quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Crônica - Um crime nada perfeito

"Tanta gente faz isso, por que é que eu não posso?" A dúvida assanhava a mulher, dona de uma lábia invejável. Na conversa, ela derrubava ministro, se tivesse o poder de chegar perto da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Não tinha, mas imaginava ter. Dizia-se uma líder comunitária expressiva, embora mal conseguisse reunir os vizinhos para conversas sobre a rua onde morava, o estado precário do centro comunitário, o atendimento no posto de saúde. É que, normalmente, todas as bandeiras que desfraldava estampavam, lá no fundo dos letreiros algum tipo de interesse flagrantemente pessoal. Assim, mesmo os que participavam desses eventuais encontros olhavam de rabo de olho os demais participantes e conferiam a forma como cada um aceitava as colocações feitas por ela.
Em períodos eleitorais, a mulher frequentava os gabinetes dos candidatos para oferecer os seus serviços. Diante dos nobres postulantes a um cargo público, ela usava toda a sua capacidade de persuadir. Contava vantagens, enumerava conquistas nunca comprovadas, garantia um bom retorno diante de um preço cobrado nada promocional:
- Eu trago para o senhor cinco mil votos...
- E quanto me custa esses votos?
- Olha, o senhor não vai se arrepender. Faço durante a campanha dez reuniões com duzentos participantes cada.
- Mas então, quanto é que você me cobra?
- Além das reuniões, eu monto uma equipe de vinte mulheres para percorrer trinta bairros, batendo de porta em porta...
- Sim, mas os cinco mil votos, mais as dez reuniões com duzentas pessoas e mais as vinte mulheres de porta em porta nos trinta bairros... quanto vai dar?
- Tem cinco dessas mulheres que, olha, cada uma traz para você pelo menos cem votos. E tem também...
- Calma, eu sei que é tudo isso que você me traz, mas quero saber quanto você quer.
Acostumado a esse tipo de barganha, o candidato normalmente cedia aos pedidos da mulher, embora acreditando em apenas vinte por cento ou pouco mais do prometido. Para ele, havia a necessidade de manter perto pessoas que oferecessem supostos retornos. Havia o risco de um adversário levá-la. Por isso, a estratégia era trazer para o time os chamados profissionais das campanhas políticas. Estes eram misturados aos voluntários e ao pessoal pago de acordo com a qualificação profissional, que recebiam pouco e não pesavam no orçamento da campanha.
- Mas então, você tem um preço para participar da minha campanha?
- Pois é, doutor. Além do preço temos que negociar para depois da posse. O senhor sabe que nada aqui na terra cai do céu, né? Tudo tem um custo...
- E como sei. Mas para fechar preciso saber...
- Então... não vai te custar muito. Depois de eleito o senhor recupera tudo e muito mais na primeira canetada.
- Assim espero, vou investir muito na eleição. Quanto?
- Vamos fazer um real por cada um dos cinco mil votos. Isso é o meu serviço. Por cada uma das vinte mulheres o doutor paga uns dois salários mínimos, livres de ônibus e de marmitex...
- Vai ficar muito pesado, minha cara...
- Espera aí. O doutor quer se eleger?
- Quero, mas como é que você me garante estes votos?
- Ah, pergunte lá para o fulano. Trabalhei com ele na eleição passada. Coincidência ou não, agora ele é o seu principal adversário...
- Então vamos lá. O que mais?
- Cada uma das vinte reuniões tem um preço. Precisa de umas coisinhas para comer e chamar a atenção dos convidados. Uns quinhentos reais dá apertado, mas se faz uma reunião.
- Tudo bem, o que você pretende no futuro?
- Eu nadinha. Mas o meu marido está há dois anos vivendo de bico. A minha filha precisa de um emprego. Tem uma das mulheres da equipe de rua que esta precisa de uma atenção especial. Precisa ser muito bem aproveitada. O doutor vai ter que dar uma vaguinha para ela. E para mim, o doutor sabe que sempre gostei de lidar com gente, sou uma líder comunitária respeitada... queria uma coisinha simples, uma diretoria, por exemplo...
- Isso a gente tem que ver depois, você sabe que tem as coligações, que levam a maioria das vagas do primeiro, segundo e terceiro escalões.
- Mas o doutor tem que me dar uma garantia. O fulano está me telefonando todo o dia em casa para ver se eu fecho com ele...
- Está certo, depois de eleito você me traz essa listinha de pessoas...
Foram menos de dois meses de campanha no primeiro turno. O candidato da mulher ficou para o segundo turno e pagou pelos serviços dela. Nos cerca de quinze dias seguintes, preparatórios para o segundo turno, a negociação foi refeita, com um valor majorado e condições mais tentadoras. O adversário era aquele que a mulher dizia ter trabalhado em eleições passadas. Ela jurava fidelidade e manifestava até paixão pelo seu contratado. Diante dele, o oponente era um mau caráter, incapaz, traiçoeiro e sujo. Mas, na penumbra, bem naquele canto dos bastidores onde o sol raramente clareia, ela fechou, paralelamente, um acerto com o outro. Trabalhou para os dois. Depois das urnas abertas, não se sentiu constrangida. Primeiro abraçou com lágrimas nos olhos o derrotado. Dali seguiu para o local onde o vitorioso comemorava. E festejou.

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