segunda-feira, 27 de abril de 2009

Conto - Destempero

Anderson atravessou o Calçadão de Londrina, de ponta a ponta, sem enxergar o começo e o fim. No fim da tarde de março, o bancário havia acumulado durante o dia acontecimentos infelizes.
Atendente do setor de abertura de conta corrente, ele chegou ao serviço às dez e meia. Usou os minutos que faltavam para assumir o seu posto apresentando aos colegas o balanço do fim de semana. Ironizou torcedores de times adversários que perderam jogos e pontos nos campeonatos que entopem os canais abertos de televisão aos domingos.
Depois, ainda sonolento, ouviu do primeiro cliente que atendeu uma queixa. O tipo se deu à ousadia de perguntar se o bancário não havia dormido, pois estava mole e disperso no manuseio dos documentos e do computador. Do segundo cliente recebeu uma negativa. O sujeito disse um não seco quando consultado se queria fazer um seguro de vida. O terceiro o tratou com ironia por causa de um procedimento aguardado para a semana passada, mas que nem havia saído da gaveta de Anderson para os encaminhamentos necessários. O quarto provocou a categoria. Vociferou que funcionário público é tudo uma merda.
Venceu o primeiro turno e Anderson foi para o almoço. Já de cara ouviu a voz fina da pedinte que todos os dias implorava uma comidinha. Percebeu encostado ao lado da porta da loja de departamentos o sanfoneiro que às vezes admirava. Mas daquela vez sentiu raiva, não do sanfoneiro, mas dele mesmo, porque não conseguiu identificar a canção que o homem executava no seu instrumento rouco de tanta poeira.
A meia quadra do restaurante foi batizado por um pombo, que deixou a marca marrom e verde da bosta na manga esquerda da camisa azul clara. Na fila do self service pensou entrar em conflito com um freguês, que não se poupava aos bons modos e resolveu comentar futebol em cima do arroz e do feijão. Encrencou com o garçon porque pediu um suco de laranja e recebeu um refrigerante. Reclamou do caixa porque o funcionário do estabelecimento perguntou se não tinha mais trocado.
No caminho de volta, pisou numa pedra solta do Calçadão e raspou o verniz do sapato direito. Na travessia da faixa quase foi atropelado por um motociclista. Na entrada do banco esqueceu o celular no bolso e foi barrado pela porta giratória.
Então o bancário decidiu que não era o dia. Resolveu fazer corpo mole e recebeu, às três e quarenta, minutos antes de encerrar o expediente, uma carta de advertência. Saiu da agência sem se despedir de ninguém. Chegou em casa sem ver nada do que acontecia em volta. Dormiu sem tomar banho e nem teve tempo para sonhar.

Crônica - Cheiro do outono

Eu me pego nostálgico nestas tardes de abril e não sei ao certo se é pela proximidade de maio ou por ser outono. Maio por me colocar mais perto da velhice. O outono por me devolver a infância.
Veja que, tão contraditória quanto a vida, as sensações que nos dominam também ocupam extremos opostos. Da mesma forma, às vezes os pólos se juntam e colocam dois tempos num mesmo momento: eu quero ser criança para sentir o cheiro do outono, mas preciso viver mais um mês de nascimento para perceber que estou vivo e pronto para recapitular, a todo o instante que me der vontade, os maios das diferentes fases da vida.
É provável que isto ocorra por vigorar nesta época a possibilidade de se enfrentar as diferenças de uma hora para outra. Por isso maio e outono são interessantes.
Às seis, por exemplo, no despertar, o corpo treme de frio e as mãos buscam a coberta, movidas pela preguiça de acordar, ver, pensar, planejar e ir adiante. Às nove o sol já venceu a sua batalha e se impôs, dominante, quebrando a frieza do dia. Às doze, o calor acompanha o almoço e queima a pele enrugada, forçando um bronzeado falso e de nenhum charme. Às quinze os termômetros relutam, mas descem os seus mercúrios numa vagarosidade de testar paciências.
Assim, de três em três horas chega-se às dezoito. Em clima de estiagem, dá-se nesse momento o encontro da luz e da sombra, chamando um anoitecer que estica-se ainda quente até lá pelas vinte e uma, mas rende-se ao frescor da penumbra até, no máximo, à meia-noite.
Salvo engano, mas é às dezoito que as principais contradições se enfileiram no mesmo espaço e tempo. O inverno de pouco frio do Norte do Paraná invoca nesta hora a preocupação: que blusa eu visto? Mas ainda estamos no outono, nos últimos dias de abril, e tenho maio pela frente.
Por enquanto, desprezo a busca no armário para desengavetar blusas e meias de lã. Mas remexo a memória quando uma queimada de fim de tarde levanta um cheiro de eucalipto queimado. Então eu lembro da minha casa velha de madeira muito mais velha ainda na Vila Nova, em Londrina, onde um fogão de lenha aquecia o jantar preparado pela minha mãe. Sinto vontade de ser criança, às vésperas de completar mais um ano de vida, data que eu aguardo também com ansiedade para fugir deste tempo que só me faz lembrar o passado e esperar o futuro.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Conto - Os sapatos pretos

Há oito meses eles deixaram a banca de promoção de uma loja de preço popular. Tudo por R$ 19,90. Era o que anunciava o cartaz colado na parede do estabelecimento. A vendedora disse ao comprador que o par de sapatos pretos era de couro. De cadarços pretos e sola de borracha, os sapatos pretos pareciam realmente artigos de primeira. O couro sintético era perfeito na imitação. O forro, bem assentado, dava a impressão de um bom acabamento. Em cada pé, abaixo dos furos por onda passavam o cordão, na lateral externa, uma pequena fivela dourada encarregava-se de cumprir o papel de uma etiqueta sofisticada.
O produto foi pago à vista. A caixa que o acondicionou era branca, de papelão mole, com apenas uma etiquetae indicando o número e o nome do fabricante. O comprador não se importou com esse detalhe. Ele havia visto numa loja vizinha sapator parecidos: pontas quadradas, costura moldando os peitos dos pés, fivelinha, cadarço e o borrachão, inteiriço, já com o salto conjugado. A diferença gritante estava no preço: o par saia por R$ 79,90 na promoção. Ali também a moça garantiu que o produto era de couro legítimo.
O comprador tinha a mania de cheirar os sapatos que comprava. O artigo de R$ 19,90 tinha, conforme ele se recorda, mais cheiro de cola do que de couro. Diferente daquele de R$ 79,90. Pelo cheiro, parecia que o boizinho estava ali, dando forma no artigo. Mas com tanta diferença no preço seria muito exigir que o boizinho do R$ 19,90 tivesse qualquer cheiro. Além do mais, R$ 19,90 ele pagaria de uma só vez. Já os R$ 79,90 exigiriam um parcelamento de até cinco vezes.
Tem também que os sapatos pretos de R$ 19,90 não foram comprados para uso imediato. Aproveitou-se a promoção. O par ficou guardado embaixo da cama, no lado onde o comprador dorme. Por uns três meses os sapatos pretos ficaram dentro da caixa. Com o tempo a caixa se foi. Virou um papepão disforme, com risco de danificar o par, quando deveria conservá-lo. Então os sapatos pretos ficaram enfileirados, lado a lado, o pé esquerdo no lado esquerdo e o pé direito no lado direito, como realmente deveria ser. O comprador havia decidido guardar o par para uma ocasião especial.
Eis que chegou o dia, a festa de confraternização da empresa onde trabalhava, em comemoração aos 27 anos de fundação do empreendimento. O comprador dos sapatos pretos tirou do armário a calça jeans, também nova, que pagou R$ 25,90. Da mesma compra aproveitou a camisa pólo de R$ 17,90. Banhou-se, penteou-se e perfumou-se. Encapou-se com a leveza de um astro diante de uma câmera, vestindo a calça, colocando a camisa por dentro e ajeitando até as canelas as meias azuis. Usou um cinto preto, para combinar, fazer par e se alinhar com elegância que nos dias comuns era impossível manter.
Sentado na beira da cama, o comprador calçou o pé esquerdo primeiro, como era de hábito. O pé ficou um tanto frouxo, mas o cadarço, esticado ao limite, eliminou a diferença. O direito é que foi o problema: por descuido na hora de comprar o pé que veio era 40, um a mais que o esquerdo, já com folga suficiente.
Mais com raiva dele próprio pela compra errada, o comprador foi à festa de confraternização com os sapatos marrons, sem cardarço, de camurça manchada e salto entortado pelo uso. Os sapatos pretos, que até aquele dia ficaram sob a cama, debaixo da cabeceira, ganharam um lugar na área de serviços, sob o tanque de lavar roupas, bem onde uma goteira umidecia o chão.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Conto - Vazio

As pessoas me irritam. As vozes delas me incomodam. O que elas falam me endoidecem. O jeito com que elas me olham me tira do sério. Alguém tentou me alertar na manhã de hoje. Usou até de suavidade para dizer que eu tinha problemas. Primeiro me rodeou, fez ensaios, falou do bom gosto do café que tomava no balcão da padaria, reclamou do clima quente da hora do almoço e chegou no ponto ainda de leve. Disse que meus olhos estavam esbugalhados, com as partes brancas avermelhadas, parecendo vidros saltados para fora das pálpebras.
Eu que já estava descontrolado ainda apertei as unhas na palma das mãos. Três delas perfuraram a pele grossa e áspera. Arrancaram sangue que sequei no brim desbotado do jeans. E a coxa da calça guardou a mancha escura, mais preta do que vermelha, parecendo um coágulo desenhado com um pincel de artista de fundo de quintal.
Era para eu fazer de conta que não havia entendido o alerta. Ficar rodeando, do tipo "de que você está falando", ou, "sempre que acordo antes das seis me dá isso, do olho ficar ardendo e saltando". Era para ficar por ai, mas liberei o bom modo e prossegui, dizendo que a situação piora "quando acordo cedo, com os olhos ardendos e um merda fica me enchendo o saco na minha frente logo que saio às ruas".
O cara se segurou de início, mas não se conteve e alfinetou que o que eu tinha passava de estresse, já caracterizava loucura. Isso ele podia poupar, mas admito que eu provoquei quando gritei que o nariz dele, pelo formato, parecia pedir um punho fechado carcado com uma direta.
Foi quando a xícara de café voou. Foi de quina e bateu de boca no canto do forro do lugar, repicou para a direita, alisou de raspão a parede descascada atrás do balcão, assustou a mulher que esquentava o pão do cliente postado na frente do mostruário de doce de leite e paçoca, tilintou no bico da chaleira torta e se espamarrou no piso de cerâmica cobrindo de cacos o estreito corredor onde os atendentes corriam com copos de leite e suco para servir os comilões.
Foi café para todo o lado. Na blusa branca da mulher de calça preta, no cabelo alisado da morena pintada de ruiva, na meia cinza do idoso de bermuda verde, no pão com mortadela do porteiro do edifício em frente que aproveitou uma folga para matar a fome e no pacote de biscoito que a colegial mal havia pago no caixa do estabelecimento.
A estas alturas eu já estava longe, a cena que descrevo me contaram muito depois. Eu lembro que a mão dele veio ligeira, sem tempo para defesa, e estatelou na minha cara. Dei no pé, sei lá com que cara, e fui provocar outro, nove quadras adiante, porque aquele dia acordei para irritar to mesmo tamanho que os outros me incomodavam. Doeu sim.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Conto - Sintomas

A boca seca ao despertar foi o sinal. A língua pareceu mais áspera que o habitual. Um bochecho com água da torneira arrancou um gosto de nada, cuspido automaticamente enquanto as mãos umideciam a nuca. Tentativa inútil de aliviar a quentura da pele e a zoeira que fazia as pernas estremecerem.
Da janela, o quadro que se pôs em frente foi o de um dia nublado. Ao longe, à esquerda, os prédios à margem do lago suscitaram pensamentos inúteis. Quantos corações se partiram durante a madrugada? O que se deixou para trás? Projetos inacabados, corações amargurados e a vã possibilidade de seguir adiante, quando a vontade é de voltar.
Alice procurou o par de sandálias de tiras com os pés, sob o sofá atulhado de almofadas deformadas. Numa delas, o formato do rosto, depositado lateralmente na peça, permaneceu até a manhã, denunciando uma madrugada de cabeça pesada e falta de sono. O controle da tevê apareceu distante, caido num canto da sala. Dois jornais de edições passadas acumulavam nas páginas abertas migalhas de pão e cascas de laranja, cumprindo o papel de depósitos de lixo.
