domingo, 28 de dezembro de 2008

Conto - Meus cabelos brancos

Havia um jardim cercado de pedras à esquerda do portão de madeira tosca e sem pintura. Margaridas cercavam os roseirais na primavera, ao longo de um canto do quintal atapetado com a grama cuidadosamente aparada com a tesoura. Era ali que eu me transformava em médica, quando as bonecas de pano apresentavam sintomas de mal-estar. Ou a mãe zelosa a preparar saladas com água da torneira e folhas de plantas. Como também a professora, a transmitir uma lição, ralhar com um aluno teimoso. Aquilo era também o meu outono, o meu inverno, o meu verão, os meus dias, as minhas noites e as minhas madrugadas.
Aos fundos, um grande terreno sem calçadas, com tijolos e pedras fazendo uma passarela até o pé de limão rosa e de lá para a manga coquinho. Mamonas cresciam nos cantos e lá naquele passado elas, para mim, de nada serviam. Só os meninos, com seus estilingues, tinham as munições para suas guerras e suas travessuras contra os passarinhos. O fundo do quintal, com suas árvores, seus maracujás enfeitando a cerca e os varais de roupas coloridas lembrando uma festa junina eram a minha Amazônia, por onde eu puxava com um barbante uma caixa de papelão com as bonecas acomodadas dentro. Como se eu fizesse um passeio para longe, em lugar que a minha imaginação me levava.
Eu era uma menina de cabelos lisos e negros. Magra e com os pés no chão, pouco sabia das guerras que ocorriam fora do quintal. Papai, um vigoroso carroceiro a entregar compras e lenhas para os vizinhos cozinharem no fogão a lenha, e mamãe, sempre a limpar, lavar, passar com o ferro de carvão, cozinhar e limpar as louças, eram a minha razão de ser. Única menina da família, tinha em meus três irmãos os eternos inimigos. Eram eles a desmontar diariamente os castelos que eu construía com pedacinhos de tijolos.
Nem quando comecei a ir à escola me dei conta que havia um mundo fora do meu jardins. Mas ali já percebia que havia diferenças entre eu e minha coleguinhas de turma. Minhas roupas surradas e meus chinelinhos de dedo me inibiam diante das calças, das blusas e dos calçados que algumas delas usavam. E eu comecei a sonhar com um sapatinho de salto, mas mamãe dizia que nem mocinha eu era ainda. Só muito depois eu soube que os ganhos de papai como carroceiro jamais permitiriam um simples calçado para todos nós, filhos.
Assim decidi que iria ajudá-lo. Primeiro a esfregar as roupas mais leves para mamãe, a rastelar as folhas secas do quintal, a passar pano no chão de ladrilho da casa para tirar a poeira. A escola era apenas uma obrigação, pois o abraço da professora era para as meninas bem-vestidas. Para mim sobravam broncas pelo dever de casa mal feito, pela caderno com orelhas nas folhas.
Eu ainda era adolescente quando fui levada por mamãe à casa da cabeleireira do bairro, a três quarteirões de casa, onde virei empregada doméstica. Varria, passava pano, lavava louça e passava roupa. Eu só não podia cozinhar, pois a patroa não me confiava o papel de cozinhar no fogão a gás, que em casa ainda não havia.
Foram dois anos ali. Até que fui tomada por sentimentos que me levaram a buscar mais. Desejo de namorar, de me vestir bem, de comprar um baton e um esmalte por mês, de comprar a primeira sandália me empurraram até a porta de uma fábrica, onde comecei dobrando camisetas e terminei como chefe de costura, 23 anos depois. Claro que nesse longo pulo da adolescência até o preparo para a velhice muitas coisas aconteceram. Coisas boas, coisas ruins, desde aquelas que alegram ou machucam o coração até outras que nos dão um sabor de vitória pelo fim do pagamento da prestação de um jogo de sala. Também enfrentei felicidades e algumas decepções temporárias com os meus filhos, mas são coisas de mãe. Brigas com o namorado, depois com o noivo, e por fim com o marido também foram comuns, mas nada que deixasse marcas.
Disso tudo felizmente tenho um bom balanço. Eu venci. Junto com o meu esposo eduquei meus filhos, ajudei-os a se encaminharem em suas vidas, troquei confidências com as meninas e vi as netas e os netos nascendo um atrás do outro.
Mas cá me encontro hoje. Confesso que desnorteada. Sinto que anos e anos de trabalho pouco valor tem hoje. Uma aposentadoria que mal dá para as necessidades básicas me obriga a depender de um dos filhos, aquele que se deu melhor na.vida. E eu tanto queria que fosse diferente...
Vejo um mundo que nada se parece com o meu jardim de tempos atrás. Enxergo nos olhos dos meus filhos a preocupação com os seus filhos, com a droga que se vende nas porta das escolas, com o emprego que se torna cada dia mais difícil, com a vida que encarece cada vez mais. E nada posso fazer.
Vejo meus netos distantes, incapazes de me darem um abraço como eu abracei os meus avós. Vejo-me tratada como uma inútil, alguém incapaz de passar, lavar, cozinhar, costurar, porque os meus cabelos brancos e as minhas rugas denunciam minha idade. Sou velha para as pessoas que me enxergam, pois a maioria não me vê, a não ser nas filas apropriadas do banco para o saque da aposentadoria, quando me tratam como alguém que mais do que respeito precisa de piedade.
E eu luto, sozinha, para que a cor dos meus cabelos e os sucos das minhas rugas não me levem para um mundo de solidão, enquanto jovenzinhos, na rua, me chamam e me tratam de vovozinha.

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