terça-feira, 21 de agosto de 2012

Conto - Fantasmas


É como engolir certa dose de remédio sem atentar para os efeitos colaterais. Elimina a dor de cabeça e provoca sono, moleza e gastrite. Nossos fantasmas são assim. Sem véus brancos a cobrir de cima abaixo, mas tão intocáveis quanto os da outra dimensão, eles atormentam.

Olinda carrega três. Ela os define como arrependimentos: o casamento com quem não ama, o estudo que deixou de completar e a mais traumática, feito um encosto, de quando ainda jovem rompeu com a irmã, Rosemeire, após briga por um motivo fútil. Olinda namorava Gervásio, que se engraçou com Rosemeire, que investiu no namorado da irmã com o endosso da mãe, Maria da Conceição.

Dezessete anos depois daquela noite de sábado, quando cabelos foram arrancados e adjetivos pouco apropriados desmancharam a relação de ambas, ainda ecoam os gritos, o choro, as ameaças e a verbal manifestação de revolta de Olinda: “Vou sair de casa”. Nunca mais as duas se viram. Nenhuma delas ficou com o disputado.

Olinda foi morar com amigas. Freqüentou as aulas da faculdade de pedagogia até se ajuntar com Lupércio e repartir com ele a mesma cama. Houve, sim alguma coisa parecida com paixão. Somente isso. Eram colegas de escola e optaram por uma amizade sem fronteiras, em que os ombros são oferecidos como suporte e até as necessidades físicas são consentidas.

Então, se é assim, porque não unir o útil ao agradável. E leva-se até onde der. Amanhã, se preciso, separam-se os móveis e os corpos. Será? Foi dúvida fundamentada na vida. Porque nem paixão passou por perto. Só pareceu ser algo aproximado. Cada momento mais profundo foi apenas desafogo e permissividade assumida. Parecia ser consciente, mas Lupércio fincou na vida de Olinda feito uma estaca de aço cimentada. Por piedade um do outro estão juntos há cinco anos. “Nem o nome dele me atrai”, disse Olinda a uma confidente.

O fantasma daquela briga é que se reproduz. Gera outros fantasmas que se multiplicam. Gervásio passou e nem é lembrado como causa do conflito. O que tortura são as palavras que foram ditas de uma parte e de outra. Dentre elas, algumas verdades que jamais seriam explodidas se Olinda e a irmã não tivessem brigado. Ficariam escondidas dentro de cada uma delas, molestando tanto quanto atrapalham depois que foram divulgadas.

Amor e estudo incompleto por causa de um homem da qual nem se lembra a cor dos olhos. Uma irmã da qual nem se tem notícia. Como estaria Rosemeire hoje? Quantas vezes emprestamos roupas uma da outra? Por que ela me chamou de falsa e desleal? Eu tinha que falar da minha mágoa por ela ser a queridinha da mamãe?

Fantasmas apertam o coração. Aumentam os receios de tudo e de todos. Acovardam quem é perseguido por eles. Amarram as mãos e a alma, acorrentam os pés e fazem a gente fugir das possibilidades. O fantasma de Olinda é o tempo que ela perde costurando uma ferida.


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