terça-feira, 7 de agosto de 2012

Crônica - boa noite camaradas...

Cem reais? Pagariam isso pela minha cama numa loja de usados? Dúvidas que eu tenho e me dou ao direito de transformar em perguntas. Ao longo da profissão tantos já me disseram: nunca comece um texto com perguntas. Mas é necessidade e provo no decorrer que faz parte do que manifesto.

Passa da meia noite e me aconchego no afundado feito pelo tempo no colchão, ao lado de minha companheira de 31 anos. Penso comigo mesmo que há conforto, apesar da modéstia. O madeiramento da cama é simples, mas está firme. O colchão é de espuma e me acomoda feito um abraço em suas imperfeições. O travesseiro, comprado há meses num supermercado, acolhe a minha cabeça do jeito que eu preciso: se mais alto, pressiono-o nos cantos; se mais baixo, acerto-o com palmada sutil e delicada.

Dariam pela minha cama setenta reais. Diriam que ganhariam apenas uns vinte na revenda. Quanto ao colchão alegariam que nem uma entidade filantrópica teria interesse nele. Por que eu os trocaria se eles me acalentam? Só para me dar ao luxo de dormir num conjunto de mil reais?

Pois quando me acocoro no afundado do colchão descartável sobre a cama de setenta reais não me preocupo com a possibilidade de uma noite de insônia. E realmente. Bastam alguns poucos minutos que nem noção tenho quantos. Durmo e só deixo o sono de manhã naquele instante do despertar de susto, por medo de perder a hora. É quando o corpo quer permanecer deitado e a inconsciência pede para fechar os olhos, dormir, sonhar. Mas o consciente, rigoroso, joga a coberta para longe e te levanta.

Tenho um dia de trabalho pela frente. Desafios a serem vencidos, provocações a serem enfrentadas, coisas boas e ruins, expectativas alinhadas, pretensões, vontade, criatividade e esforço. Tudo isso faz parte. Resolvendo cada questão solidifico para mim mesmo que sou justo a quem paga pela minha produção. Mesmo que atolado na trincheira do equívoco o empregador não meça o meu esforço, sei da minha capacidade e da minha importância. Até por isso eu durmo tranqüilo.

Ontem eu vi vocês, acusados de roubar, enganar, prevalecer, tapear, sacanear e usufruir do que não lhes pertence. Eu os vi nas cadeiras dos réus. Pareciam confortáveis abaixo das luzes dos holofotes, como se nenhuma das acusações fosse cabida. Quanto levaram? O que compraram com o dinheiro que levaram? O que responderam aos seus filhos quando estes lhes perguntaram: “É verdade, pai? É verdade, mãe?”

Então? Deitam-se numa cama de setenta reais com um colchão afundado pelo tempo? Ou compartilham com seus cônjuges dormitórios que não saem por menos de vinte mil? E dormem justamente, sem necessidade de água constante para beber e vaso sanitário freqüente para esvaziar?

Eu durmo. Um sono profundo, intenso, satisfatório e provocativo a quem tem insônia. Tão rápido eu adormeço que nem me sobra tempo de lembrá-los, senão diante da corte, mas expostos como se nus aos que foram lesados, para lhes desejar, mesmo no minúsculo e sem exclamação: boa noite camarada lula; boa noite camarada josé dirceu; boa noite camarada josé genuíno; boa noite, enfim, camaradas réus. Eu vou dormir e meus anjos hão de me acordar quando acharem que o sono que me proporcionam é o bastante.



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