terça-feira, 27 de julho de 2010

Crônica - Às vezes o cantor dá um soco na boca do estômago

Ninguém teve a curiosidade de perguntar ao cantor quanto pagam a ele por noite. Lá pelas dezoito horas ele está se afinando. Sintam, é um cheiro de carne chegando ao ponto na churrasqueira. Comida no tempero certo, salada caprichada, toalhas limpas na mesa e os encostos das cadeiras protegidos com capas de pano. Um luxo.

Aquilo não é qualquer lugar, vê-se de fora. Tem restaurante que nem limpa o bandejão de plástico que serve de suporte para o prato na hora de enfrentar a fila para catar um monte de folhas leves e uma ninharia de carne, arroz e feijão, pois isso pesa muito na balança. O copo do refrigerante chega ensebado. Vai uns cinco guardanapos para limpar o garfo e a faca. E se o freguês tem costume de usar palito de dente, verifique se o produto não é descartado: usou de um lado, passa-se um paninho encardido e coloca-se de volta no paliteiro.

Ali no estabelecimento do cantor que afina o violão sentido a carne assar é muito diferente. Passa muita gente por lá. Claro, passa em frente, porque só entra quem tem cacife. Ou cacique, se for laranja de político que de vez em quando faz um agrado bancando a comida do bobo da corte.

Os frequentadores não tem a mesma cara dos que entram no self service do bandejão sujo. Enquanto neste último a fila demora por causa do critério dos consumidores na escolha do que pesa menos, no restaurante do cantor as pessoas esperam enquanto saboreiam vinhos de rótulos interessantes e preços nobres. E quanto mais demora para a comida chegar na mesa mais vinho de boa marca é consumido.

Ali os frequentadores são pessoas. No bandeijão sujo não passam de sujeitos. Às vezes caem para indivíduos. Quando um policial chega ao local para trocar uma vigilância por uma refeição já chega na porta gritando: "Pára ai maluco..." E a cara daqueles sujeitos ficam mais tristes e inexpressivos: olhar fundo e distante, olheiras nítidas, bochechas pelancosas e aquela lentidão típica de quem está fazendo a última refeição. No restaurante do cantor todos dão risadas de tudo e de quase nada. Até dos sujeitos que passam em frente as pessoas acham graça.

Deve ser interessante comer do bom e do melhor enquanto indivíduos de expressões preocupadas e tristes atravessam por ali. O que aquelas pessoas acham quando percebem que os sujeitos do lado de fora respiram fundo para absorver no cheiro a carne assada? E as recepcionistas uniformizadas na portaria. De que lado elas ficam? Das pessoas ou dos indivíduos?

Mas deu o tempo para o cantor afinar tudo o que tem direito. Violão, voz, garganta, gravata, camisa, comida e as meias, porque elas descem até o calcanhar se não estiverem presas com elástico. Comida? Será que um naco daquilo e daquilo ali faz parte do cachê?

E ele começa. Dedilha, pára. Desarranha a garganta, pára. Até que vai, introduzindo ele mesmo, dedilhando, soltando a voz. Enquanto as pessoas que jantam estão sóbrias, é até audível o que sai, se é que esta palavra existe. Audível? Música popular brasileira, variando do bregão ao sertanejo, da bossa nova ao rock, da balada ao improviso.

As pessoas se empolgam com facilidade. Então começam os pedidos. Outro dia pediram ao menino para tocar e cantar Credence. E foi um soco na boca do estomago dos indívidos que passavam em frente. As pessoas do lado de dentro, como sempre, riram, não de achar engraçado, mas de entender que tinham bom gosto e bons ouvidos. Um garçon confidenciou ao outro, num intervalo: "Pensam que sabem de música, mas só conhecem dinheiro e comida..."

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