O telefone sem fio manteve o silêncio da noite anterior. Mas a posição em que se encontrava, deitado na frente do braço do sofá, indicou ter esperado por chamadas que nunca chegaram. Quantas vezes as mãos de Alice alisaram as costas do aparelho, na esperança de que ele desse sinal de vida?
Do último filme que Alice lembra ter visto durante a insônia só sobrou a cena comum do detetive durão, que após abater mais um bandido caiu feito um poeta alucinado nos braços da parceira. Entre a inveja do beijo ensaiado pelos atores e a indignação pela falta de criatividade nas produções comerciais, Alice optou pela preguiça de pensar. Acomodou o rosto na almofada e fechou os olhos, na esperança de dormir.
O sono seria a única fuga possível às quatro e meia da manhã. Sair da complicada engenharia da imaginação, em que todas as forças negativas pressionam para baixo as chances de um bom prognóstico, era tarefa demasiadamente pesada para alguém já debilitado por uma angústia que parecia corroer a alma.
Às oito, após se jogar desanimada sob o chuveiro, Alice deixou a água quente escorrer pelos ombros. Lavar para levar o sentimento que parecia um novelo girando dentro do coração, pensou, enquanto esfregava os braços com um toco de sabonete.
Deixou o banho quase prostrada, como se tivesse levado uma surra. Conferiu o visor do celular, que fazia par com o telefone fixo no silêncio perpetuado nos últimos dias. Nenhuma ligação perdida, nenhuma mensagem, nada de expectativa. Seguiu a pé ao trabalho, onde disfarçou a tristeza com sorrisos largos e postura de quem enfrentava um dia normal. Conferiu o celular por várias vezes, esperou pelo rompimento da trégua de notícias, imaginou em alguns momentos ter ouvido o toque e sentido o vibrar do aparelho.
Tudo engano. Retornou ao escurecer e se preparou, deixando a janta de lado, para mais uma noite e mais uma madrugada de espera. Pressentiu que a ligação que aguardava não teria mais sentido, pois representava o tilintar de um caso encerrado.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Crônica - O vigilante

Eleutério é um nome fictício, mas encaixa como se feito sob medida na personalidade daquele fulano. Um parentesis: nenhuma intenção de denegrir batizados Eleitérios que possam existir por aí. O nome veio de arranque, numa engatada de primeira, quando bati agora mesmo o olhar no sujeito.
Rabugento o dito cujo. Eu diria que ele nasceu para irritar. Faz perguntas impertinentes e age com inconveniência. Repete tiradas e nem uma boa piada consegue contar. Vira um desastre quando tenta ser agradável e simula inteligência. Então imagina quando assume a burrice e escancara a deselegância?
Eleutério não é dotado de "setocameu". Tenta ser a razão e vira piada. Acha-se o centro das atenções e não percebe que, devido à inconveniência, fica sempre jogado nos cantos. Tenta se enturmar achando que tem carteirinha de sócio e pode chegar impondo.
O fulano, na verdade, é um zero bem grande. E ele sabe que eu sei disso. Por isso, me olha de lado e me espiona. Eu faço de conta que isso não me incomoda, mas de tão mala que eu sou na maioria das vezes eu provoco só para derrubar o coitado. Sempre ganho dele nas chatices.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Conto - O cantador

A única corda da viola já não dava afinação. Desfiada numa das pontas, prendia-se com um nó desajeitado no cavalete. Via-se no cravelhame, lá no outro extremo, o risco da ruptura iminente denunciado pelo desgaste do fio levemente esticado, de forma que o aperto não resultasse no baque seco do rompimento.
Arlindo ainda batia a derradeira com as pontas dos dedos soltas. As unhas desgastadas e encardidas, não por causa do ofício de extrair sons de uma corda envelhecida, ficavam à mostra e compunham um cenário interessante. Nos últimos sete anos Arlindo vira-se obrigado a trabalhar na coleta de materiais reciclados, após labutar por mais de 30 anos na roça, sempre como parceiro.
As unhas sujas de antes traziam o cheiro da terra roxa, onde a mandioca era arrancada no braço e as raízes recebiam a carícia das mãos calejadas para abastar a terra que as cobriam. Os restos encardidos de agora às vezes cheiravam azedo, oriundo da comida que apodrecia nos sacos plásticos de lixo depositados diante dos condôminios.
Nos velhos tempos, sobrava para Arlindo a camisa clara e engomada nos fins de semana, de mangas longas e golas levantadas. Com ela e a calça de casemira azul marinha, Arlindo assistia as missas nas manhãs dos domingos. As mangas arregaçadas até o meio do antebraço mostravam parte da pele queimada pelo sol. Colocadas por dentro da calça, a camisa formava um vácuo na altura do abdomen e escancarava um homem magro, levemente corcunda, sob um chapéu de feltro ajeitado sobre os cabelos que começavam a rarear.
Depois da missa, havia o tempo certo para olhar a horta e a criação, mais por costume, menos por necessidade. Na varanda sem piso, sobre a terra umedecida e batida, um banco de madeira tosca, com as pernas estacadas no chão, esperava o seu dono já com o trago da branquinha ajeitgado, pronto para descer queimando a garganta e limpar a voz prejudicada pelos pigarros do fumo enrolado em palha seca e fina guardada da última colheita de milho.
A viola ainda tinha todas as cordas. Arlindo viera do interior de São Paulo e o modelo que trouxe com ele era de dez cordas, formando as cinco duplas. A fervura do frango no fogão a lenha era o sinal das mulheres para providenciar o tempero. Para Arlindo, o chacoalhar da tampa de alumínio da panela de ferro indicava o dedilhar de ensaio, com habilidade suficiente para extrair um som que entrava nos ouvidos cativante, prendendo a atenção. Dali vinha a voz, aguda, afinada, quase gritada, cantando igual Tião Carrero e Pardinho ou Tonico e Tinoco. Mesmo nas letras tristes o rosto mostrava felicidade, não da branquinha ou do frango assanhando no cheiro da fervura. O sorriso dos olhos emoldurado pelas rugas grossas e marcantes era por cantar, batendo com carinho nas cordas da viola.
Resta agora um trapo da camisa branca e nada sobrou da calça de casemira. O sapato Vulcabrás foi há muito trocado por um par de chinelos de dedo. Arlindo tem um carrinho de mão e anda quilômetros por dia atrás do seu sustento. Nem sempre sobra disposição para limpar o corpo da viola com um trapo encardido, encostá-la no peito feito um amante e dedilhar a única corda, talvez a última, que tira um som melancólico mesmo que a letra da música fale de alegria.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Crônica - Do lado de lá do riacho

O coração, às vezes, é como um carro conduzido em alta velocidade por uma estrada esburacada. Requisita frenagens bruscas e nem sempre a ação ligeira do pé sobre o pedal do freio evita o açoite: um baque, o assobio do ar escapando, a roda torta, os pneus murchos e os solavancos no asfalto são as consequências.
Há um momento de pânico em seguida ao acontecimento. Depois o arrependimento, a angústia e uma espécie de vazio. O que aconteceu? Por que não evitei isso? Se eu tivesse tido mais cuidado... O que faço agora?
Constantin era o seu nome. Ninguém da família sabia explicar de onde os pais, já falecidos, haviam extraído aquela marca de batismo. No banco as moças atendentes chamavam-no de Constantino. Na escola, quando a distante Constantinopla entrou nas aulas de história, alguns colegas diziam que Constantin nada tinha a ver com o imperador romano que deu nome à hoje Istambul.
Para os amigos Constantin era Tin. Alguns, meio desajeitados, costumavam insistir: "Tin do que mesmo? Tin de Souza? Tin Maia? Tintim por tintim?" Não havia nada de estranho em se chamar Constantin, mas ela, agora com vinte anos, achava-se fora dessa embalagem esquisita. Às vezes se perguntava: "De onde veio a inspiração para me batizarem de Constantin".
O problema era a moda. Num tempo de forte influência da televisão, predominavam nomes sotisficados, alguns de raízes estrangeiras. Na internet, Constantin chegou a encontrar um fulano chamado Robin Batmanzino Ferraz. Isso sim, seria o absurdo, pois deixava de ser sofisticação, era a pura cafonice. Constantin localicou Yasmyn, escrito assim mesmo no tempo em que a lei permitia exageros. E teve até o filho de um fotógrafo lambe-lambe, num canto qualquer do Brasil, que recebeu o nome de Photocor Branco de Almeida.
Constantin nunca havia se preparado para o momento em que encontrasse uma namorada. Aos vinte anos, cedo ou tarde a paixão aconteceria, mesmo para ele que morava no braço esquerdo da estrada da curva à direita no povoado do centro do município do fim do mundo.
