segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Crônica - Uma gota de leite

O pano do carrinho de bebê é surrado como a vida acostumada a chibatadas tantos são os desencontros enfrentados pela mulher que o empurra. O pano do carrinho da mulher de expressão angustiada tem a estampa coberta por um encardido cor de poeira. O pano encardido da mulher de olhos estalados de tristeza acolhe uma criança de olhar ingênuo e puro.
A mulher de expressão angustiada e olhos estalados de tristeza tem vergonha de ter que empurrar o carrinho de pano sem estampa não porque o carrinho que acolhe a criança de olhar ingênuo e puro seja feio. A mulher que tem vergonha de andar com o carrinho de pano encardido sente-se constrangida de ter que pedir um trocado para comprar um leite para a criança. A mulher é mãe da criança acolhida pelo pano encardido do carrinho e pede com vergonha para matar a sua fome e a da filha de olhar puro.
Mãe e filha descem a calçada imperfeita da rua Piauí e cheiram o cheiro forte e fedido da carne estorricada na grelha do restaurante em frente. Mãe e filha sentem os impactos dos buracos na calçada esburacada da rua. Mãe e filha transpiram um suor de calor e cansaço na medida em que o carrinho de pano encardido desce aos solavancos e ela, a mulher, pede um trocado para ter a esperança de mais um pão no bar adiante. Mãe e filha descem a rua para viver mais um copo de leite.
A filha de cabelos loiros e cacheados não sabe porque a mãe tem que empurrar o carrinho de pano encardido que a acolher para buscar o seu leite. A filha de olhos puros, cabelos cacheados e bochechas avermelhadas não entende porque a mãe tem que se encher de coragem para pedir um trocado a quem passa por elas na descida da rua Piauí em frente de um restaurante que fede carne estorricada na grelha. A filha só sabe que terá leite para se alimentar quando as lágrimas do choro inundarem os seus olhos puros e ingênuos por causa da dor da fome.
A mãe de olhar angustiado é jovem e carrega num corpo maltratado a velhice de uma vida sofrida não se sabe por qual motivo. A mãe de olhar assustado tem medo de ter que ouvir de alguém a quem pede um trocado para o leite a desaforada resposta que deixa de ser só uma negativa e ganho o tom de uma ironia. A mãe do carrinho de pano encardido bem que gostaria de dizer que não usa a criança acolhida no carrinho que desce a Piauí aos solavancos para ganhar mais trocados e comprar mais leite. A mãe de cabelos loiros e ondulados, bochechas vermelhas e rosto tomado pelo suor só quer dar um passo a mais por uma gota de leite e uma vida carregada num carrinho de pano encardido, onde uma criança de olhar puro e ingênuo, bochechas vermelhas, cabelos loiros e cacheados, com o suor da mãe escorrendo sobre a toalha que tapa o sol, tenta enxergar o horizonte em frente bem diante do restaurante que fede carne queimada na grelha.
Cena londrinense, entre os solavancos na calçada da rua Piauí, na véspera de mais um Natal. Bom almoço Londrina!

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