quarta-feira, 10 de junho de 2009

Conto - O último dia

A lotação encostou no ponto com seis minutos de atraso. A chuva, quase garoa, havia comprometido por mais uma manhã a pontualidade do ônibus. O carro chegou lotado de trabalhadores e estudantes, cada um protegido a sua maneira do frio de começo de inverno. Bolsas, mochilas e sacolas, escoradas nos corpos de seus donos, engordavam mais as pessoas e tornavam o corredor do coletivo intransitável.
Eneida havia acordado, como de hábito, quinze minutos antes das sete. Banhou-se com a rapidez de costume e antes de alisar as roupas separadas na noite anterior e estendidas no encosto da cadeira enrolou-se no roupão e foi à cozinha preparar o café. A rotina só era quebrada com a tensão que dominava a mulher há dias. Embora tivesse jurado que não se deixaria afetar pela situação que a angustiava, Eneida obrigava-se a admitir que não se sentia bem.
Ainda assim, simulou normalidade nos seus atos e mecanicamente executou as tarefas necessárias para aprontar a sua primeira refeição do dia. Duas medidas de pó de café no filtro descartável, água suficiente para encher até a boca uma xícara de chá e o aperto do botão da cafeteira que, ligada, em segundos produziu os sons do líquido esquentando e escorrendo no recipiente de vidro.
Enquanto isso, alisou ligeiramente a faca no pão amolecido tirado da geladeira, após raspá-la muito superficialmente na mantegueira. O forno de microondas ao lado mal teve tempo de emitir o ruído do prato giratório para anunciar com três apitos que o produto já estava aquecido.
Esse passo a passo tendia ser cumprido sem enjôo e sensação enfadonha, quando feito ao som de um cantarolar ou acompanhado de um pensamento interessante: sobre um bom acontecimento do dia anterior ou sobre uma boa possibilidade no dia que surgia à frente, por exemplo. Não era o caso daquela quinta-feira.
Há trinta dias Eneida assinou na empresa onde trabalha a sua carta de demissão. O documento, apresentado pelo encarregado dos recursos humanos após uma rápida explicação sobre o motivo dela ter sido chamada ao setor, apareceu diante de seus olhos formal e genérico. Apenas comunicou sobre a dispensa e as opções para cumprir o aviso.
Eneida acabara de completar dezenove anos na empresa. Foi admitida ainda solteira, estudante do ensino médio ensaiando para o vestibular. Pretendia enfermagem, mas recepcionista de um grande escritório de representação comercial de produtos importados, preferiu cursar administração. Após duas tentativas fracassadas, trocou por secretariado e agradou os seus superiores.
Um ano e meio depois trocou a mesa da recepção por uma escrivaninha na sala de espera da diretoria. Ganhou a simpatia do chefe e o ódio das colegas que haviam ingressado na empresa muito antes dela. Foi vítima de falatórios quando se viu obrigada a fazer serão. Volta e meia alguém lhe perguntava com deboche se as horas extras estavam rendendo bem.
Mas Eneida tinha muito pouco para ser musa de patrão. Obesa desde adolescente, só havia passado pelo processo de seleção porque aquela era uma empresa de grande porte, com uma política de recursos humanos rigorosa. Eneida havia tentado muitas outras vagas, mas as oportunidades cessavam quando o entrevistador que se punha no outro lado da mesa era a pessoa que poderia ser o patrão ou o chefe.
Segura e com pleno domínio dos assuntos profissionais, Eneida era desaprovada no quesito beleza. Claro que nunca alguém justificou a ela: "Você não serve para a vaga porque é feia". Mas Eneida mesmo chegava à conclusão ao observar as concorrentes.
Por isso, quando a oportunidade chegou na multinacional, Eneida decidiu agarrá-la com unhas e dentes. Não foi por uma só vez que ela flagrou colegas comentando, aos risos: "O comitê de segurança no trabalho vai ter que mandar fazer uma cadeira reforçada para ela..."
Quanto às conversas maldosas sobre os serões de começo da noite, alguns diziam que o esguio diretor, casado com uma loira invejada, tinha lá as suas preferências por uma gordurinha.
Eneida estava para se formar em secretariado quando conheceu Alberto, um tipo pouco atraente, tímido e solteirão. Era um excelente técnico de informática e comunicava-se com as máquinas da empresa com um prazer espantoso. Magro, com os olhos destacados pelas grossas lentes dos óculos, mantinha-se com os cabelos despenteados devido à mania de passar as mãos na cabeça a cada enigma que decifrava durante as configurações dos equipamentos.
