domingo, 16 de junho de 2013

Conto - Guerra das almofadas



Éramos três crianças e nada do que fazíamos naqueles momentos tinha importåncia para o nosso futuro. Vivíamos o nosso tempo, num mundo que só a nós pertencia e nos contentava, e mesmo quando colocávamo-nos a meditar sobre o amanhã os nossos planos eram paupáveis, possíveis de serem contornados pela imaginação, tão singelos pareciam.

Mamãe tinha um rosto de menina. Seus cabelos longos caiam sobre os ombros e emolduravam o rosto moreno. Era uma mocinha apaixonada pela família - eu, Mara e papai -, e embora muito criança, eu já experimentava um leve sentimento de ciúme. Dos momentos, por exemplo, que ela se aproveitava das nossas distrações para roubar um beijo de papai. Ou de quando se entregava a Mara e eu me sentia abandonada no canto do sofá, até que ela viesse, seus braços abertos, para me compensar com um abraço e muitos beijos que eu fazia de conta me incomodar.

Os dias eram iguais, fosse domingo ou quinta-feira. Mas as nossas expectativas quanto ao próximo minuto, ao o que estava por acontecer, sempre se renovava. Porque os nossos instantes sempre eram de surpresas. Um novo abraço de mamãe nunca se parecia com o de antes, cada beijo tocava no meu rosto e se abrigava no meu coração com uma intensidade incomparável. Ainda assim, tínhamos nas tardes dos sábado um evento diferente, longe da nossa gostosa rotina de esperar, de segunda à sexta, pela chegada de mamåe da escola onde lecionava.

Íamos nós três no final do dia para a chácara da comunidade religiosa a qual meus pais pertenciam. Havia um alojamento reservado para nós e invariavelmente, após o jantar, corríamos para nos acomodarmos. Papai, obrigado a cumprir plantão devido a sua atividade profissional, raramente nos acompanhava naquelas oportunidades. Então o mundo e o momento eram das três mulheres da casa. Meninas, que não falavam das coisas das mulheres, nem da moda, nem dos ídolos da televisão.

Éramos três crianças, que sob o comando de uma de nós, seja com um olhar, fosse com um gesto, nos entregávamos a uma guerra sem vencedor e vencidos. Uma guerra de amor,com as nossas almofadas acertando os corações uma da outra. Assim perdíamos horas e ganhavamos no amor. Riamos uma das outras, abominavamos ataques de surpresas. Na verdade, perder era ser compensada por mamãe com aquilo que ela tinha de mais sublime, o amor. Então, em certo momento, tomadas pelo sono, deixávamo-nos vencer.

Eu ainda olho para o passado e tento buscar nas lembranças, que parecem querer me ferir, as glórias daquelas guerras. Mas percebo que as batalhas são outras. E a minha guerra já não premia todos os lutadores com provas de paixão e amor manifestadas em abraços e beijos.

Mamãe ainda conserva o rosto de menina, mas seus olhos, mesmo quando sorriem, denunciam tristeza, pois papai se foi. Mara, na sua adolescência, parece querer cuidar de mim. Penso que eu é que deveria baixar a guarda das perdas que acumulo na alma, como a da súbita ida de papai, para devolver a Mara e a mamãe as almofadas que fizeram a nossa guerra e nos tornaram felizes mesmo nas nossas derrotas. Sim, porque naquelas batalhas da infåncia nunca perdemos e nunca ganhamos, apenas solidificamos a nossa vida com atitudes que nos ensinaram a amar.

No entanto, alinho-me como a guerreira que não quer sucumbir, mas não estende os braços para abraçar as parceiras de todas as minhas batalhas, Mara e mamâe.

E como eu tenho tentado. Mas só consigo seguir o olhar triste de mamãe e a carência de Mara, sem reagir, sem abrir o meu peito para brincar a nossa guerra das almofadas.


Conto - Favo de Mel


Tão doce! Esparramado na boca leva à cabeça a sensação de plenitude. Cor de ouro, o licor faz flutuar e a inconsciência dos efeitos levanta questões lúcidas: mantê-lo na boca ou engolir?

Devaneios são temporais. Chegam e vão sem avisos. Duram o tempo que for preciso e quem estabelece esta regra é o acaso. Inútil tentar prolongá-los. Desnecessário pensar em abreviá-los, pois eles se vão muito antes da percepção de uma indesejada presença. Partem enquanto há deleite.

Favo de Mel! Foi assim que eu a conheci. Tal qual o prêmio das abelhas aos que ousam provocar os enxames, o beijo dela era alucinante.

Entrei indefeso e atordoado na armadilha que ela armou. Sem luvas, cara e peitos descobertos, pés descalços avancei pela trilha que ela riscou em seu bosque. Venci labirintos e refiz trechos, sujeito às condições que ela impunha após cada trecho percorrido.

Foi um tempo sem medida, nem longo e nem curto. Se choveu durante o caminho a água foi bem-vinda. Se a estiagem secou a umidade o calor que veio foi agradecido. Frio nunca senti. Nem sono e cansaço. A preguiça embrulhei e deixei num canto lá atrás.

