quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Crônica - Inconstância

Vidinha! Descia chuva, águas passavam e o cotidiano se alongava quando o sol não aparecia. Igual aos dias brancos, de luz solar forte e preguiça, quando a rotina estonteava.
- Do que conversar hoje, pergunta ela.
- De quem falar bem, emendava ele.
- Ou mal, cutucava ela com jeito de deboche.
Era como se acordassem todos os dias nas cadeiras de balanço espalhadas na varanda. E nela passassem as horas, entrassem a noite, dormissem de madrugada, apenas se espreguiçando quando o corpo pedisse um movimento leve que fosse.
Assim, tinham muito o que conversar. Criticavam tudo e todos. Nada era bom o suficiente. Se fulano fazia, merecia considerações preconceituosas. Se não fazia, era tido como preguiçoso, incapaz.
Da mesma forma, mudavam muito rapidamente o conceito sobre as pessoas que os cercavam. Ontem sicrano era ruim, porque disse aquilo. Hoje era bom, porque teria dito isso. Amanhã poderia ser pior, caso dissesse ou fizesse algo que não fosse do agrado deles. Ou muito melhor, se ocorresse o contrário.
Isso de segunda a segunda, do dia primeiro ao último, às vezes 30, outras vezes 31, ou 28 ou 29 quando fevereiro. Uns dias acordavam às 5, outros às 6. Em tardes quentes, após o almoço, cochilavam mais tempo e colhiam menos descanso por culpa do desconforto. Mas sob as nuvens anunciando chuva no verão, desmaiavam aos roncos. No inverno, mal fechavam os olhos enquanto as últimas folhas do outono teimavam em sujar o quintal.
Era uma vidinha, do primeiro de janeiro ao 31 de dezembro. Um cotidiano de rotina teimosa no costume de acordar, esperar o dia passar, entrar noite adentro na mesmice de todos os dias e dormir.
Tinham que ter algo diferente para enfrentar essa situação. Havia necessidade de uma inconstância. Então falavam das pessoas e mudavam os conceitos sob os alheios de hora para outra, de acordo com a velocidade dos ponteiros do relógio de parede com propaganda de um analgésico.
Nuns dias fulano era bom. Noutros era o capeta.
Inconstância...

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Crônica - O diálogo das músicas

Foram quatros CDs de músicas emprestados em troca de apenas três. Um número par por pura coincidência contra o ímpar preocupante que leva à obrigação de mais um, para ficar igual. Conversa estranha esta. Porque, na verdade, eles se conversam através das canções. Um homem e uma mulher com os mesmos ouvidos e os olhos iguais para enxergar o mundo através da poesia. É o mesmo que dizer, eles tem almas gêmeas.
Dela ele sabe pouco, se para isso fosse necessário muito mais que o diálogo dos sons. Dele, provavelmente, ela muito menos conhece, se levado em conta que o cotidiano é de verbos diretos e adjetivos perturbadores. Há de se considerar, entretanto, que ambos, nessa conversa melodiosa, podem almejar um do outro. O equívoco pode estar nesse ponto, onde ritmos iguais batem em corações supostamente diferentes.
Ele gosta das canções que ela ouve. Ela mostra, com um delicado consentimento, querer ouvir as mesmas músicas que ele ouve. Ambos conversam assim e se dão por felizes. Eles se completam, cada um no seu canto, com as melodias que tocam em equipamentos e ambientes diferentes, mas resvalam em gostos iguais que batem de leve no frágil fio que separa a simples afinidade de um bem querer maior.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Crônica - Sanfona, banqueta e caixa de papelão

Os olhos daquele homem não enxergam as pessoas que passam, embora ele tenha uma visão praticamente perfeita. Embaçados pelo receio do seu espetáculo não causar agrado, os olhos do homem preferem visualizar apenas a penumbra dos que chegam e vão diariamente, muitos a trabalho, outros a estudo e uma minoria a lazer. Mas o coração daquele homem é capaz de ver aqueles que entendem a sua arte e a sua necessidade e, por isso, retribuem com uma parada, mesmo rápida, e até uma moeda.
O homem é um músico, profissão que ele nunca na vida havia imaginado exercer. O seu boné surrado, acima dos cabelos grisalhos que entornam a cabeça de onde um rosto de expressão melancólica se sobressai, indica que ele era alguém acostumado a enfrentar o sol. Os botinões e as calças de brim cáqui, complementados pelo camisão xadrez em tom claro, dão ao homem o aspecto de quem trabalhou na roça por anos a fio.
As mangas curtas denunciam a pele grossa dos braços. Fosse possível observar as palmas das mãos, é provável que se destacariam os calos provocados pelos cabos dos enxadões. As unhas, porém, ficam visíveis e escancaram as marcas das atividades braçais. Encardidas, não escondem a lida com a terra num batidão de sol a sol, sem folga nos feriados e fins de semana em épocas de plantio ou colheita. A timidez manifestada no jeito humilde de se apresentar reforça a suspeita de que aquele homem hoje está num lugar que não gostaria de estar.
Então por que ele se dá ao sacrifício de ocupar aquele palco improvisado sob a sombra de um edifício do centro de Londrina para tocar a sanfona de manhã até o fim da tarde, sem intervalo para uma refeição no almoço? Sabe-se que ele chega ao local junto com o horário da abertura do comércio. Traz, além da sanfona, uma banqueta de madeira e uma caixa de papelão vazia. Aliás, de dentro dela somente se vê um pedaço de papel amassado com o manuscrito: "Ajude um artista". Quem o entende percebe também entre a bagagem que o homem carrega a habilidade dos dedos das mãos que dedilham o instrumento, a sensibilidade dos ouvidos e a generosidade do coração, que premia os saudosistas com canções muito raramente encontradas nos meios modernos de reprodução.
Há quem imagine que o homem um dia se cansou da monotonia dos campos, mais por força do pouco dinheiro que a terra lhe dava para sustentar a família. Então mudou-se para a cidade e viu-se desempregado. Resolveu virar artista para ganhar moedas com a música que sai da sua sanfona. Outros apostam que o homem decidiu trocar a dureza do trabalho braçal pela poesia das músicas que invadem o agitado e frio centro da metrópole. As moedas, depositadas na caixa vazia de sapatos, seriam apenas uma contribuição.
Mas os que enxergam além das melodias dizem sem rodeios: o homem é um trabalhador e tem uma família para sustentar num meio que lhe é hostil. Sem onde usar suas mãos para arar a terra e colher os frutos, faz do que era o seu passatempo um meio de garantir a mesa com os donativos que raramente cobrem o fundo da caixa de papelão. Hoje o homem é um artista do Calçadão de Londrina. Divide o palco com tantos outros que engolem fogo, batem a zabumba, pintam, bordam e tecem os pedaços da vida num mágico cotidiano de ilusões e tristezas.

Crônica - A Lua é nossa

Eu disse que a Lua era minha quando ela estava cheia, sem saber que em vários pontos do Universo muitas outras pessoas a cobiçavam. Tomei posse dela vendo-a inatingível e distante, como se adquirisse um quadro para ser posto num lugar alto de uma parede inacessível, para evitar que alguém o tocasse.
Ignorei o fato dela desaparecer ao clarear do dia. Considerei que ela voltaria e seria minha, sempre avermelhada e gigante. Esqueci propositalmente as noites e as madrugadas de tempestades, quando a Lua ficaria escondida pelas nuvens. Ou alimentei a fantasia de que ela continuaria sendo minha, mesmo acima das chuvas e ainda mais longe de mim.
Foi assim, nesse ímpeto, quando a Lua se mostrava cheia, que eu resolvi te presentear com ela. Entreguei-a toda para você e disse: "A Lua é nossa". Percebi a sua alegria mas tive dúvidas: a Lua, vermelha e grande, causaria em você o mesmo fascínio que em mim? Contentei-me, por fim, em admitir para mim mesmo que a Lua, cheia, sempre inspira os românticos.
Então apostei o nosso amor na Lua grande, cheia e vermelha. Acompanhei-a dias após dia, tendo-a como elemento para mensurar a intensidade dos nossos beijos, o calor dos nossos afagos, o arfar dos nossos peitos. Fiz da nossa Lua vermelha e grande a nossa luz e abençoei a insônia.
Até que um dia ela não voltou. A Lua, cheia, vermelha e grande, se escondeu atrás do oculto do seu ciclo, de ir e vir de acordo com o seu movimento, sem se importar com a velocidade do estouro das labaredas do amor. Sorte que o coração resistiu e esperou pelo retorno dela, que chegou de novo cheia, vermelha e grande, ao ponto de mais uma vez eu te dizer: "A Lua é nossa".