Zero em relações humanas, Alberto quedou-se por Eneida porque ela era a única pessoa que conseguia manter uma comunicação com ele. Alberto, na verdade, enxergou com os olhos da alma a simpatia e a beleza que o coração de Eneida carregava. Tanto que Alberto nunca enxergou a obesidade da namorada e os malditos comentavam nos cantos da empresa que, realmente, o amor era cego.
O anúncio do noivado, quase cinco anos depois, rendeu a Eneida uma promoção: ela ganhou o cargo de secretária executiva. Para criar a nova vaga o diretor usou de toda a sua honestidade. Justificou que tratava-se de uma excelente funcionária e respondia além da expectativa às necessidades da empresa. O diretor tinha ciência que Eneida era muito mais que isso. Ágil na execução das tarefas, confiável, criativa e sem frescuras, Eneida, tecnicamente, era a ajudante que qualquer chefe sensato gostaria de ter.
O casamento com Alberto fora marcado para setembro. Não do ano que vem. Do outro e do outro ano que vem, amarrando um noivado demorado e recordista em tempo de espera. Mesmo as boas línguas diziam que não havia fervura naquela relação e o que sobrava entre os dois era uma compaixão.
Talvez por isso mesmo, ainda noiva e já formada e pós-graduada, Eneida um dia mirou-se no espelho e percebeu que havia adquirido um sentimento que jamais havia experimentado, a auto-estima. Enfrentou dietas e aparelhos de academias, perdeu peso e ganhou, em pouco mais de quatro meses, nova fisionomia e contorno. A gordura desapareceu e o rosto, antes rechonchudo, ganhou um aspecto até sensual. Nascia uma mulher madura, cujas rugas, imperceptíveis, formavam um traço marcante.
Foi, porém, tarde quando ela percebeu que o sacrifício para ser bela afetara o desempenho profissional. Eneida, já beirando os quarenta anos e prestes a se casar com um sujeito de trinta que nunca tirava a cara da frente dos monitores estampados com programas da microsoft, também se tocou que a possibilidade de uma vida a dois estava com os dias contados.
Para piorar, o diretor, já grisalho mas ainda esguio, preparava sua transferência para a matriz. Solidário à fiel subordinada, ainda tentou convencer o seu substituto que Eneida passava por uma fase de mudança pessoal e logo se recomporia profissionalmente. Em seu discurso de despedida, até mencionou, diante de todo o quadro de funcionários, que a sua promoção ocorria graças à colaboração da secretária executiva que manteve por quase duas décadas.
Mas o substituto estava há muito tempo de olho na estagiária de administração, uma morena de vinte anos, corpo de modelo, cabelos alisados com progressiva e roupas de grife. Então Eneida, ainda no cargo de secretária executiva, passou a ser uma espécie de subordinada da morena, que ganhou uma mesa e um computador ao lado do dela.
Eneida deixou de ser requisitada pelo novo diretor, pois recebera a incumbência de ensinar a morena a lidar com o excel e outros programas complicados utilizados pela empresa. Quando a morena dominou os programas de controle de estoque e gestão, Eneida foi chamada pelos recursos humanos para assinar o aviso prévio. Ela teria prazo até o seu desligamento para ensinar a morena a mexer com as planilhas.
Eneida relaxou propositalmente na incumbência. Esperta, a morena recorreu às lições de Alberto, que seduzido pelos agrados da jovem que o chamava de lindo, esfriou a relação com Eneida e terminou com o noivado.
Nada mais restava. O diretor que enxergou o potencial de Eneida ganhou força e estabilidade na matriz, onde entregava-se à questões complexas inerentes a uma grande representação. Eneida, saudosa, imaginava que ele havia escolhido para auxiliá-lo uma secretária executiva feia e centrada nas suas ocupações. Daquelas de pouca conversa mole e uma objetividade irritante no cumprimento das tarefas. Assim como ela, uma secretária sem pernas de fora e seios saltados escapando dos decotes.
Alberto também mudou. Passou a frequentar bares e a procurar garotas de programas que em seu imaginário se pareciam com a nova secretária executiva que, depois de aprender a mexer com o básico das planilhas, nem olhava mais para ele quando passava ao lado.
