Éramos três crianças e nada do que fazíamos naqueles momentos tinha
importåncia para o nosso futuro. Vivíamos o nosso tempo, num mundo que só a nós
pertencia e nos contentava, e mesmo quando colocávamo-nos a meditar sobre o
amanhã os nossos planos eram paupáveis, possíveis de serem contornados pela
imaginação, tão singelos pareciam.
Mamãe tinha um rosto de menina. Seus cabelos longos caiam sobre os ombros
e emolduravam o rosto moreno. Era uma mocinha apaixonada pela família - eu,
Mara e papai -, e embora muito criança, eu já experimentava um leve sentimento
de ciúme. Dos momentos, por exemplo, que ela se aproveitava das nossas
distrações para roubar um beijo de papai. Ou de quando se entregava a Mara e eu
me sentia abandonada no canto do sofá, até que ela viesse, seus braços abertos,
para me compensar com um abraço e muitos beijos que eu fazia de conta me
incomodar.
Os dias eram iguais, fosse domingo ou quinta-feira. Mas as nossas
expectativas quanto ao próximo minuto, ao o que estava por acontecer, sempre se
renovava. Porque os nossos instantes sempre eram de surpresas. Um novo abraço
de mamãe nunca se parecia com o de antes, cada beijo tocava no meu rosto e se
abrigava no meu coração com uma intensidade incomparável. Ainda assim, tínhamos
nas tardes dos sábado um evento diferente, longe da nossa gostosa rotina de
esperar, de segunda à sexta, pela chegada de mamåe da escola onde lecionava.
Íamos nós três no final do dia para a chácara da comunidade religiosa a
qual meus pais pertenciam. Havia um alojamento reservado para nós e
invariavelmente, após o jantar, corríamos para nos acomodarmos. Papai, obrigado
a cumprir plantão devido a sua atividade profissional, raramente nos
acompanhava naquelas oportunidades. Então o mundo e o momento eram das três
mulheres da casa. Meninas, que não falavam das coisas das mulheres, nem da
moda, nem dos ídolos da televisão.
Éramos três crianças, que sob o comando de uma de nós, seja com um olhar,
fosse com um gesto, nos entregávamos a uma guerra sem vencedor e vencidos. Uma guerra
de amor,com as nossas almofadas acertando os corações uma da outra. Assim
perdíamos horas e ganhavamos no amor. Riamos uma das outras, abominavamos
ataques de surpresas. Na verdade, perder era ser compensada por mamãe com
aquilo que ela tinha de mais sublime, o amor. Então, em certo momento, tomadas
pelo sono, deixávamo-nos vencer.
Eu ainda olho para o passado e tento buscar nas lembranças, que parecem
querer me ferir, as glórias daquelas guerras. Mas percebo que as batalhas são
outras. E a minha guerra já não premia todos os lutadores com provas de paixão
e amor manifestadas em abraços e beijos.
Mamãe ainda conserva o rosto de menina, mas seus olhos, mesmo quando
sorriem, denunciam tristeza, pois papai se foi. Mara, na sua adolescência,
parece querer cuidar de mim. Penso que eu é que deveria baixar a guarda das
perdas que acumulo na alma, como a da súbita ida de papai, para devolver a Mara
e a mamãe as almofadas que fizeram a nossa guerra e nos tornaram felizes mesmo
nas nossas derrotas. Sim, porque naquelas batalhas da infåncia nunca perdemos e
nunca ganhamos, apenas solidificamos a nossa vida com atitudes que nos
ensinaram a amar.
No entanto, alinho-me como a guerreira que não quer sucumbir, mas não
estende os braços para abraçar as parceiras de todas as minhas batalhas, Mara e
mamâe.
E como eu tenho tentado. Mas só consigo seguir o olhar triste de mamãe e
a carência de Mara, sem reagir, sem abrir o meu peito para brincar a nossa
guerra das almofadas.