rua vizinha, atravessando o campo de futebo, com um bambu. Gorda, com meias de lã até os joelhos e uma grossa blusa marrom, a mulher ajeitava o lenço amarrado à cabeça e caminhava apressada no meio da garoa que caia. Parecia não sentir frio e nem medo de andar sozinha naquela tarde que parecia noite.
Na rua de cima, Riuzim viu o que dona Janete fazia com o bambu. Um pedaço de trapo anrolado a uma das pontas protegia suas mãos, que seguravam a comprida vareta para bater nas plaquetas dos postes. A tentativa da mulher era de derrubar todas elas. Persistente, dona Janete não seguia ao outro poste enquanto não terminasse naquele onde estava aquilo que havia pego como uma missão.
Riuzim observou a tudo e, inocente na sua criancice, não entendia o que estava acontecendo. Chamou a mãe, Margarete, que abandonou por alguns minutos os óculos sobre o móvel da máquina de costura e foi de encontro ao filho, que espiava o movimento lá fora por uma fresta. Margarete puxou a janela de tábuas até abrir uma pequena abertura, suficiente para ver dona Janete derrubando as placas do poste em frente de sua casa. Dali ela foi levada para casa, quase que arrastada, lutando contra as pessoas que impediam a sua ação. Um furgão verde escuro, de um modelo ainda comum na época, foi usado para carregar a mulher, que foi empurrada pelas duas portas traseiras por onde eram colocadas as mercadorias transportadas.
De Margarete, Riuzim ouviu a explicação de que dona Janete tinha problema de cabeça. Com o frio e o vento a loucura havia se manifestado mais forte, por isso a mulher saiu às ruas, sob a garoa, para arrancar as plaquetinhas dos postes.
Naquele dia, o escuro da tarde se emendou ao da noite. Riuzim não sabe quando a geada negra se abateu sobre Londrina. Só anos mais tarde, já adolescente, ele soube que em 1975 a cafeicultura do Norte do Paraná foi dizimada pelo fenômeno. A consequência foi o êxodo rural. Cerca de 2,6 milhões de pessoas deixaram o campo a partir daquele ano por falta de emprego. Boa parte procurou ocupação como trabalhador rural temporário, na condição de bóia-fria. As lavouras de café foram trocadas pelo soja e pelo milho. A mão-de-obra rural perdeu suas vagas para as máquinas agrícolas.

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