terça-feira, 20 de julho de 2010

Crônica - As duas flores

Viajavam no mesmo ônibus pelo menos três vezes por semana a caminho do trabalho. Era mais difícil o horário de alguma delas falhar e dar em desencontro do que o contrário. Viam-se, mas não se conheciam. Ninguém do mesmo percurso havia percebido, em qualquer circunstância, uma dar bom dia à outra. Ou diriam alguns que, sim, elas se conheciam de um jeito peculiar.

A mais miúda, de pele morena, tomava o ônibus lá atrás, em local que provavelmente outros passageiros sabiam, mas não aqueles que pegavam a mesma condução depois dela. Magra e sempre metida em calças jeans, prendia os cabelos numa espécie de coque. O arranjo destacava o rosto delicado e a expressão serena.

Ela seguia a viajaram de pé, escorada na barra que separa o motorista dos passageiros. Equilibrava-se nas curvas e nas frenagens, mas demonstrava prazer em ocupar aquele lugar. Prosseguia por quilômetros conversando com o motorista. Houve alguém que entendesse aquilo como uma tentativa de flerte. Os maldosos imaginam assédio. Um ou dois pontos antes de sua parada a morena atravessava a catraca, depois de uma singela despedida de seu interlocutor.

Era naquele trecho que a outra entrava. Também magra, mais alta, cabelos lisos castanhos, ela se escondia atrás das grandes lentes escuras dos óculos. Às vezes vinha de jeans. Outras vezes vestia-se com mais sofisticação, a ponto de atrair olhares dos homens.

No curto trecho até o seu destino, também se escorava na barra que separa o motorista dos passageiros e da mesma forma equilibrava-se nas cursos e nas frenagens. Mais uma coincidência: fazia o percurso todo conversando com o motorista.

Para alguns dos passageiros, aquilo não passava de um capricho. Um dia alguém murmurou para outro alguém: "É muita areia para o caminhãozinho desse motorista". Outros companheiros de viagem usaram de outra artimanha para analisar aquele enredo. Passaram a observar a morena, que ainda esperava pela chegada do seu ponto de descida.

E o que viram foi uma expressão de incerteza, uma quase dúvida misturada com ansiedade, tristeza, raiva e uma forçada submissão por não ter o direito de se manifestar. Até que inquieta ela descia do ônibus e recebia um tchau do motorista, que usava o retrovisor para acenar e simular um beijo com a mão.

O ônibus seguia e a morena prosseguia, a pé, olhando o veículo se afastar. Era quase um ciúme, aquele sentimento que parece a última viagem depois de uma conversa que não chega ao fim, sempre termina na metade, quando chega o ponto de ônibus e uma outra passageira ocupa o seu lugar na barra perto do motorista.

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