Foi na volta da escola, já de noitinha, depois de descer do ônibus que trazia os estudantes de Londrina já no momento em que a lua se preparava para deitar diante do sol. Constantin não havia percebido aquela menina sentada no banco de trás, usando calça de moleton verde e blusa de lã cor de rosa. Ela, vizinha recém-chegada, desceu no mesmo ponto. O coração bombeou sangue, a nervura esquentou a cara, os olhos ficaram esbugalhados e Constantin puxou conversa.
Pergunta pra lá, pergunta pra cá e olha que eu faço esse caminho todas as noite e nunca me aconteceu nada, mas para você que é mulher é bom ter companhia. Constantin convenceu a donzela, até porque as folhas balançando ao vento do início da madrugada causavam um zumbido assustador. Justo naquela tarde Alzita, a mãe da estudante, havia recontado história contada pela avó dela, que era a bisavô da moça: dizia da cantoria, sempre em noite de Lua Cheia, da moça que havia perdido o namorado numa briga e morreu de desgosto cinco dias depois, ao descobrir que a causa da briga não era ela, mas uma bicicleta azul e branca com ferrugem nos aros da frente e de trás.
Engraçado, não haviam se perguntado os seus nomes. Foi ela quem teve a iniciativa:
- Como é seu nome?
- Só falo se você disser o seu primeiro?
- Ah não, você primeiro.
- O meu nome é feio?
- E isso importa?
- Você vai dar risada?
- Claro que não. E se eu gostar? Fala o seu nome...
- Está bem. Começa com C.
- Não enrola, fala logo o seu nome.
- Termina com N.
- Fala, eu quero saber.
Quase murmurando, Constantin desabafou:
- Constantin...
- Heim... não entendi.
- Constantin.
- Consentin?
- Constantin...
- Por que acha que eu ia rir do seu nome? Por que acha o seu nome feio?
- O pessoal sempre gozou do meu nome.
- Eu não acho feio. Assim eu é que fico envergonhada...
- Por que? Como é seu nome?
- Começa também com C e termina com A.
- Carina?
- Não, Constantina.
Riram-se muito até cada um deles chegar em suas casas. A partir daquele riso decidiram entregar os seus corações para as curvas e as derrapagens do amor, dentro do ônibus que os trazia da escola pela estrada esburacada, no canto da sala de aula, atrás da moita de cana-de-açúcar, na beirada do carreador e na mina d'água abaixo da cabeceira do pasto.
Sem medo das frenagens bruscas, dispostos aos solavancos e aos zumbidos do vento que vinha do norte e balançava as folhas nas noite de outono. Chegaram logo à conclusão que até nos nomes eles davam certo.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Crônica - Onde é que eu me enquadro?

Entro nos cinquenta e três a exatamente vinte e nove dias, algumas horas, tantos minutos e consequentes segundos. Contados de agora, perto das quatorze horas do dia três de março de dois mil e nove. Há um ano eu estava longe da minha terrinha, sentado na frente de um computador numa sala refrigerada artificialmente por dois aparelhos de ar condicionado.
O palco deste cenário é a redação de um jornal, em Jaraguá do Sul, Santa Catarina. A cidade do melhor jogador de futsal do planeta é cercada por morros. O mais famoso deles é o Morro das Antenas. Nada a ver com a emissão dos sinais que permitem os aparelhos de televisão daquele lugar captarem alguma coisa. Muito menos em função das enormes torres de telefonia celular que fazem os aparelhinhos tilintarem dia e noite e em qualquer lugar, inclusive nas salas de exibições dos cinemas. A fama vem dos parapentes. Jaraguá do Sul sedia eventos internacionais de gente que se pendura naquelas asas enormes e pula lá de cima. Em dia de tempo bom, esses trecos tomam os céus da cidade. Jaraguá tem a mais conceituada fábrica de parapentes da América Latina, não por pura coincidência, mas por estratégia do empreendedor.
