quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Conto - O assado esfria e o vinho esquenta

Uma taça de vinho sem marca de baton sustenta-se no parapeito da janela de um apartamento do penúltimo andar. O prédio é alto e lá de baixo confunde quem tenta contar quantos pavimentos sobem até onde a mulher espia o que acontece lá fora entre um gole e outro da bebida.

Há pessoas na rua. De cima elas são pequenas. E o trânsito nem em dia de festa é menor. Carros, motocicletas, roncos e buzinas atrapalham a audição. Difícil saber que música o cantor contratado pelo restaurante interpreta.

Quem dançaria no meio da multidão altas horas da noite, entre estouros de rojões e sirenes das viaturas dos bombeiros abrindo a rua para mais um socorro? É uma adolescente, aparenta menos de dezoito. Selena não seria capaz, a não ser que estivesse embriagada e muito.

E foi tão pouco vinho naquele copo. Selena está sóbria. Aliás, muito mais do que isso. Selena está viúva há três anos e prefere ficar sozinha no apartamento. Ela preparou uma ceia. Esperava receber a visita do filho e da nora para compartilhar com eles um assado acompanhado de boa salada.

Coisa simples. A sobremesa com um preparado de sorvete se encarregaria de manter o clima enquanto lembranças boas seriam enumeradas. Só lembranças boas, nada de assuntos pendentes. A intenção era de levantar ânimos. O de Selena carecia muito de uma alavanca para subir. O filho e a nora, apesar de uma relação fria com a viúva, eram os parentes mais próximos.

Para ambos Selena gastou horas escolhendo presentes. Há tempos ela não fazia isso. Ia às lojas para as compras necessárias e se incomodava nos provadores. Tratava de se medir com os olhos e comprar roupas que supunha caber. Por isso Selena usava blusas e calças acima do seu manequim.

Não fosse isso, Selena seria quase uma moça. Rosto delicada e sem maquiagem, magra, estatura média e cabelos, estes sim, sempre alinhados, davam a ela uma beleza natural invejável. Na repartição, Selena destacava-se entre colegas mais jovens e produzidas.

O que faltava nela era brilho. Quarenta e oito anos de idade vividos como alguém que está beirando os noventa. A causa foi a viuvez precoce num casamento de um único filho. E o filho escolheu o seu destino.
Mas era Natal, quem sabe ele viria. A ceia está pronta, as pessoas festejam lá fora, o vinho desce muito devagar. E nada que faça Selena se embriagar de alegria.

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