sábado, 27 de dezembro de 2008

Conto - Confraternização

Eduarda atravessou o enorme pátio da fábrica contando os passos. Calculou em cerca de quinhentos metros a distância da linha de produção até o refeitório destinado aos operários, percurso que ela fazia de segunda à sexta-feira, quando não entrava na escala de sábado. Naquele 26 de dezembro o trecho pareceu mais longo e cansativo. Foi como subir uma rampa pisando em chão molhado e escorregadio. As pernas doiam e os ombros pareciam cair para a frente. Uma sensação estranha mobilizava Eduarda. Ela tinha que ir e queria chegar depressa, para se livrar de vez daquele compromisso no refeitório e voltar para casa. Mas sentia os seus membros recusarem o seu comando. Lembrou de anos atrás, quando adolescente caiu no porre numa ceia de Natal. Para cada passo que dava para frente, recuava dois.

Na linha de produção Eduarda ocupava um posto na revisão das confecções que vão para a embalagem e ganham destino nas lojas espalhadas em diferentes localidades do Brasil. Ela é uma das sete moças que passaram por praticamente todos os setores da fábrica e em troca de um salário melhor ganharam uma promoção. O valor do aumento, embora irrisório, servia como um estímulo. Há dois anos e meio na mesma ocupação, Eduarda esperava para novembro mais uma elevação. Tinha a indicação de sua chefe e o respeito dos colegas. Na verdade, a substituição da chefe por Eduarda era tida na fábrica como um acontecimento de praxe. Disciplinada e competente, a operária era exemplo. A chefe havia ascendido para o cargo de gerente e só esperava a formalização de uma substituta para assumir a nova ocupação. Enquanto aguardava uma oficialização, repassava seus conhecimentos para a eventual substituta.

Diferente de situações anteriores, quando se faziam até apostas sobre quem seria promovido, daquela vez tudo caminhava para o óbvio. E não seria diferente se não surgisse Elisa, filha de um dos sócios da fábrica de confecções. Recém-formada num curso de moda, Elisa, que nunca havia trabalhado naquele lugar, chegou com autonomia para ocupar o setor e realizar mudanças. Usou um pouco de sua teoria para intervir em práticas tradicionais das costureiras do setor de acabamento. Pediu a substituição de duas revisoras por considerar que ambas não tinham conhecimento suficiente para a função. Apontou dedo para outros chefes, respondeu deselegantemente recomendações que recebeu dos novos colegas com o respaldo da diretoria. Criou intrigas, implicou até com fornecedores e clientes. Além de filha de um diretor, Elisa namorava o sobrinho de um influente político da região, cuja campanha eleitoral costumava ser bancada em parte pela indústria. Por isso a interferência em determinadas decisões da diretoria acontecia de forma flagrante e escandalosa, como se tudo aquilo fosse um grande comitê político. Explica-se: em troca do patrocínio, vantagens...

Eduarda aceitou a decisão da empresa com disfarçada indiferença. Com 19 anos de fábrica, teria mais um ano e quatro meses de trabalho para mexer com a papelada da aposentadoria. Planejava para então lutar por uma vaga no setor de vendas, como terceirizada. O aumento do salário, caso assumisse a chefia da revisão, seria muito interessante não só para a sua renda, mas também para o valor da aposentadoria. A promoção também era vista como um reconhecimento. Deixando a modéstia de lado, Eduarda havia até comentado com alguns conhecidos e parentes que estava para subir de cargo na fábrica. E havia quem perguntasse a ela, passado o mês de novembro, se já estava no novo posto. Eduarda ficava constrangida ao explicar que a empresa havia mudado de idéia. A pior sensação era a provocada pela nova chefe. Eduarda sentia-se pressionada. Para ela, os comentários dando conta de que ela seria a pessoa ideal para ocupar o cargo incomodavam a filha do diretor e namorada do sobrinho do político. Esta respondia a esse sentimento de insegurança com provocação. Eduardo passou a ser rigorosamente controlada na execução do seu trabalho e nos momentos de folga. Colegas passaram a sentir receio de conversar com Eduarda no ambiente da fábrica.
Deixar de comparecer à confraternização de final de ano poderia parecer uma afronta. Eduarda não podia dar chance para ser advertida, pois caso isso acontecesse fatalmente ela responderia com dureza, que poderia se entendido pelos superiores como um desacato. O risco de uma justa causa com quase vinte anos de carteira assinada funcionava como uma mordaça. Eduarda pensou nos dois filhos adolescentes e na mãe que ela cuidava. Separada do marido, mantinha as contas de casa e pagava o financiamento habitacional. Móveis, eletrodomésticos e outras necessidades eram pagos a prestação. As roupas e os calçados dos filhos consumiam boa renda, mas Eduarda preferia privar-se de coisas não fundamentais para agradar os meninos. Assim, uma mesa nova era substituída por uma boa reforma da velha. A idéia de comprar um carro chegou a ser tema de reunião familiar, com os filhos concordando abrir mão de alguns caprichos. Mas quando a família pôs-se a pesquisar preço, modelo, ano e condição do objeto, chegou-se à conclusão que o sonho de um veículo na garagem teria que esperar mais.
A possibilidade de um novo casamento não estava descartada, mas o difícil era compatibilizar o sentimento de Eduarda com o gosto dos meninos. Havia, até nos assuntos do coração, uma democracia familiar. Aos quarenta anos, Eduarda mantinha uma beleza sóbria e era alvo de pretendentes. Mas qualquer novo evento em sua vida dependia, de acordo com os seus planos, do que ela havia traçado para o campo profissional. Dias antes daquele novembro Eduarda havia combinado alguma coisa com um fulano que mexeu com o seu coração, inspirou confiança e, sobretudo, conquistou a simpatia dos filhos. Um sim, conforme prometera Eduarda para o galante, ocorreria depois da promoção. Não que Eduarda vinculasse o seu romance à carreira. O que ela queria garantir era segurança financeira para si e a sua família. O amor era algo que poderia vir depois. O que Eduarda não negava para as amigas era do pulsar do coração. Se não tomasse cuidado, acertaria sua situação sentimental o mais depressa possível.
O eterno conflito entre o coração e a razão. Foi a briga que ocorreu dentro de Eduarda no dia 26 de dezembro. Sem promoção, dias antes ela havia protelado, para não se sabe quando, o anúncio de um compromisso sério com o seu pretendente. Foram dois anos de namoro, com promessas e muito cuidado. Tudo se fez para evitar destemperos e precipitações. Para o fulano, a oficialização do namora significava muito. Por isso ele se decidiu por um basta e anunciou um rompimento daquilo daquilo que, na verdade, nunca havia começado.

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