quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Crônica - E lá se foi a democracia



Colocaram os dois no meio de um bocado de pessoas ávidas por respostas corretas e sinceras a tanta perguntas que ao longo dos últimos dias não haviam sido respondidas. Aquilo parecia uma arena. Descendo um pouco mais, algo que lembrava uma rinha, onde os galos de briga ciscavam teimosamente as suas esporas antes de partirem para o ataque.
Coisa de cegos, feito touros nas touradas diante do pano vermelho tremulando e aumentando a raiva. A fúria dominando, a ponto de se esquecer o limite do uso de gerúndios e insistir “lando”, “tando” e “nando” num curto parágrafo só para respaldor o tamanho da situação.
Num exemplo mais cotidiano e próximo do cidadão, seria o mesmo que testemunhar na boca da manhã um motorista raivoso, buzinando, costurendo, xingando e azucrinando quem vai ao lado ou à frente só porque brigou com a mulher e saiu atrasado de casa. Nesse ponto, o estado de espírito do sujeito desceu para a bunda e, falando sério, com o olho de baixo ninguém enxerga nada. E só ai foram mais cinco gerúndios.
A peleja toda era para escolher um síndico. E é ai que entrava a primeira polêmica: havia uma candidata mulher e até no edital de convocação da assembléia com os condôminos a comissão eleitoral teve que grafar que o evento era para eleger “o síndico” ou “a síndica”.
Detalhista, o redator deu-se a besta de escrever no edital que “a gestão do administrador eleito” é de dois anos. Teve que mudar o texto e pagar nova publicação no jornal do bairro, que garantia circular com dez mil exemplares mas se sabia, a gráfica nunca rodava mais de mil. Então ficou assim: “...a gestão do administrador eleito ou da administradora eleita...”
Pior foi quando a candidata foi colar um panfleto na porta do elevador e derrubou o rolo de adesivo na cabeça do oponente. Irado, ele devolveu atirando uma bolinha de papel nas costas da adversária.
No dia seguinte, ela esbarrou nele segurando uma caneca de água e disseminou que o adversário é que havia lhe dado um empurrão. Os dois saíram molhados. Ele desaforou rasgando a correspondência dela que havia sido entregue pelos Correios. E ela, com isso, deixou de pagar a fatura do cartão de crédito.
Usaram também a fé dos condôminos para trocarem calúnias e difamações. Ela acusou ele de ser evangélico, mas freqüentar nas sextas-feiras um terreiro de umbanda. Ele acusou ela de ir à igreja católica com vestido decotado só para ser observada pelo diácono.
E não havia proposta de nenhuma das partes. A reforma daquele elevador barulhento e medonho, por exemplo, não entrou na pauta de ninguém. O custo elavado da taxa condominial foi desprezado. E a ação contra os proprietários de cães, autores de sujeiras nos jardins e nas garagens, nem mereceu menção.
Por isso surgiu a idéia do debate. E se reuniram naquela tarde de sábado no salão de reuniões justo quando o ar condicionado pifou. Desceram dos apartamentos uns cinqüenta. Até gato participou da reunião. Crianças, então, aproveitaram a ocasião para brincar lá embaixo, correndo entre os carros e esbarrando nos vasos de flores.
Ficaram os dois no meio daquela multidão. Ciscando, empinando a crista, afiando as garras e alinhando os chifres. Pouco falaram de concreto, pois a coisa ficou no bateu levou o tempo todo. Isso foi iniciado no meio da tarde e lá pelo horário da chegada da edição de domingo do jornal local, no começo da noite de sábado, ambos, já sem platéia, ainda rosnavam e obrigavam o responsável pela elaboração da ata a uma sucessão de gerúndios: quando, estando, formalizando, complementando, acrescentando, retrucando, repetindo e tal.
Deu tempo para o redator da ata ler todo o jornal, inclusive os classificados. Atordoado, ele deixou os adversários na rinha e saiu. Enquanto ajeitava as tiras das havaianas nos pés, falou alto, mas consigo mesmo: “Vê se pode um jornal de domingo ser lido inteirinho no sábado...”
Nada a ver com o último debate dos presidenciáveis no segundo turno. Ali, ele e ela até se comportaram, embora nada tenha dito de propositivo.

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