Um canteiro
de obras é uma escola que ensina: basta aprender o básico para sermos, sempre,
serventes em tudo
Osvaldo S.
Martins
O dia mal amanhecera e a roupa
de guerra já estava no corpo. Ou melhor, roupa de viagem,
pois a de
labuta ficava no canteiro de obras.
A viagem, diariamente, vencia um
percurso razoável de casa até a futura algodoeira. Uma baldeação era necessária
para chegar ao destino de todos os dias.
O velho caldeirão de alumínio, com
o almoço carinhosamente preparado todas as madrugadas, fazia de minha mãe uma
exímia cozinheira. A tampa precisava ser entrelaçada com um reforçado barbante,
para garantir a conservação do tão saboroso almoço.
Na mochila ia junto a garrafinha
de café ou chá, que ficava reservada para a segunda alimentação do dia, que era
o café da tarde.
A viagem era sempre uma
aventura, pois além dos costumeiros passageiros que embarcavam para os mais
diversos destinos, íamos nós, com outros pedreiros, carpinteiros e serventes.
Todo o caminho era de muita conversa sobre os acontecimentos do cotidiano,
mesmo quando os assuntos careciam de novidades.
A lembrança de casa ia aos
poucos ficando para trás, pois a correria e a interação com os colegas de trabalho
levava nossos pensamentos para o que estaria por vir no canteiro de obras.
Mas sabíamos que, embora a
tarefa a ser cumprida no dia fosse de sol a sol, tudo o que fazíamos era com
amor. E o tempo passava sem que percebêssemos.
Os dias transcorriam árduos sim,
E cansativos ao extremo, de segunda a sábado, sem nem considerar as datas
marcadas de vermelho no calendário. Pois a jornada não previa feriados.
Às vezes caia uma chuva leve e
insistente. No inverno o frio castigava muito. Mas todos os trabalhadores se
sentiam peças importantes. Entre tantos profissionais habilidosos e esforçados,
cada um desempenhava a sua tarefa.
E dava-se um sumiço no cansaço quando,
após o almoço, da prosa com os mais velhos vinham histórias de um tempo em que
ainda eu nem era nascido.
Falavam de imigrantes, da derrubada
de matas, de vida em um mundo onde tudo era difícil. De novas cidades nascendo
e até de guerra, pois um ou outro daqueles que tinham mais idade estivera lá um
dia, num campo de batalha de verdade.
Meu pai administrava a obra. Ele
dava duro como qualquer outro e, às vezes, até mais. Era o exemplo da
sabedoria, arrastando seus subordinados.
Eu, que desempenhava a humilde
função de servente, fui incumbido de ser o “guarda livros”. Deixei a enxada, a carriola
e a picareta de lado por uns momentos e abracei a caneta.
Naquela função eu fazia o
controle das horas trabalhadas e calculava o valor a ser pago a cada um, para
providenciar o respectivo recibo de quitação. Sempre com a precaução de rezar na
folha do recibo em branco o termo “quitação plena, geral e irrestrita”, para
que não houvesse reclamação posterior.
Assim era feita a folha de
pagamento, numa velha banca de montagem de estruturas de ferro. Não havia uma sala
com escrivaninha. Todas as tarefas eram exercidas em um ambiente rústico.
Repetia-se muito naquele tempo que
o que era tratado não era caro. Pagava-se o combinado, sem trapaça.
No enorme canteiro de obras, as
paredes iam, aos poucos, avançando. Terminava semana, começava outra e mais outra,
e o desenho esboçado no papel começava a tomar forma, sobre um chão duro de
terra vermelha.
A construção brotava de uma
fundação que tão penosamente e de forma manual fora executada, para alicerçar
com segurança a obra tão esperada. Hoje, o sacrifício manual se resume ao
equipamento mecânico e hidráulico, o “bate estaca”, deixando no passado o
pesado sentimento de resistência da terra, na perfuração manual dos alicerces.
Assim o tempo corria e todos
corriam contra o tempo, para que a imaginada algodoeira ganhasse a forma de
enormes barracões.
Ao lado, um enorme terreno
começava a ser preparado para uma cultura até então desconhecida. Uma nova
lavoura, jamais vista na região, que viria ocupar o lugar da velha cultura do
café que as geadas haviam sacrificado.
Tudo ao mesmo tempo, pois estávamos
construindo uma máquina de beneficiar algodão e ao lado testemunhávamos o
início do cultivo do algodão.
Enquanto as paredes subiam, os
pés de algodão cresciam e ganhavam altura para depois, como se estivesse
acenando em sinal de paz, abrir seus frutos, conhecidos de maçãs, em um enorme
tapete branco de visão única e maravilhosa.
Com o avanço da edificação e a
cultura em desenvolvimento, outra novidade podia ser vista: aquele velho e
sábio senhor, que montava uma arcaica parafernália. Por curiosidade sabíamos
que aquilo viria a ser usado para beneficiar o algodão plantado ao lado,
separando sua fibra para produtos têxteis e farmacêuticos e a semente para
óleo, rações e outras infinidades.
Tudo era novidade para todos.
Por isso os momentos naquela construção foram mágicos. Momentos de aprendizado
e descoberta. De conhecer novas pessoas, novas culturas, novas engenharias
mecânicas e preencher o tempo e o espaço como poucos puderam fazer.
E a cada dia, ao encerrar a
jornada, a rotina era a mesma. Roupa suja pendurada no quartinho de ferramentas
do canteiro de obras e roupas de viagem vestidas por homens cansados.
Já em casa, o banho rápido
alivia o cansaço. A janta é feita às pressas. E outra batalha estava pronta
para começar na escola, onde as aulas terminavam às onze da noite e a luta era
para vencer o sono. Como estudar e aprender com um corpo cansado e a cabeça
pedindo travesseiro para aliviar o peso do dia?
Pois era assim que se aprendia
na escola da vida, onde os canteiros de obras viravam salas de aula a céu
aberto.
Meu pai foi o professor do mais
alto grau que um educador poderia ter. Sem a cultura didática, mas com a
cultura aprofundada da prática que a tudo se sobrepõe.
Não me deu diploma, mas
transferiu conhecimento, caráter e sabedoria para enfrentar o mundo de cabeça
erguida, com ensinamentos tão profundos de quem sabia apenas assinar o próprio
nome.
Foi um tempo de dar saudade. Dos
canteiros de obras onde a vida me colocou, das pessoas com quem compartilhei as
marmitas, dos profissionais e, sobretudo, do caráter que todos possuíam.
Quantas lições, que aprendizado.
E a vida, enfim, ensinando: não precisamos aprender tudo e sim, o básico, para
sermos sempre serventes em tudo, mesmo que cheguemos a ser mestre, algum dia.
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