segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Conto - Dias de folga e desespero

Ontem Geraldo não foi trabalhar. Nem hoje, assim como fez anteontem e repete desde a terça-feira da semana retrasada. Geraldo saiu de casa às cinco da manhã e levou a marmita na bolsa de lona preta com a marca da associação de funcionários da funilaria onde estava empregado há doze anos. No caminho, trocou a linha de ônibus que o levaria à indústria por outra. Foi para o setor de oficinas, onde os estabelecimentos se enfileiram pela avenida e atendem de carros novos ainda com os manuais em dia até os velhos veículos carregados mais pela persistência dos seus proprietários do que pela potência de seus motores.
Geraldo não está de férias. Geraldo não tirou uns dias de folga. Geraldo não levou o seu carro para uma oficina. Geraldo não levou a marmita dentro da bolsa de lona preta por distração, já que nem ao trabalho ele está indo estes dias. Geraldo não é um trabalhador preguiçoso. Geraldo não é um homem de matar serviço.
É que Geraldo tinha um plano para ser finalizado neste fim de ano: vender o carro e dar entrada numa casa popular com um contrato de gaveta, aproveitando o sucesso do vizinho da rua de cima que conseguiu sair do bairro financiando um apartamento em região mais nobre da cidade. A casa da rua de cima o vizinho também comprou com contrato de gaveta e está repassando da mesma forma num preço que, se não é de camaradagem, está longe de ser um exagero.
Geraldo quer sair do aluguel e prometeu à mulher e aos filhos que deste ano não passa. A idéia de encerrar 2008 dentro da casa própria fez Geraldo vender o Passat 79 que ele mantinha como uma relíquia no quintal da casa alugada. Com o dinheiro do Passat e mais o décimo-terceiro dele e da mulher Geraldo paga o vizinho da rua de cima e transfere sua mudança para a nova moradia.
Geraldo não queria se desfazer do Passat 79. No passado, o carro já serviu para bicos que Geraldo se viu obrigado a fazer para manter a família numa fase de desemprego. O Passat estava quase novo, mas Geraldo o colocou na rua, com martelos, bancadas, alicates e chaves de fenda, para fazer funcionar panelas que as donas de casa já imaginavam imprestáveis. O ofício Geraldo aprendeu observando nas horas de folga um conhecido, dono de uma Kombi, que ganha a vida endireitando as panelas de pressão das famílias do bairro. Geraldo também sabe lidar com artesanato. Bom de comércio, ele até já vendeu banana usando o Passat 79.
O carro de Geraldo é um objeto de estimação. Mas a tentação da casa própria, somado ao brilho dos olhos da mulher quando a conversa é sobre a compra de uma moradia, fez Geraldo se desfazer do seu tesouro de quatro rodas. Geraldo não pegou preço justo na venda, mas está seguro que não deu o Passat 79 de graça. Além do mais, o carro vai ser a maior parte da entrada que Geraldo terá que dar ao dono da casa da rua de cima.
Geraldo fechou o negócio do carro na segunda-feira, depois de anunciar o Passat 79 no sábado e no domingo, aproveitando uma promoção do jornal da cidade nas páginas de classificados. Na noite daquele mesmo dia finalizou os valores com o vizinho da casa da rua de cima e marcou para entregar o dinheiro e receber a chave após às 18 horas de terça.
Na terça Geraldo foi trabalhar animado. Pegou no batente às oito. Mal aqueceu a linha de produção Geraldo e outros cinco foram chamados pela moça dos recursos humanos. A explicação que Geraldo recebeu, encolhido na cadeira diante de uma psicóloga de fala objetiva e áspera, foi de que a empresa sofria as consequências da crise mundial e tinha que enxugar o seu quadro de pessoal.
Geraldo nem teve ânimo para perguntar como havia sido feita a escolha dos demitidos. Geraldo apenas assentiu com a cabeça, assinou a papelada e saiu correndo. Foi procurar o vizinho da rua de cima, que já mora no apartamento do bairro mais nobre, para desfazer o negócio. Geraldo também correu atrás do comprador do Passat 79, que no passado já havia dado sustento para ele, a mulher e os dois filhos. Mas o homem que comprou o carro não quis saber de besteira e disse que negócio era negócio.
Geraldo bem que podia dar entrada na casa com parte do dinheiro da rescisão. Mas Geraldo ficou com medo, pensou nas crises passadas, imaginou-se um ninguém sem o Passat 79 e sem um emprego. Preferiu abrir mão do sonho da casa própria, que era um sonho dele, da mulher e dos filhos. Decidiu economizar o dinheiro do acerto para evitar contratempos futuros. Geraldo não sabe qual é a origem da crise mundial. Geraldo só sabe que Obama foi eleito e deve acertar a situação do país que vai governar. Geraldo ouve falar que acertando lá também se acerta aqui. Geraldo, agora desempregado, tenta vaga na oficina de um conhecido, pois o Passat deu a ele, além do prazer de um carro bem cuidado e o sustento em períodos de desespero, o conhecimento da mecânica.
Geraldo, vítima da crise imobiliária lá de longe, abriu mão de comprar uma casa. Geraldo ainda não falou para a mulher e os filhos que deixou de fechar negócio com o vizinho da rua de cima. Geraldo nem disse à família que está desempregado desde terça-feira da semana passada. Geraldo prefere, depois da contratação, dizer a todos que conseguiu mudar de emprego.

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