Eneida assina o seu desligamento da empresa hoje. Se o ônibus não atrasar, será pontual com os recursos humanos. Ela deixou as dietas e as academias. Engordou não tanto quanto antes, mas já voltou a ser observada com olhar maroto quando se enrosca na roleta do coletivo. Eneida diz bom dia e sorri para os conhecidos durante o percurso até o trabalho. Uma mão segurando o pingente, a outra afaga de leve o coração. Ela sorri a cada curva enquanto tenta manter o equilíbrio. Mas o coração sente uma dor e verte uma lágrima que só quem conhece Eneida enxergaria. Este, porém, no seu equilíbrio profissional, é provável que esteja, na matriz, trabalhando a valorização de outra Eneida.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Crônica - Tens razão, senhores...

Hoje vesti por alguns minutos a carcaça de vagabundo. No bom sentido. Sabe, aquele vagabundo inofensivo, que não subtrai do alheio, não incomoda ninguém e deixa de fazer sem causar danos aos outros.
Repórter de um jornal de porte médio, há anos cai num bairro de Londrina e fui trabalhar uma enquete. Nesse procedimento o profissional chega, sonda o ambiente, analisa as pessoas e escolhe aquelas que podem dar história. Foi quando ouvi de um sujeito algo mais ou menos assim: "Esses caras de jornal não fazem nada na vida. Só ouvem os outros".
Engoli, pois não vi condições de dizer ao fulano que produzir uma reportagem é muito mais do que ouvir. Aliás, ouvir é uma arte e só ouve quem não quer ser surdo. Saber ouvir é um dom. Ouvir, em algumas histórias, é essência.
Ainda assim, entre reflexões e exercícios mentais rigorosos para absorver de uma forma positiva a etiqueta de vagabundo, coisas que pratico quase que todos os dias ao acordar, andar, comer, sentar, sair, escrever e deitar na espera do sono, mantenho no potinho da memória a cara irônica do sujeito e, às vezes, me arrependo muito por ter me calado.
Recentemente essa lembrança me bateu com muita força quando uma outra cara, muito mais raivosa do que irônica, apertou a mesma tecla. Talvez porque o bom profissional trabalhe no sîlêncio. Ou porque somos, como qualquer trabalhador de outras áreas, uma maioria de anônimos, que desenvolve sua atividade sem estardalhaço, sem almejar o pódio e passando longe do vedetismo.
Acontece que nesses casos o trabalho passa por processos esgotantes. Pensa-se muito, pesquisa-se mais ainda para botar um texto pronto nas páginas do jornal ou para colocar no ar uma fala. O exercício inclui a análise de cada caso: quantas pessoas serão beneficiadas se eu produzir esta reportagem? Que tipo de interesse eu vou atender assinando uma matéria dessa? Qual é o impacto que a minha abordagem vai gerar?
São questões relacionadas à ética e à responsabilidade social de uma profissão que mexe com informações e opiniões. Escrever ou falar, sem se preocupar com elas, isso sim é coisa de vagabundo. Escrever ou falar de acordo com interesses estranhos ou próprios, ai tem um problema muito sério.
Falta agora alguns minutos para às dezessete horas. Um estrondo no final da tarde de ontem, em Londrina, foi noticiado por uma emissora de televisão. Um site noticioso repercutiu. Nenhum jornal tocou no assunto. E ninguém sabe o que aconteceu. Tremor de terra?
Alguém me diz que uma pessoa foi baleada no centro de Londrina lá pelo meio da tarde de hoje. Havia um burburinho nas proximidades do Bosque central de Londrina, onde a vítima ainda esperava por socorro. Os meios de comunicação prometem informações em tempo real nesta febre comunicacional provocada pela internet. Mas nada de informação nos sites. Será que o cara baleado era um cidadão comum?
Repercute também a informação sobre a determinação do prefeito da cidade de cobrar taxa para liberar a realização das procissões de Corpus Christi na quinta-feira, quando as ruas por onde os fiéis caminham levando as suas crenças são enfeitadas.
Mas, dá licença por alguns minutos, por favor. Desci e fui vagabundear. Fiquei por alguns momentos olhando o outro lado da rua. Carros com motoristas afoitos por uma vaga, motociclistas sobre as calçadas, a Zona Azul espoliando, a vida correndo, a moça passando, o rapaz encarando, o desocupado voltando e a minha cabeça, por frações de segundos, isenta de preocupações.
Sabe por que? Naquele momento, se alguém me chamasse de vagabundo, eu responderia com muito orgulho: "Sou, com muito prazer."