No fim da trilha ela armou a sua arapuca: o coração aberto, feito uma vasilha que mel não tinha a transbordar. Mas derramava amor, tão doce e licoroso quanto o líquido alucinógeno de ouro catado dos favos que as abelhas, desafiadoras e provocativas, escancaram aos olhos dos desprevenidos.

Enchi a boca com os beijos dela. Transbordei meu coração com o amor dela. Favo de Mel! Assim ela se apresentou a mim. Agora ela me deixa amargo num lugar sem armadilhas. Ela fechou a sua arapuca e me deixa fora. Eu volto daquela consentida prisão e penso que nunca estive atado por inteiro. Só senti o sabor precário da plenitude e fugi, como fazem todos os que apenas aceitam o doce.

Conto - Estações dos anos


Um dia ele pediu um pão e um gole de café. Ela preparou uma bandeja farta: pão, café, leite, manteiga, suco e frutas.Mal começava o verão e nas rebeldias do clima, que na primavera trouxe frio de inverno, cabia também pedir um agasalho. Ela se ofereceu com um abraço.Passou o verão e estendeu seu destempero ao outono. Quente, de mormaço, suor e garganta seca. Ele pediu um alívio e ela respondeu com um beijo.

O inverno surpreendeu com afagos. A primavera aprofundou as carícias. O outono revelou peitos arfantes. O verão foi de paixão e nem o sol quente foi tortura.

Fez-se então outro outono que de novo chamou o inverno, que preparou como pode o tempo que seria a primavera, que previu desde muito cedo o clima que viria no verão.

Ele pediu mais uma bandeja farta. Ela nem o pão trouxe. E foi assim até a mudança da estação, quando ele cobrou um abraço e ela negou as mãos. 

O período quente chegou muito antes do verão, ainda na primavera, justo no dia em que ele quis um beijo para acalmar a sede de amor. Se ao menos com água ela retribuísse...

Afagos, carícias, arfar do peito, sussurros, gemidos e paixão passaram a compor uma lista de desejos que ele manifestava sem tanta convicção de merecer. Ela retrucava com desprezo.

Foram-se mais quatro estações. Tampouco piedade sobrava naquela relação. As cobranças dele deixaram de ser feitas. Ela, tão perto, colocava-se distante.

Ele havia construído sua vida com ela sobre uma plataforma de pedidos sem contrapartidas. Recebeu e pouco deu. Apostou saber construir o clima certo para qualquer estação. 

Ela fez a princípio que não entendeu. E não foi de pronto que se rebelou. Apenas fugiu aos pouco. Ignorou com leveza. Desdenhou com charme. Foi sutil e nunca se viu obrigada a dizer não. Apenas evitou atos que antes pareciam sentimentos e se mostraram meras cenas de amor.

Foi quando ele decidiu se aninhar em outros braços. Descompromissado, pediu pão e ganhou bandeja farta. Insinuou frio e recebeu abraços. Implorou calor e faturou paixões. 

E ela, aliviada, foi buscar novos verões. No caminho viveu primaveras, outonos e invernos mais promissores do que os de antes. Correu outros riscos de confundir paixão com amor. Mas, consciente, soube medir a oferta para a proporção do que lhe era dado. E assim passou a ter mais do que dava. 

Crônica - Barcos são feitos de rascunho


Fiz um barco de papel e escrevi no casco: agora eu vou. Ainda me falta um rio largo e de águas mansas, suficiente para ir. O mar causa arrepios. Minha embarcação é precária, construi com folhas de um caderno cujas notas traçadas com um lápis quase se apagaram. Faz tanto tempo que usei a matéria-prima para rascunhar poemas que nunca chegaram ao fim. Quando acertei na métrica me faltaram as rimas. E foi que achei as duas coisas justo no momento em que findou a inspiração.

Procurei na gaveta do armário um pouco de criatividade. Nada que encontrei tinha uma embalagem avisando que aquilo continha talento. Nem sei de que jeito ela vem, se é pó ou pomada, líquido ou spray, precisa ferver ou se toma frio. Ignoro se causa um impacto e as letras, assim por diante, correm livres e ligeiras pelas linhas. Queria muito encher páginas dizendo coisa com coisa. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis e vinte, vinte e um, quanto mais. Completas, em letras miúdas e pontuação conferida. Exclamação quando couber, interrogação se preciso, vírgulas nos lugares exigidos e reticências. Muitas reticências permitidas em frase compostas especialmente para serem fechadas com elas.

Experimentei temas variados. Abusei do amor, sou confesso. A leitura do que grafei ficou sem ritmo, longe pensar em uma declamação. Fucei as entranhas do abstrato e causei desastres. Saíram declarações pontuais e pareceram vulgares, batidas e enfadonhas. Decidi aperfeiçoar o concreto e o resultado foram afirmações cotidianas sobre aquilo que é trivial. Por isso a prosa que propus deu em textos descritivos de tamanho, cor, formato, abrangência, localização, espessura e peso.

Foi assim que eu virei um construtor de barcos. Conheço modelos diferentes, sei fazer as dobras sem causas rupturas nos cascos. A chuva já demora, mas ela vem a qualquer hora dessas. Sou paciente e espero. Quando a água descer vou junto, nos meus barcos, e levo neles poemas que tentei escrever e que viraram rascunhos, perfeita matéria-prima para construir embarcações. Agora eu vou. Para algum lugar onde haja permissão para rabiscar sem rima e sem métrica o sonho da viagem para onde se quer ir. As águas é que vão me levar e não terei rascunho para voltar. Que venha a chuva, porque agora eu vou. 

Conto - A face oculta


De frente são olhos claros. Marcantes porque miram com firmeza o objeto que se coloca adiante. Ou algo. Ou alguma coisa. Ou alguém. Sob sobrancelhas desenhadas eles se destacam. Redondos e milimetricamente postos, rebaixam com delicadeza a parte de onde o nariz se anuncia, leve, reto, pequeno e atraente.

Nem arrebitado e nem chato, mais fino do que largo, dispensa qualquer tipo de retoque. O nariz é perfeito e feito para aquele formato de rosto, que começa com o ovalado sutil da testa e desce afinando sensato até o queixo, onde se vê o quadrado suave, como se os contornos tivessem sido moldados por mãos acostumadas à arte da perfeição.

Não há exageros nas curvas e nas dobras mais acentuados. O reto é sequência natural de um projeto bem feito. A boca é sensual. Tem lábios suficientemente grossos e tão longos quanto o desejado. Está na medida certa para a pretensão.

É possível observar o rosto de frente sem lê-lo. Diria-se no bater dos olhos que é um rosto naturalmente lindo que dispensa acertos com a trucagem dos cremes, batons, sombras e tantos outros recursos contidos em embalagens miraculosas. Algum realce feito com senso acrescentaria, é verdade.

Haveria, no entanto, dificuldade para folhear a expressão que o rosto exprime. É pelo medo de ler o que os olhos dizem, o que os lábios sugerem e o olfato a que as narinas estão acostumadas. O rosto constrange quem o encara quando passa do ponto de apenas enxergar e se quer ver.

Feito uma barreira levantada espontaneamente, o rosto impede a quem o encara uma interpretação. E fica-se sem saber se ele está sereno ou tenso. Se sorri ou está triste. Se quer ou repugna. Se pede ou dá. O rosto é a face oculta de uma linda mulher que se olha de soslaio, temendo constranger a beleza que ele é.

Crônica - Os sapatos verdes

Parecia esportivo na vitrina. Camurçado, dava impressão de leveza e conforto. Sem cadarços, lembrava agilidade ao calçar. E por que não, liberdade. Amarras, afinal de contas, é sinônimo de prisão.

O solado, de plataforma de borracha, deu idéia de maciez. Era pisar e flutuar. E o preço? Muito abaixo dos demais modelos expostos na vitrina sob os efeitos do fluorescente que ilumina a loja e dos raios de sol que em alguns períodos do dia invadiam o lugar.


Bastaram dez minutos de espera para a atendente aparecer e se colocar à disposição. O homem pediu para experimentar. Ajeitou-se numa banqueta, descalçou os tênis e ajeitou as meias, de forma que os furados ficassem nas solas dos pés e ninguém reparasse no estado precário em que se encontravam.


Foram mais dez minutos de espera até a moça retornar com a caixa contendo um pé. O outro teria que ser retirado da vitrina, pois era o último para do modelo e da numeração adequada. Quando os dois pés foram colocados juntos, nem se reparou à luz ambiente alguma diferença na tonalidade.


Na prova, satisfação total. Os sapatos de camurça caíram como luvas. Se amoldaram nos pés do homem sem folga e sem aperto. Nem pegou nas pontas, onde as unhas encravadas costumavam incomodar. Na articulação obedeceu suprema, sem rangido e muito menos pegar aqui ou ali. Tampouco saiu do calcanhar, pois acompanhou os momentos dos pés como fiel protetor.


O negócio foi fechado. No embrulho o homem até dispensou a caixa, que já tinha um rasgo na tampa e um amassado numa das laterais. Os sapatos foram para a casa do comprador em saco plástico do estabelecimento. Assim não fez tanto volume na mochila e evitou desconforto no ônibus.


A estréia foi marcada para sábado. O plano incluía um par de meias seminovo, lavado somente duas vezes após a compra, a calça jeans que ainda mantinha um azul mais forte, a camiseta branca e nada mais.


Fez sol no sábado, que sorte. Os sapatos ganharam a porta da sala e depois o portão. Na calçada, à primeira batida do sol, denunciaram diferenças. Um pé, aquele mantido na caixa, era verde musgo. O outro que ficou na vitrina pareceu uma mescla entre o amarelado encardido, o marrom e um verde cansado em alguns pontos.


Quarteirões adiante, bem na boca do estacionamento do supermercado, um engraxate cobrou dez reais para passar uma tinta marrom nos calçados. E o novo ficou reformado.