quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Conto - Teatro da vida


O pano desce, fim do espetáculo. Atrás restou um palco no escuro. Atores e atrizes são personagens que se vão após interpretar mais uma peça. Apenas uma, dentre tantas de desfechos variados.

O teatro da vida é imprevisível. Roteiros são rascunhados para pautar trajetórias, mas há acasos que exigem mudanças. Nem sempre os bandidos são presos e os mocinhos encerram suas participações com beijos apaixonados nas donzelas.

O que dirá a platéia da moça culta que amou o ignorante? Haverá, com certeza, quem aposte que foi por ironia do destino. Outros concluirão que o amor nunca enxerga diferenças. É resultado de alma na alma, nada mais.

A diarista preferia ser apenas protagonista. Jamais cogitou o papel principal. Acostumada a um cotidiano longe dos holofotes, contentava-se com as aparições em segundo plano, de pouca fala e nenhum passo de dança.

Às seis da manhã, rotineiramente, sentia-se confortável sendo uma de tantas pessoas na fila do ponto de ônibus. Em seguida, no corredor apertado do coletivo, ia em direção ao trabalho ciente de integrar uma multidão de iguais: todos trabalhadores e estudantes a caminho do pão e do saber.

Verdade, a diarista recebia vez ou outra olhares atraídos pela beleza natural que ela trazia no rosto e no corpo. Não era uma boniteza de maquiagem e de vestimenta. A boniteza dela é daquelas que ficam gravadas na mente de quem vê.

Lá nos seus trinta e poucos anos de idade, a diarista nada tem de extraordinário. Talvez por isso seja bela. Nem alta e nem baixa. Nem gorda e nem magra, nem loira e nem morena, nem nova e nem velha. Sim, um tanto soberba. Poucos companheiros diários de lotação mereciam um diálogo com ela. Na insistência, entregavam-se ao monólogo mal sucedido e sem desfecho, pois o enredo se perdia ao perceberem que o verbalizado sofria desprezo.

Enfim, cenas comuns contentavam a diarista. Garantiam a ela certa tranqüilidade. Protegiam-na dos assédios. Não havia qualquer chance dela subir ou descer no ranking das celebridades. O jeito comum de viver garantia à diarista ser percebida como tantas outras pessoas que empurram o mundo para fazê-lo girar, de forma que a noite ocupe o dia e horas depois retribua cobrindo a terra com o manto da escuridão e do descanso.

Autores do teatro da vida são cruéis. Na descida do ônibus a travessia da avenida foi fatal. A moto ultrapassa o carro e não poupa a diarista, que ganhou manchete na página policial: “Doméstica cruza avenida fora da faixa e morre atropelada”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: