sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

HISTÓRIA – Canteiro de obras, escola da vida

Um canteiro de obras é uma escola que ensina: basta aprender o básico para sermos, sempre, serventes em tudo



Osvaldo S. Martins

                O dia mal amanhecera e a roupa de guerra já estava no corpo. Ou melhor, roupa de viagem,
pois a de labuta ficava no canteiro de obras.
                A viagem, diariamente, vencia um percurso razoável de casa até a futura algodoeira. Uma baldeação era necessária para chegar ao destino de todos os dias.
                O velho caldeirão de alumínio, com o almoço carinhosamente preparado todas as madrugadas, fazia de minha mãe uma exímia cozinheira. A tampa precisava ser entrelaçada com um reforçado barbante, para garantir a conservação do tão saboroso almoço.
                Na mochila ia junto a garrafinha de café ou chá, que ficava reservada para a segunda alimentação do dia, que era o café da tarde.
                A viagem era sempre uma aventura, pois além dos costumeiros passageiros que embarcavam para os mais diversos destinos, íamos nós, com outros pedreiros, carpinteiros e serventes. Todo o caminho era de muita conversa sobre os acontecimentos do cotidiano, mesmo quando os assuntos careciam de novidades.
                A lembrança de casa ia aos poucos ficando para trás, pois a correria e a interação com os colegas de trabalho levava nossos pensamentos para o que estaria por vir no canteiro de obras.
                Mas sabíamos que, embora a tarefa a ser cumprida no dia fosse de sol a sol, tudo o que fazíamos era com amor. E o tempo passava sem que percebêssemos.
                Os dias transcorriam árduos sim, E cansativos ao extremo, de segunda a sábado, sem nem considerar as datas marcadas de vermelho no calendário. Pois a jornada não previa feriados.
                Às vezes caia uma chuva leve e insistente. No inverno o frio castigava muito. Mas todos os trabalhadores se sentiam peças importantes. Entre tantos profissionais habilidosos e esforçados, cada um desempenhava a sua tarefa.
                E dava-se um sumiço no cansaço quando, após o almoço, da prosa com os mais velhos vinham histórias de um tempo em que ainda eu nem era nascido.
                Falavam de imigrantes, da derrubada de matas, de vida em um mundo onde tudo era difícil. De novas cidades nascendo e até de guerra, pois um ou outro daqueles que tinham mais idade estivera lá um dia, num campo de batalha de verdade.
                Meu pai administrava a obra. Ele dava duro como qualquer outro e, às vezes, até mais. Era o exemplo da sabedoria, arrastando seus subordinados.
                Eu, que desempenhava a humilde função de servente, fui incumbido de ser o “guarda livros”. Deixei a enxada, a carriola e a picareta de lado por uns momentos e abracei a caneta.
                Naquela função eu fazia o controle das horas trabalhadas e calculava o valor a ser pago a cada um, para providenciar o respectivo recibo de quitação. Sempre com a precaução de rezar na folha do recibo em branco o termo “quitação plena, geral e irrestrita”, para que não houvesse reclamação posterior.
                Assim era feita a folha de pagamento, numa velha banca de montagem de estruturas de ferro. Não havia uma sala com escrivaninha. Todas as tarefas eram exercidas em um ambiente rústico.
                Repetia-se muito naquele tempo que o que era tratado não era caro. Pagava-se o combinado, sem trapaça.
                No enorme canteiro de obras, as paredes iam, aos poucos, avançando. Terminava semana, começava outra e mais outra, e o desenho esboçado no papel começava a tomar forma, sobre um chão duro de terra vermelha.
                A construção brotava de uma fundação que tão penosamente e de forma manual fora executada, para alicerçar com segurança a obra tão esperada. Hoje, o sacrifício manual se resume ao equipamento mecânico e hidráulico, o “bate estaca”, deixando no passado o pesado sentimento de resistência da terra, na perfuração manual dos alicerces.
                Assim o tempo corria e todos corriam contra o tempo, para que a imaginada algodoeira ganhasse a forma de enormes barracões.
                Ao lado, um enorme terreno começava a ser preparado para uma cultura até então desconhecida. Uma nova lavoura, jamais vista na região, que viria ocupar o lugar da velha cultura do café que as geadas haviam sacrificado.
                Tudo ao mesmo tempo, pois estávamos construindo uma máquina de beneficiar algodão e ao lado testemunhávamos o início do cultivo do algodão.
                Enquanto as paredes subiam, os pés de algodão cresciam e ganhavam altura para depois, como se estivesse acenando em sinal de paz, abrir seus frutos, conhecidos de maçãs, em um enorme tapete branco de visão única e maravilhosa.
                Com o avanço da edificação e a cultura em desenvolvimento, outra novidade podia ser vista: aquele velho e sábio senhor, que montava uma arcaica parafernália. Por curiosidade sabíamos que aquilo viria a ser usado para beneficiar o algodão plantado ao lado, separando sua fibra para produtos têxteis e farmacêuticos e a semente para óleo, rações e outras infinidades.
                Tudo era novidade para todos. Por isso os momentos naquela construção foram mágicos. Momentos de aprendizado e descoberta. De conhecer novas pessoas, novas culturas, novas engenharias mecânicas e preencher o tempo e o espaço como poucos puderam fazer.
                E a cada dia, ao encerrar a jornada, a rotina era a mesma. Roupa suja pendurada no quartinho de ferramentas do canteiro de obras e roupas de viagem vestidas por homens cansados.
                Já em casa, o banho rápido alivia o cansaço. A janta é feita às pressas. E outra batalha estava pronta para começar na escola, onde as aulas terminavam às onze da noite e a luta era para vencer o sono. Como estudar e aprender com um corpo cansado e a cabeça pedindo travesseiro para aliviar o peso do dia?
                Pois era assim que se aprendia na escola da vida, onde os canteiros de obras viravam salas de aula a céu aberto.
                Meu pai foi o professor do mais alto grau que um educador poderia ter. Sem a cultura didática, mas com a cultura aprofundada da prática que a tudo se sobrepõe.
                Não me deu diploma, mas transferiu conhecimento, caráter e sabedoria para enfrentar o mundo de cabeça erguida, com ensinamentos tão profundos de quem sabia apenas assinar o próprio nome.
                Foi um tempo de dar saudade. Dos canteiros de obras onde a vida me colocou, das pessoas com quem compartilhei as marmitas, dos profissionais e, sobretudo, do caráter que todos possuíam.
                Quantas lições, que aprendizado. E a vida, enfim, ensinando: não precisamos aprender tudo e sim, o básico, para sermos sempre serventes em tudo, mesmo que cheguemos a ser mestre, algum dia.


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