quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Crônica - Reflexos, pessoas e reflexões

(texto publicado no livro Jaraguá em Crônicas, abril de 2007, Editora Design, Jaraguá do Sul)

O espelho do vidro da loja do Calçadão, na Marechal, reflete marias e joãos que se miram nas possibilidades de ir e voltar. Ou, simplesmente, ficar. Para ver outras marias e outros joãos gravados nos espelhos das lojas da Marechal.
Luzia se mira, nem disfarça a curiosidade de se ver, retratada na vitrine de calçados, jóias e confecções. Andasse por ali como caminha a mulher que segue à frente, ou o rapaz que se foi lá atrás após cruzar com ela no momento em que o ciclista fechou, apressado, o ângulo da vista de ambos que pretendiam se enxergar, suas imagens um na retina dos olhos do outro, Luzia chegaria a um lugar. Mas ela não anda. Simplesmente desliza e a sua altivez a acompanha, nos vidros das casas de bijuterias e produtos de 1,99. Luzia vai a outro lugar, algum lugar, onde seu sonho a leva ladeada pelos reflexos que a perseguem de vitrine em vitrine, e a sombra que o sol faz ao bater e resvalar por seu corpo esbelto.
O espelho das águas fixa na lâmina turbulenta árvores, pontas de prédios, manchas de nuvens, passos de pessoas e vaivém de automóveis, das bordas de um lado até o meio do Rio Itapocu, da beira do outro lado até o vão da ponte que atravessa para lá. Ou trás para cá. Enquanto as folhas e as impurezas descem empurradas pela correnteza, sem duplicar imagens por fazerem parte, como objetos sólidos, do líquido que brilha e vira espelho.
Antônio se olha no espelho d’água, espanta-se com o rosto magro, cavanhaque por fazer, bigode sem aparo, cicatriz na cara pouco abaixo da bochecha direita. Água marrom a que desce o rio, junto segue um galho, uma garrafa pet, monte de folhas de mil vegetais, tufos de capim, embalagens de plástico, capa de caderno, preservativos e o retrato da vida, nas impurezas do líquido que vai. Ou traz um vento leve e rasteiro na altura do peito do pescador de manhã sonolenta, agachado à beira do Itapocu, vendo a água ir, o vento vir, enquanto se mira no espelho do rio e faz conta de cabeça para saber a quantos dias do fim das férias está a pescar sem querer saber de voltar ao trabalho, para enrolar fio de cobre e fazer motor, costurar jeans e fabricar moda, encher tanque de carro no posto a cem metros de casa e girar a vida que vai. E volta, sempre no mesmo lugar, na linha de produção da indústria que Antônio quer trocar por outro chão de fábrica, outro horário de trabalho, outro salário. Que permita outra casa para morar, outros sapatos para usar, outra moto para andar, diferente vida, não refletida com cara de angústia no espelho do rio que vai, mas sempre volta, trazendo a perspectiva de uma mudança que nunca chega, montada no lombo da incerteza que amarra, da dúvida que trava, do medo que barra, do desânimo que faz Antônio sempre voltar ao mesmo rio para refletir e se espelhar na lâmina turva da água que reflete marias e joãos, luzias, antônios e tantos mais.
O espelho da janela do edifício central, na Reinoldo Rau, retrata Débora, olhos cansados, visão distante, pensamento disperso no pão que comeu ontem no jantar, na refeição que almoçará hoje logo adiante, daqui a pouco, na mesa do shopping. Ou no bar ali em frente, corpo encostado no balcão de vidro que expõe doces, pacotes de bolacha, balas, chicletes e a martelante sensação de abandono e solidão diante do rosto sem expressão da garçonete, que olha e pergunta se vai o de sempre.
Testa encostada na película que corta o sol, Débora adia o trabalho para daqui a instantes, logo mais, quando o reflexo do pensamento deixar a imagem do último namorado, solícito e amável enquanto durou a paixão espelhada na mesa de mármore da casa noturna, sob luz fosca, música ambiente, clima de amor e mais uma história de desilusão. À frente, na linha da visão, Débora enxerga o topo do prédio distante, o telhado da casa em frente, a montanha instransponível enquanto o coração emperra batidas descompassadas de vontade de ir adiante, além do pé do morro que cerca o vale e dá a impressão de inércia para quem quer ir, mas não arreda os pés do chão de cerâmica clara brilhante do escritório, que reflete os sentimentos de uma mulher que só fica porque espera acender a luz do abajur a qualquer hora para ver retratada no espelho da peça de mogno, outra vez, a paixão que se foi e quem sabe volta até o intervalo do próximo almoço, talvez na janta, provavelmente à noite, depois da novela, da aula de inglês, da reunião do condomínio, do lanche com biscoito água e sal.
O espelho da lata dos carros reflete marias, joãos, luzias, antônios, déboras, marcos, elaines, cristinas, fernandas, possibilidades, ilusões, tristezas, felicidades, decepções, esperanças e projetos diferentes. No retrovisor, vidas percorrem o centro, atravessam os bairros, vencem solavancos da transposição da linha férrea, encurtam distâncias, levam e trazem, vão e chegam, às vezes ficam, outras não.
Espelhos, retratos, reflexos, imagens, projetos e sensações além das miragens nas vitrines, balcões, lâmina d’água, janelas, latas de carros. Era uma vez, no meio do vale, um dia no coração de cada pessoa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: