sábado, 10 de outubro de 2020

CRÔNICA – A criança que fugiu de nós

Eu a vejo, furtivo olhando atrás, com mais medo do que saudade. Temo encontrá-la decepcionada comigo, por tê-la deixado partir sem nenhuma despedida e muito menos compaixão.

Fui eu, na verdade, quem saiu dela, a minha criança baixinha, relativamente obesa, calção de elástico desbotado e chinelos de dedo encardidos. Foi ela que, por mim, brincou de bola de gude, queimou a cara soltando pipas, bateu bola no campo em frente de casa, desceu de carrinho de rolimã a rua de barro. E fez travessuras, atirando mamona com estilingue nos muros recentemente feitos e manchando a pintura.

Foi também ela, a criança que havia em mim, que subiu incontáveis vezes o pé de manga rosa. E lá em cima saboreou a fruta e com a cara lambuzada atirou o caroço no quintal da vizinha. E havia também o limão rosa, de cheiro forte e época dos mandorovás  grudados nos galhos mais altos. Vítimas, coitados, da travessura do menino que seguia sempre a criança que havia nele. E em vez de borboletas, a espécie era, uma por uma, derrubada no chão e queimada com a tocha de fogo na ponta de um cabo de vassoura de palha.

Não há como julgar ou ser julgado hoje, pois a criança que havia em mim fugiu, assim como as que compartilhavam a infância com os meninos e as meninas da vizinhança. Não há, porque a minha criança já não está em mim e eu, sem ela, tornei-me cético das coisas que aquela companheira me fazia acreditar.

Como a altura do escorregador da praça, sua escada apontada para o céu e, lá de cima, uma descida que levava a barriga para as costas e a imaginação para o profundo lugar dos sonhos.

E outros brinquedos, tão precários em quantidade naqueles tempos, mas disponíveis quando a vontade de rodar, balançar, escorregar, subir ou descer mandava.

A criança que havia em mim brincou nas ruas de pega-pega, esconde-esconde, amarelinha, bola queimada, roda pião, mãe da rua e coisas inventadas na hora, para passar o tempo juntos aos colegas.

A criança que havia em mim demorou para saber o que se podia assistir na televisão, pois não havia alguma delas em casa. A criança que havia em mim nem imagina que um dia a meninada do futuro teria que brincar com amigos atarefados, com os dedos em seus celulares.

A criança que havia em mim era tão ingênua que só conhecia as coisas do namoro quando os meninos trocavam os calções de elástico pelas calças compridas de brim. E as meninas precisavam, antes de sonhar com beijos, merecer exaustivas recomendações das mães para se precaverem dos perigos do amor.

No tempo da minha criança os dias, semanas, meses e anos eram contados em dobro. E a despedida dela era sem tristeza. Ela se ia, como se fosse coisa da vida. E eu assim aceitei a sua ida, porque era o que devia ser.

Mas que vontade tê-la de volta, esta minha criança que eu preciso tanto agora, após imaginar que o passado fosse algo numa caixa de papelão para ser guardado por um tempo e depois decartado.

Minha caixa do passado, minhas coisas que já foram descartadas, minha adolescência, a juventude, o homem maduro e, agora, na velhice, a vontade de buscar em tudo o que joguei a minha criança que eu deixei ir.

 







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