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Conto - Guerra das almofadas

Éramos três crianças e nada do que fazíamos naqueles momentos tinha importåncia para o nosso futuro. Vivíamos o nosso tempo, num mundo que só a nós pertencia e nos contentava, e mesmo quando colocávamo-nos a meditar sobre o amanhã os nossos planos eram paupáveis, possíveis de serem contornados pela imaginação, tão singelos pareciam.
Mamãe tinha um rosto de menina. Seus cabelos longos caiam sobre os ombros e emolduravam o rosto moreno. Era uma mocinha apaixonada pela família - eu, Mara e papai -, e embora muito criança, eu já experimentava um leve sentimento de ciúme. Dos momentos, por exemplo, que ela se aproveitava das nossas distrações para roubar um beijo de papai. Ou de quando se entregava a Mara e eu me sentia abandonada no canto do sofá, até que ela viesse, seus braços abertos, para me compensar com um abraço e muitos beijos que eu fazia de conta me incomodar.
Os dias eram iguais, fosse domingo ou quinta-feira. Mas as nossas expectativas quanto ao próximo minuto, ao o que estava por acontecer, sempre se renovava. Porque os nossos instantes sempre eram de surpresas. Um novo abraço de mamãe nunca se parecia com o de antes, cada beijo tocava no meu rosto e se abrigava no meu coração com uma intensidade incomparável. Ainda assim, tínhamos nas tardes dos sábado um evento diferente, longe da nossa gostosa rotina de esperar, de segunda à sexta, pela chegada de mamåe da escola onde lecionava.
Íamos nós três no final do dia para a chácara da comunidade religiosa a qual meus pais pertenciam. Havia um alojamento reservado para nós e invariavelmente, após o jantar, corríamos para nos acomodarmos. Papai, obrigado a cumprir plantão devido a sua atividade profissional, raramente nos acompanhava naquelas oportunidades. Então o mundo e o momento eram das três mulheres da casa. Meninas, que não falavam das coisas das mulheres, nem da moda, nem dos ídolos da televisão.
Éramos três crianças, que sob o comando de uma de nós, seja com um olhar, fosse com um gesto, nos entregávamos a uma guerra sem vencedor e vencidos. Uma guerra de amor,com as nossas almofadas acertando os corações uma da outra. Assim perdíamos horas e ganhavamos no amor. Riamos uma das outras, abominavamos ataques de surpresas. Na verdade, perder era ser compensada por mamãe com aquilo que ela tinha de mais sublime, o amor. Então, em certo momento, tomadas pelo sono, deixávamo-nos vencer.
Eu ainda olho para o passado e tento buscar nas lembranças, que parecem querer me ferir, as glórias daquelas guerras. Mas percebo que as batalhas são outras. E a minha guerra já não premia todos os lutadores com provas de paixão e amor manifestadas em abraços e beijos.
Mamãe ainda conserva o rosto de menina, mas seus olhos, mesmo quando sorriem, denunciam tristeza, pois papai se foi. Mara, na sua adolescência, parece querer cuidar de mim. Penso que eu é que deveria baixar a guarda das perdas que acumulo na alma, como a da súbita ida de papai, para devolver a Mara e a mamãe as almofadas que fizeram a nossa guerra e nos tornaram felizes mesmo nas nossas derrotas. Sim, porque naquelas batalhas da infåncia nunca perdemos e nunca ganhamos, apenas solidificamos a nossa vida com atitudes que nos ensinaram a amar.
No entanto, alinho-me como a guerreira que não quer sucumbir, mas não estende os braços para abraçar as parceiras de todas as minhas batalhas, Mara e mamâe.
E como eu tenho tentado. Mas só consigo seguir o olhar triste de mamãe e a carência de Mara, sem reagir, sem abrir o meu peito para brincar a nossa guerra das almofadas.

Crônica - Idolatria

Era um Deus para aquele grupo de pessoas. Creditavam a ele uma inteligência fora do comum. Nas pequenas e grandes discussões, qualquer que fosse o tema, cabia a ele a última palavra. Uma sumidade envolta em uma manta transparente, a aura invisível rodeando a cabeça de cabelos ralos, e as asas, inatingíveis, formando um delta, compunham a figura do endeusado.
É verdade, o homem tinha lá os seus dotes. Hábil na matemática, mostrava-se imbatível nas coisas da economia, assunto que debatia sem ser interrompido tamanho era o conhecimento que tinha. Os fiéis escudeiros que o mantinham encouraçado chegavam a comemorar com orgasmos mentais as elucubrações daquele todo poderoso. Rodeavam-no como se faz com os espécimes que são raros. Evitavam contrapor idéias. No máximo, sugeriam algo aqui ou ali.
O que aquela gente não sabia era que aquele homem não deixava de ser um comum, como qualquer outro ser humano da face da terra. Ele não tinha o perfil de um gênio, desses tantos que aparecem no mundo de uma hora para outra, com idéias, ações e realizações. O endeusado não passava de um ídolo, pois faltava-lhe um elemento que é essencial na formulação de um grande ser: senso de humanidade.
Sem humanidade, o homem não tinha senso de justiça. Faltando-lhe justiça, ele não enxergava a vida que corria além das janelas do seu automóvel, refrescado no verão com um ar condicionado. Sua bondade era falsa, pois pouco ou nada acrescentava para o beneficiado. Sua voz soava falsa e inconsistente. Seu sorriso intimidava devido ao tom de ironia.
Ainda assim havia no grupo aqueles que acreditavam: "O homem não defeca, pois ele é um Deus!" Fisiologismo era, portanto, uma palavra quase que proíbida para aquela gente, quando o tema era o endeusado. "Ele não arrota como nós, pois seu organismo é puro!"
E quase ninguém viu aquele homem arcado, um dedo em riste apontado para o seu rosto, num gesto de ameaça e intimidação que nenhum Deus, e muito menos um gênio, mereceriam. O homem acuado, sem a manta, sem aura e sem asas, era apenas o projeto de um ídolo torturado por quem o fez e o lançou ao mundo com a marca de um herói. De barro.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Crônica - Reflexos, pessoas e reflexões

(texto publicado no livro Jaraguá em Crônicas, abril de 2007, Editora Design, Jaraguá do Sul)

O espelho do vidro da loja do Calçadão, na Marechal, reflete marias e joãos que se miram nas possibilidades de ir e voltar. Ou, simplesmente, ficar. Para ver outras marias e outros joãos gravados nos espelhos das lojas da Marechal.
Luzia se mira, nem disfarça a curiosidade de se ver, retratada na vitrine de calçados, jóias e confecções. Andasse por ali como caminha a mulher que segue à frente, ou o rapaz que se foi lá atrás após cruzar com ela no momento em que o ciclista fechou, apressado, o ângulo da vista de ambos que pretendiam se enxergar, suas imagens um na retina dos olhos do outro, Luzia chegaria a um lugar. Mas ela não anda. Simplesmente desliza e a sua altivez a acompanha, nos vidros das casas de bijuterias e produtos de 1,99. Luzia vai a outro lugar, algum lugar, onde seu sonho a leva ladeada pelos reflexos que a perseguem de vitrine em vitrine, e a sombra que o sol faz ao bater e resvalar por seu corpo esbelto.
O espelho das águas fixa na lâmina turbulenta árvores, pontas de prédios, manchas de nuvens, passos de pessoas e vaivém de automóveis, das bordas de um lado até o meio do Rio Itapocu, da beira do outro lado até o vão da ponte que atravessa para lá. Ou trás para cá. Enquanto as folhas e as impurezas descem empurradas pela correnteza, sem duplicar imagens por fazerem parte, como objetos sólidos, do líquido que brilha e vira espelho.
Antônio se olha no espelho d’água, espanta-se com o rosto magro, cavanhaque por fazer, bigode sem aparo, cicatriz na cara pouco abaixo da bochecha direita. Água marrom a que desce o rio, junto segue um galho, uma garrafa pet, monte de folhas de mil vegetais, tufos de capim, embalagens de plástico, capa de caderno, preservativos e o retrato da vida, nas impurezas do líquido que vai. Ou traz um vento leve e rasteiro na altura do peito do pescador de manhã sonolenta, agachado à beira do Itapocu, vendo a água ir, o vento vir, enquanto se mira no espelho do rio e faz conta de cabeça para saber a quantos dias do fim das férias está a pescar sem querer saber de voltar ao trabalho, para enrolar fio de cobre e fazer motor, costurar jeans e fabricar moda, encher tanque de carro no posto a cem metros de casa e girar a vida que vai. E volta, sempre no mesmo lugar, na linha de produção da indústria que Antônio quer trocar por outro chão de fábrica, outro horário de trabalho, outro salário. Que permita outra casa para morar, outros sapatos para usar, outra moto para andar, diferente vida, não refletida com cara de angústia no espelho do rio que vai, mas sempre volta, trazendo a perspectiva de uma mudança que nunca chega, montada no lombo da incerteza que amarra, da dúvida que trava, do medo que barra, do desânimo que faz Antônio sempre voltar ao mesmo rio para refletir e se espelhar na lâmina turva da água que reflete marias e joãos, luzias, antônios e tantos mais.
O espelho da janela do edifício central, na Reinoldo Rau, retrata Débora, olhos cansados, visão distante, pensamento disperso no pão que comeu ontem no jantar, na refeição que almoçará hoje logo adiante, daqui a pouco, na mesa do shopping. Ou no bar ali em frente, corpo encostado no balcão de vidro que expõe doces, pacotes de bolacha, balas, chicletes e a martelante sensação de abandono e solidão diante do rosto sem expressão da garçonete, que olha e pergunta se vai o de sempre.
Testa encostada na película que corta o sol, Débora adia o trabalho para daqui a instantes, logo mais, quando o reflexo do pensamento deixar a imagem do último namorado, solícito e amável enquanto durou a paixão espelhada na mesa de mármore da casa noturna, sob luz fosca, música ambiente, clima de amor e mais uma história de desilusão. À frente, na linha da visão, Débora enxerga o topo do prédio distante, o telhado da casa em frente, a montanha instransponível enquanto o coração emperra batidas descompassadas de vontade de ir adiante, além do pé do morro que cerca o vale e dá a impressão de inércia para quem quer ir, mas não arreda os pés do chão de cerâmica clara brilhante do escritório, que reflete os sentimentos de uma mulher que só fica porque espera acender a luz do abajur a qualquer hora para ver retratada no espelho da peça de mogno, outra vez, a paixão que se foi e quem sabe volta até o intervalo do próximo almoço, talvez na janta, provavelmente à noite, depois da novela, da aula de inglês, da reunião do condomínio, do lanche com biscoito água e sal.
O espelho da lata dos carros reflete marias, joãos, luzias, antônios, déboras, marcos, elaines, cristinas, fernandas, possibilidades, ilusões, tristezas, felicidades, decepções, esperanças e projetos diferentes. No retrovisor, vidas percorrem o centro, atravessam os bairros, vencem solavancos da transposição da linha férrea, encurtam distâncias, levam e trazem, vão e chegam, às vezes ficam, outras não.
Espelhos, retratos, reflexos, imagens, projetos e sensações além das miragens nas vitrines, balcões, lâmina d’água, janelas, latas de carros. Era uma vez, no meio do vale, um dia no coração de cada pessoa.