Daqui a um ano devo estar em algum outro lugar. Londrina, a minha terrinha, já me deu bastante e agora está impossibilitada de me oferecer algo. Bem que eu gostaria ficar por aqui. Trabalhando, é claro. Londrina não é lugar de gente parada. Só fica parado aqui que não tem emprego. Este é o meu caso. Preciso praticar jornalismo de redação. Preciso buscar informações nas ruas e voltar para o jornal com as anotações em papéis amassados e manchados de suor. Preciso pegar aqueles papéis, decifrar as anotações, e escrever. Preciso ser interativo com as pessoas que ouço para escrever as minhas matérias e preciso ter interatividade com os leitores, usando dos recursos que um jornal impresso me oferece.
Cinquenta e três anos... idade de mais para pleitear uma vaga? Tenho trinta e três anos de registro em carteira, tirando os meses que fiquei desempregado e os períodos de free lancer. Desse total, durante seis anos fui bancário. O resto foi no jornalismo, com a predominância dos impressos, depois a televisão, a assessoria de imprensa, as aulas na Universidade de Londrina e o rádio. Em um dos jornais entrei repórter e sai chefe de redação, após dezoito anos de casa e uma renúncia ao cargo. Claro, sem a possibilidade da empresa reduzir aquele baita salário que eu tinha - assumi a chefia de redação para ajudar a empresa a sair de uma crise financeira, com um salário muito inferior ao de mercado para o cargo -, a única alternativa para mim que ela tinha era a demissão.
Na epoca, eu ainda pensava que em jornalismo a experiência era uma boa referência profissional. Dei com a cara, pois as coisas mudaram. Hoje, em jornalismo impresso, existe a neurótica concorrência - assumida inclusive por alguns jornalistas - com a internet. Nessa doença, há quem diga que o impresso é atualmente apêndice da internet. Por isso os empresários diminuiram o tamanho dos textos, encheram as páginas de penduricalhos, inventaram a interatividade burra e os jornalistas assumiram.
Para fazer textinho de nota concordo que o jornalismo impresso não precisa de talentos. Contrata-se mais barato para preencher o quadro. Para retomar a força do jornalismo impresso é preciso, antes de tudo, inteligência do dono do jornal. Não é preciso dizer mais nada. Enquanto isso, os bons profissionais, na medida em que vão perdendo seus empregos, deixam a cidade ou montam um bar na esquina mais próxima do último emprego. Será que a juíza que sentenciou o fim da obrigatoriedade do diploma tinha razão?
Engraçado. Eu não encontro emprego porque sou velho. Um conhecido, recém-formado e ainda nas fraldas, queixou-se outro dia que não consegue trabalho porque é inexperiente. Outro conhecido, no meio termo da idade e da experiência profissional, disse recentemente que em Londrina só tem vaga por QI, o famoso quem indica. Algo está errado. Espero que não seja a minha análise.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Crônica - Londrina de todos os londrinenses

Nem alto e nem baixo, peso lá pelas tabelas, o curitibano recentemente conhecido me diz que Londrina lembra muito São Paulo. Pergunto em que, ele explica que a semelhança está nos cafés do centro da cidade.
- Como assim?
- No jeitão das pessoas encostarem nos balcões dos bares para tomar café enquanto conversam...
Olha só! Eu, londrinense do meio do ovo, aos 52 anos de idade já tomei café em bares de terras distantes. Jamais sentado e escorado numa mesinha, embora tenha passado por shoppings requintados de Brasília, Curitiba, Joinville, Blumenau, Florianópolis, Porto Alegre, Uberlândia, Uberaba, Goiânia e até mesmo São Paulo.
Distração deste macaco velho? Pode ser. O que interessa é que este conhecido curitibano levantou dentro da minha alma aquele pó vermelho da terra roxa, que me enche de orgulho e me dá um indisfarçável contentamento quando a comparação do londrinense é com os paulistas.
Coisa da cultura pé vermelha. Nem entendo esse meu eu como uma discriminação contra o Sul e a minha capital. O que acontece é que a ligação com São Paulo está encralacada no londrinense feito um encardido que não sai. Temos aqui mineiros que viraram londrinenses de coração. Temos baianos, alagoanos, cariocas, gaúchos e catarinenses. Temos curitibanos, presbiterianos, adventistas, espíritas e pseudo-intelectuais. temos praticantes de capoeira e de artes marciais.
Mas a ligação com o paulista é marcante. Até no café tomado no balcão, barriga escorada no vidro com doces ou refrigerantes, enquanto rola a conversa sobre o campeonato paulista.
E vai que o conhecido curitibano tenha razão.