segunda-feira, 21 de setembro de 2020
Crônica - Chuva...
Chegou sem fazer alarde, disfarçando o peso da ausência prolongada ao ceder à estiagem a prevalência da seca e da poeira. Pingou ralinho aqui e ali, borrando levemente os vidros das janelas das casas com o marrom da sujeira.
Ainda assim causou alegria. Há tanto tempo, afinal, ela não vinha. Logo parou, desafiadora, como se avisando: ``Paro se me convier...``
Refém do tempo, a mulher contou as peças de roupas a serem lavadas. E eram
muitas. Mas ponderou, falando consigo mesma: ``Acumula para amanhã ou depois, mas a chuva é bem vinda. Que venha e fique por bom tempo``.
Lá embaixo, onde a água é cara e por isso não chega nas torneiras, o homem de idade avançada aproveitou os latões de tintas feitos baldes e os enfileirou sob as goteiras formadas pelas dobras do plástico negro que cobria parte da varanda do puxadinho usado como moradia. Água para beber, lavar, banhar, cozinhar, viver.
Já nessa hora a chuva descia grossa, persistente, fazendo quase um frio na manhã de uma primavera que havia começado justo naquele dia, muito quente.
O menino, preso numa quarentena que ele compreendia de longe, mais por causa da máscara que é obrigado a usar do que por conhecimento da causa, se imaginou brincando de escorrega na enxurrada da rua sem asfalto que desce para um matagal.
Lá em cima, na parte mais nobre do bairro, houve um garoto que pousou o smartphone na mesa e espiou a molhaceira lá fora. Um dia, ainda mais novo, o pai havia ensinado a fazer um barco de papel. Mas esqueceu como era e recorreu ao telefone, inseparável, onde pesquisou sobre veleiros de verdade levados pelas correntes de ar.
O síndico do condomínio luxuoso fincado verticalmente num bairro de luxo dispensou as faxineiras da tarefa de uma empurrar o esguicho elétrico e outra varrer a sujeira com a água. Por algum tempo, enquanto a chuva caiu, os aparelhos de ar condicionado se calaram de seu barulho enjoativo e economizaram energia. O esguichou poupou o tão esperado líquido, pois a água caiu do céu.
Na periferia, o homem, já aposentado, reclamou que não poderia queimar no quintal as folhas secas que caíram das árvores no fim de semana. E não se fez, por sorte dos vizinhos, fumaça e poluição durante a chuva.
Parecia que a terra ressurgia enquanto a chuva, ainda que tímida, pintava as copas das árvores de verde.
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