Crônica - Um crime nada perfeito

"Tanta gente faz isso, por que é que eu não posso?" A dúvida assanhava a mulher, dona de uma lábia invejável. Na conversa, ela derrubava ministro, se tivesse o poder de chegar perto da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Não tinha, mas imaginava ter. Dizia-se uma líder comunitária expressiva, embora mal conseguisse reunir os vizinhos para conversas sobre a rua onde morava, o estado precário do centro comunitário, o atendimento no posto de saúde. É que, normalmente, todas as bandeiras que desfraldava estampavam, lá no fundo dos letreiros algum tipo de interesse flagrantemente pessoal. Assim, mesmo os que participavam desses eventuais encontros olhavam de rabo de olho os demais participantes e conferiam a forma como cada um aceitava as colocações feitas por ela.
Em períodos eleitorais, a mulher frequentava os gabinetes dos candidatos para oferecer os seus serviços. Diante dos nobres postulantes a um cargo público, ela usava toda a sua capacidade de persuadir. Contava vantagens, enumerava conquistas nunca comprovadas, garantia um bom retorno diante de um preço cobrado nada promocional:
- Eu trago para o senhor cinco mil votos...
- E quanto me custa esses votos?
- Olha, o senhor não vai se arrepender. Faço durante a campanha dez reuniões com duzentos participantes cada.
- Mas então, quanto é que você me cobra?
- Além das reuniões, eu monto uma equipe de vinte mulheres para percorrer trinta bairros, batendo de porta em porta...
- Sim, mas os cinco mil votos, mais as dez reuniões com duzentas pessoas e mais as vinte mulheres de porta em porta nos trinta bairros... quanto vai dar?
- Tem cinco dessas mulheres que, olha, cada uma traz para você pelo menos cem votos. E tem também...
- Calma, eu sei que é tudo isso que você me traz, mas quero saber quanto você quer.
Acostumado a esse tipo de barganha, o candidato normalmente cedia aos pedidos da mulher, embora acreditando em apenas vinte por cento ou pouco mais do prometido. Para ele, havia a necessidade de manter perto pessoas que oferecessem supostos retornos. Havia o risco de um adversário levá-la. Por isso, a estratégia era trazer para o time os chamados profissionais das campanhas políticas. Estes eram misturados aos voluntários e ao pessoal pago de acordo com a qualificação profissional, que recebiam pouco e não pesavam no orçamento da campanha.
- Mas então, você tem um preço para participar da minha campanha?
- Pois é, doutor. Além do preço temos que negociar para depois da posse. O senhor sabe que nada aqui na terra cai do céu, né? Tudo tem um custo...
- E como sei. Mas para fechar preciso saber...
- Então... não vai te custar muito. Depois de eleito o senhor recupera tudo e muito mais na primeira canetada.
- Assim espero, vou investir muito na eleição. Quanto?
- Vamos fazer um real por cada um dos cinco mil votos. Isso é o meu serviço. Por cada uma das vinte mulheres o doutor paga uns dois salários mínimos, livres de ônibus e de marmitex...
- Vai ficar muito pesado, minha cara...
- Espera aí. O doutor quer se eleger?
- Quero, mas como é que você me garante estes votos?
- Ah, pergunte lá para o fulano. Trabalhei com ele na eleição passada. Coincidência ou não, agora ele é o seu principal adversário...
- Então vamos lá. O que mais?
- Cada uma das vinte reuniões tem um preço. Precisa de umas coisinhas para comer e chamar a atenção dos convidados. Uns quinhentos reais dá apertado, mas se faz uma reunião.
- Tudo bem, o que você pretende no futuro?
- Eu nadinha. Mas o meu marido está há dois anos vivendo de bico. A minha filha precisa de um emprego. Tem uma das mulheres da equipe de rua que esta precisa de uma atenção especial. Precisa ser muito bem aproveitada. O doutor vai ter que dar uma vaguinha para ela. E para mim, o doutor sabe que sempre gostei de lidar com gente, sou uma líder comunitária respeitada... queria uma coisinha simples, uma diretoria, por exemplo...
- Isso a gente tem que ver depois, você sabe que tem as coligações, que levam a maioria das vagas do primeiro, segundo e terceiro escalões.
- Mas o doutor tem que me dar uma garantia. O fulano está me telefonando todo o dia em casa para ver se eu fecho com ele...
- Está certo, depois de eleito você me traz essa listinha de pessoas...
Foram menos de dois meses de campanha no primeiro turno. O candidato da mulher ficou para o segundo turno e pagou pelos serviços dela. Nos cerca de quinze dias seguintes, preparatórios para o segundo turno, a negociação foi refeita, com um valor majorado e condições mais tentadoras. O adversário era aquele que a mulher dizia ter trabalhado em eleições passadas. Ela jurava fidelidade e manifestava até paixão pelo seu contratado. Diante dele, o oponente era um mau caráter, incapaz, traiçoeiro e sujo. Mas, na penumbra, bem naquele canto dos bastidores onde o sol raramente clareia, ela fechou, paralelamente, um acerto com o outro. Trabalhou para os dois. Depois das urnas abertas, não se sentiu constrangida. Primeiro abraçou com lágrimas nos olhos o derrotado. Dali seguiu para o local onde o vitorioso comemorava. E festejou.