segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Crônica - A Velha Rota

Rua Juruá, Vila Nova, Londrina: o ponto de saída
Rua Araguaia, já na era do asfalto
Antes mercearia, o comércio ficava no meio do percurso
Walter Ogama

                Tantos retornos couberam nesse rumo. Sempre de dia, mas na rotação relâmpago do mundo, inexplicavelmente trazendo a quietude opaca da noite de repente. Da luz para o escuro, de um instante a outro.
Sonho. É para o Norte, onde o sol passa ao meio-dia, que se vai. Outra vez, num carro que não sai do lugar, nas passadas encolhidas do medo de ir, no pedal emperrado da bicicleta, ou na velha moto descendo enguiçada e sem ronco a rua que leva à linha de trem.
Sim, é sonho. Recorrente, teimoso, cansativo, quase pesadelo. Para que lado o inconsciente quer me levar? Sei, por enquanto, que é a um lugar onde nunca ousei voltar. Talvez por isso o breu da noite, quando a luminosidade matutina ou vespertina animava.
Nunca o sono desequilibrado me fez andar o caminho de ida, aquele, da infância inocente. A mãe puxando pela mão e as irmãs atrás, de vestidos simples e calçados velhos, porém conservados, enquanto o pai, mais adiante, arrumava a camisa para dentro das calças.
Subíamos, em cinco, a pequena distância da Rua Juruá, na Vila Nova, em Londrina, saindo do número cento e oitenta e um. A primeira esquina a transpor era a da Turiaçu. Ela chegava rápido, menos de meio quarteirão.
A via sem asfalto, com as duas marcas das rodas levando para frente em paralelas, daquele ponto mostrava a Araguaia, calçada com paralelepípedos, por ser a mais importante do lugar.
A referência para sair dela, poucos passos adiante, era a mercearia, na esquina da Cabo Verde, conhecida como “dois irmãos”. Não era o nome do estabelecimento, mas o apelido familiar mais aceito pelos fregueses.
A subida seguinte era cansativa. Três ou quatro quarteirões acima para chegar a linha do trem. Transpô-la era a brincadeira das crianças e a ousadia dos adultos, principalmente nos dias de chuva.
Antes a faixa de mata rasteira, com alguns pés de mamona carregados de munição para os estilingues, além do capim alto sujando as pernas. Depois de vencido os trilhos o elevado barranco de terra, com degraus feitos de enxada, para facilitar quem ia ou vinha.
Na poeira o desacerto era nos sapatos, cheios de pó. Na lama o problema era o barro, quando não vinha o pior: uma queda na subida ou na descida bem ali na escada do barranco e a roupa manchada pela terra vermelha.
Hoje, num único ponto antes de onde se ergue o prédio do consórcio intermunicipal de saúde - antes Samdu e depois pronto-socorro do então Inamps -, onde mamãe me levou no colo certa vez para costurar corte profundo na coxa com lata velha, construíram uma escada de cimento que leva da avenida que tomou o lugar da linha até uma rua sem saída e sem nome.
Mas naquele tempo, após a travessia dos trilhos e do barranco, andava-se vinte passos miúdos até o asfalto, lá em cima. A pavimentação já cobria a Travessa Goiânia, com apenas um quarteirão longo, via que terminava, para quem ia ao centro, na subida curta da Rua Amapá, até a esquina com a Belo Horizonte.
Ali já se via os prédios. Para as crianças aquilo já era a cidade, apesar de ainda faltar um trecho curto até chegar ao ponto onde uma pracinha, ladeada pela própria Belo Horizonte na frente, mostrava no outro lado os paralelepípedos da Rua Quintino Bocaiúva e se fechava com a Rua Mossoró fazendo um triângulo.
Pertinho ficava a quitanda de vovó e do vovô, bem na Belo Horizonte, entre a Fernando de Noronha e a Benjamin Constant. Com uma porta, já de fora mostrava a quem passava a maçã argentina, o abacaxi, a banana, as uvas, as verduras e as folhas. Havia uma espécie de galeria que permitia ao pedestre atravessar para a Quintino Bocaiúva, de onde se ia para a antiga Avenida Paraná, após atravessar a Benjamin Constant e a Rua Sergipe.
Estávamos, então, no centro de Londrina. Todos os anos, nos desfiles de Sete de Setembro e de Carnaval. Já nos finados seguíamos mais adiante, a pé, mamãe, papai, eu e minhas três irmãs, Mary, Daisy e Denise, até o Cemitério São Pedro, onde num túmulo coletivo jazia nossa irmãzinha mais nova e num túmulo com capela os parentes já falecidos descansavam.
Na volta, ganhávamos pipoca. Ou, nas idas ao centro durante os dias da semana para as compras de fim de ano, éramos agraciados pelos pais com pasteis de carne também no caminho de volta.
Mas é a partir da Belo Horizonte que o meu sonho, insistente, termina quando chego na mata após a travessia da linha férrea.  E evita que eu volte para a Rua Juruá, onde a velha casa de madeira me abrigou até o fim da adolescência.
Seria por causa das janelas e portas de taramelas que abriam ao bater do vento? Ou as frestas enormes entre as tábuas, no assoalho?
Quem sabe a inocência que me permitiu, na pobreza, uma vida de brincadeiras no barro, na poeira e nos quintais com manga, limão, cana-de-açúcar, abacate e maracujá-doce estejam pesando no meu ócio.

Porque agora, anos passados num mundo competitivo já ao cruzar da porta para sair de casa, eu tenho certo medo de ir ou voltar de qualquer lugar para outro.


Leste-Oeste antes linha do trem
Escada sem destino
A pracinha no triângulo da Belo Horizonte, Quintino
Bocaiúva e Mossoró


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