segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Crônica - Sanfona, banqueta e caixa de papelão

Os olhos daquele homem não enxergam as pessoas que passam, embora ele tenha uma visão praticamente perfeita. Embaçados pelo receio do seu espetáculo não causar agrado, os olhos do homem preferem visualizar apenas a penumbra dos que chegam e vão diariamente, muitos a trabalho, outros a estudo e uma minoria a lazer. Mas o coração daquele homem é capaz de ver aqueles que entendem a sua arte e a sua necessidade e, por isso, retribuem com uma parada, mesmo rápida, e até uma moeda.
O homem é um músico, profissão que ele nunca na vida havia imaginado exercer. O seu boné surrado, acima dos cabelos grisalhos que entornam a cabeça de onde um rosto de expressão melancólica se sobressai, indica que ele era alguém acostumado a enfrentar o sol. Os botinões e as calças de brim cáqui, complementados pelo camisão xadrez em tom claro, dão ao homem o aspecto de quem trabalhou na roça por anos a fio.
As mangas curtas denunciam a pele grossa dos braços. Fosse possível observar as palmas das mãos, é provável que se destacariam os calos provocados pelos cabos dos enxadões. As unhas, porém, ficam visíveis e escancaram as marcas das atividades braçais. Encardidas, não escondem a lida com a terra num batidão de sol a sol, sem folga nos feriados e fins de semana em épocas de plantio ou colheita. A timidez manifestada no jeito humilde de se apresentar reforça a suspeita de que aquele homem hoje está num lugar que não gostaria de estar.
Então por que ele se dá ao sacrifício de ocupar aquele palco improvisado sob a sombra de um edifício do centro de Londrina para tocar a sanfona de manhã até o fim da tarde, sem intervalo para uma refeição no almoço? Sabe-se que ele chega ao local junto com o horário da abertura do comércio. Traz, além da sanfona, uma banqueta de madeira e uma caixa de papelão vazia. Aliás, de dentro dela somente se vê um pedaço de papel amassado com o manuscrito: "Ajude um artista". Quem o entende percebe também entre a bagagem que o homem carrega a habilidade dos dedos das mãos que dedilham o instrumento, a sensibilidade dos ouvidos e a generosidade do coração, que premia os saudosistas com canções muito raramente encontradas nos meios modernos de reprodução.
Há quem imagine que o homem um dia se cansou da monotonia dos campos, mais por força do pouco dinheiro que a terra lhe dava para sustentar a família. Então mudou-se para a cidade e viu-se desempregado. Resolveu virar artista para ganhar moedas com a música que sai da sua sanfona. Outros apostam que o homem decidiu trocar a dureza do trabalho braçal pela poesia das músicas que invadem o agitado e frio centro da metrópole. As moedas, depositadas na caixa vazia de sapatos, seriam apenas uma contribuição.
Mas os que enxergam além das melodias dizem sem rodeios: o homem é um trabalhador e tem uma família para sustentar num meio que lhe é hostil. Sem onde usar suas mãos para arar a terra e colher os frutos, faz do que era o seu passatempo um meio de garantir a mesa com os donativos que raramente cobrem o fundo da caixa de papelão. Hoje o homem é um artista do Calçadão de Londrina. Divide o palco com tantos outros que engolem fogo, batem a zabumba, pintam, bordam e tecem os pedaços da vida num mágico cotidiano de ilusões e tristezas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: