quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Crônica - Cabeça pequena



Aquilo era testa com letras maiúsculas. Brilhava, de tão grande, com realce nas curvas que o objeto tinha. Sim, objeto, porque era incomum. Tão acentuado que quando o fulano vinha as crianças saiam da frente.

Os sucos horizontais formados por duas rugas profundas lembravam trincheiras num solo arenoso, de terra clara. O suor nem descia. Ficava retido ali. De cima para baixo dava um palmo de mão, com os dedos exageradamente abertos a ponto de dar caimbrã. De um lado a outro, medida a circunferência no centro, uma mão e meia na sombra e quase duas mãos ao sol.

O dono era um bom cabeceador. Chegou a ser artilheiro do amador e do campeonato rural por dois anos seguidos. Equipes de agremiações mais ricas convidavam ele para disputas de torneios da elite, como os jogos de inverno, os torneios da primavera, os campeonatos citadinos.

No futebol de campo ficava lá atrás e não deixava uma bola alta passar. Veloz e habilidoso na condução da redonda, escorava com a esquerda todas as bolas baixas e avançava que nem um caminhão na banguela. Lá na frente, pouco antes da linha da zaga, empurrava a bola para o lateral direito e esperava a devolução, pelo alto.

A bicha vinha curvando e o artilheiro preparava a testa. As rugas ficavam mais fundas, formando uma quina parecida com a ponta de uma chuteira. As sobrancelhas quase ficavam na vertical. A ponta do nariz esticava para cima. A boca retorcia, salientando os beiços enormes e queimados do sol.

O goleador se mexia no meio da defesa e não havia combate que o segurasse. Se a bola vinha na quina esquerda do travessão, lá estava ele. Se descesse pela direita, a cabeçona esperava. Até lá longe, fora da risca da grande área, o goleador oferecia perigo. Porque se aquilo encostasse a testa na bola, pegando na quina entre as rugas, o goleiro não defendia. Era precisão e força. Depois do gol comemorado, não sobrava nem uma marquinha do gomo da redonda na pele da testa daquele craque.

No salão a violência era maior. A bola devolvida pela defesa adversária, no chutão, batia estalando na testa do goleador, que já recepcionava a redonda no jeito, de forma que ela ganhasse o rumo da trave lá do outro lado bem no canto onde o goleiro não tinha defesa. Só para sentir como era, num torneio de verão os organizadores tiveram que trocar as redes cinco vezes.

No trabalho, deram a ele uma vaga de carregador. Não havia saco de cimento que caísse daquela cabeça. Mas no amor, ai é que estava o problema. Gentil com a pretendida, o craque confundia cavalheirismo com submissão. Ajudava a moça nas compras no supermercado e fechava os ouvidos para as ironias dela. Nem ligava quando a donzela perguntava se havia levado o boné, pois pretendia comprar uma melancia. E olha que essa piada é muito velha e sem graça.

Num dia de chuva ela apareceu de carro no estacionamento do supermercado. Desceu, olhou ao redor e viu à esquerda o cabeceador, Da porta do motorista desceu um fulano, jovem e arrogante. Foi quando ela pediu o boné emprestado do craque, pois o carro do namorado era novo e precisava de um pano para protegê-lo da água.

Foi uma cabeçada só, no meio do párabrisa. Injustos, os colegas dele disseram que a fúria não foi por causa da ironia. Foi ciúme. E estavam certos. Vejam, que cabeça pequena ele tinha.

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